O presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal louvou este sábado a coragem dos ciclistas da W52-FC Porto que confessaram o recurso a práticas dopantes, considerando que o escândalo e as penas pesadas levaram a uma mudança de atitude no pelotão.

“Foi um ato de grande coragem, grande coragem”, enalteceu em entrevista à agência Lusa, referindo-se à decisão de sete dos ciclistas da W52-FC Porto de assumirem o recurso a práticas dopantes.

João Rodrigues, Rui Vinhas, Ricardo Mestre, Ricardo Vilela, Daniel Mestre, José Neves e Samuel Caldeira tiveram as sanções reduzidas de quatro para três anos ao abrigo do “n.º 16 do artigo 83 da Lei n.º 81/2021”, que prevê que “se o praticante admitir a violação da norma antidopagem e aceitar o período de suspensão, pode beneficiar de uma redução de um ano no período de suspensão”.

Rodrigues e Vilela estão, no entanto, a cumprir, respetivamente, mais quatro e sete anos por anomalias no passaporte biológico.

“Nesse caso, a aplicação da pena foi minha, porque tive longas discussões com a Agência Mundial de Antidopagem para saber, no caso de haver – nunca tínhamos tido isto em Portugal – uma confissão, qual era a redução de pena, a redução da sanção. E, então, chegámos a um entendimento. Depois, havia a possibilidade de aumentarem as confissões, mas a AMA preveniu-me que se de uma confissão resultassem outras confissões, teríamos de abrir mais processos disciplinares. E se houvesse mentira, teria de abrir outros processos disciplinares. De modo que ficou por uma primeira confissão”, detalhou.

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Ao contrário dos seus antigos colegas, Joni Brandão e José Gonçalves não colaboraram com a ADoP e foram castigados, respetivamente, com seis e quatro anos de suspensão, com a entidade antidopagem a aplicar as penas mais ‘pesadas’ ao diretor desportivo, Nuno Ribeiro, e ao seu adjunto, José Rodrigues, suspensos por 25 anos.

“É o limite da lei. Noutros casos, de outros países, teriam sido irradiados, mas a nossa lei não permite”, notou.

Aplicada a justiça desportiva, Manuel Brito aguarda agora pelo desfecho do caso em tribunal, no qual 26 arguidos, entre os quais os ciclistas, respondem pelo crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, com os dirigentes da equipa a estarem entre os 14 arguidos que respondem ainda por administração de substância e métodos proibidos.

“Neste processo, há que realçar um aspeto muito interessante, […], que é um caso exemplar de colaboração entre as autoridades judiciárias, a Polícia Judiciária, o Ministério Público e a ADoP. Primeiro, a confidencialidade. Ninguém sabia o que estávamos a fazer e demorou um ano e meio. Em Portugal, é de louvar”, salientou.

Em 24 de abril de 2022, no decorrer do Grande Prémio O Jogo, a PJ realizou “várias dezenas de buscas domiciliárias e não domiciliárias em diversas regiões do território nacional”, envolvendo cerca de 120 elementos e visando maioritariamente as residências dos ciclistas e dirigentes da W52-FC Porto, e apreendeu várias centenas de seringas e agulhas de vários tipos, material para transfusão de sangue ou mesmo bolsas usadas com vestígios hemáticos, e substâncias dopantes como betametasona, somatropina, menotropina, TB 500, insulina ou Aicar, entre outras.

“Foram 120 inspetores que também mantiveram a confidencialidade das buscas e apreensões. Depois, o estudo em conjunto do processo em que a ADOP colaborou num relatório técnico […]. Os controlos antidopagem que fizemos, que deram resultados, em alguns casos, para o passaporte biológico, de alguns, ao nível da UCI. Portanto, em termos nacionais, uma exemplar cooperação institucional, Ministério Público, Polícia Judiciária, ADOP. Em termos internacionais, uma exemplar cooperação com a AMA e a UCI”, enumerou.

Por ser tudo “novo”, a ADoP precisou “muito de aconselhamento, por um lado, e garantia de que tudo o que fazia não ia parar ao Tribunal Arbitral [do Desporto] de Lausana”.

“A AMA, se achasse que estávamos a fazer alguma coisa errada, punha-nos um processo. Já tive a oportunidade de agradecer formalmente à AMA, em diferentes ocasiões, e à UCI. De modo que, desse ponto de vista, correu bem. Sei que vai correr bem também em tribunal, do ponto de vista técnico e jurídico”, manifestou.

Manuel Brito acredita que “os efeitos disciplinares da ADoP e do Colégio Disciplinar”, com sanções muito pesadas”, assim como o processo em tribunal e “o escândalo com impactos nacionais e internacionais” provocaram “uma mudança de atitude em muitas equipas e praticantes” do ciclismo nacional.

“E isso, obviamente, que é positivo. Sendo um facto negativo o que ocorreu, que não me agradou nada, é positivo haver uma alteração de comportamento”, defendeu.

Presidente da ADoP confirma cinco novos casos de passaporte biológico no ciclismo

Manuel Brito confirmou a existência de cinco processos de passaporte biológico em fase de instrução, além de dois “resultados adversos positivos” no ciclismo nacional, explicando que no caso dos primeiros a lei portuguesa não permite a suspensão provisória.

“Há cinco processos de passaportes biológicos e dois processos de resultados adversos positivos. Neste momento, é a ADoP [Autoridade Antidopagem de Portugal] que está a fazer a instrução do processo e seguirá para o Colégio Disciplinar Antidopagem”, indicou à agência Lusa.

Questionado sobre o facto de, ao contrário do que acontece com processos conduzidos pela União Ciclista Internacional (UCI) – em que os ciclistas com anomalias no passaporte biológico são suspensos preventivamente -, em Portugal estes poderem continuar a correr e até a desempenhar papéis de destaque nas mais importantes provas do calendário nacional, Manuel Brito evocou a lei portuguesa.

“A lei não permite, só no fim […] da análise e da decisão do Colégio Disciplinar Antidopagem é que eles podem ser suspensos. No caso, se fosse uma análise normal laboratorial, poderia ser suspenso depois de ser ouvido. Mas as garantias de defesa estão muito consagradas na lei. E, portanto, aqui não pode haver suspensão preventiva como a outra, digamos, nos casos mais usuais de processos de antidopagem. Aqui é mesmo só no final”, justificou.

O processo, admite, é moroso em casos de anomalias no passaporte biológico, um ‘mecanismo’ que se baseia na monitorização de determinados parâmetros biológicos [através de amostras de sangue e de urina], que, de uma forma indireta, podem revelar os efeitos da utilização de substâncias ou métodos proibidos, em oposição às estratégias tradicionais de deteção direta de substâncias ou métodos proibidos em amostras de sangue e de urina.

“Quando há um caso de passaporte biológico, há um relatório de três peritos internacionais, cientistas de renome, um deles português, um caso muito honroso para Portugal, que é o professor Paulo Paixão. São três cientistas respeitadíssimos. O relatório é em inglês e, pela lei portuguesa, pelo código administrativo, tem de ser traduzido, demora a ser traduzido, com custos. Depois, o arguido tem direito à defesa, explicar o que é que se passou. Esse relatório tem de ser traduzido, tem de ser enviado para os peritos. Os peritos dão uma outra resposta, em inglês, que tem de ser traduzida. Estes processos na UCI é tudo em inglês, não há traduções para ninguém. E, portanto, são muito mais rápidos do que em Portugal, em que temos de cumprir todas as exigências da lei”, elucidou.

Apesar de ser “difícil” e sair “caro”, Manuel Brito congratula-se por os ciclistas terem garantias de defesa nos processos do passaporte biológico.

“Estamos num país de direito democrático e, portanto, as garantias de defesa estão absolutamente consagradas na lei e elas são exercidas. Isso, para mim, tranquiliza-me. É lento? É lento. Mas não passamos por cima dos direitos individuais”, notou.

As declarações do presidente da ADoP enquadram-se no balanço dos quase dois anos de implementação daquele que foi descrito como um protocolo “pioneiro no ciclismo mundial”, estabelecido entre a instância antidopagem e a Federação Portuguesa de Ciclismo (FPC), que estendeu o passaporte biológico — só obrigatório para formações dos dois primeiros escalões mundiais da modalidade – à totalidade dos corredores das equipas continentais portuguesas, incluídas na terceira divisão.

Para Manuel Brito, a maior prova de que este protocolo está a funcionar é que “a Volta a Portugal só se define na última etapa”.

“A tal incerteza do resultado, que é um dos princípios do desporto, a equidade, está a ser bem clara na Volta a Portugal. Tive a oportunidade até de conversar sobre isto, várias vezes, com o presidente da FPC [Delmino Pereira], com o diretor da prova [Joaquim Gomes] também, [e] eles concordam. Portanto, há uma volta na Volta a Portugal. Eu creio que se deve ao passaporte biológico”, defendeu.

Depois de, na temporada anterior, o número de controlos para o passaporte biológico, fora e em competição, ter sido “muito elevado”, este ano “foi um pouco mais reduzido justamente por causa dos Jogos Olímpicos e dos Jogos Paralímpicos”.

“Mas também fizemos à mesma cerca de 200 controlos para o passaporte biológico, portanto o ciclismo, digamos, não ficou ”desguarnecido'”, finalizou.

Não houve positivos nos controlos realizados aos atletas paralímpicos em Portugal

A Autoridade Antidopagem de Portugal só comunica os controlos positivos, esclareceu Manuel Brito, rejeitando as críticas dos responsáveis do Comité Paralímpico de Portugal relativamente aos dois casos de doping em Paris2024 e escusando-se a “falar pela comunicação social”.

“Nós nunca informámos o Comité Paralímpico que havia casos positivos. Deixe-me só dar um exemplo. Imagine que estamos a conversar sobre circulação rodoviária: há um limite de velocidade de 100 km/hora, a GNR não comunica aos condutores que estão abaixo dessa velocidade. Comunica aos que ultrapassaram essa velocidade, no caso de o radar os detetar”, comparou.

Manuel Brito reagia assim às críticas dos responsáveis do Comité Paralímpico de Portugal (CPP), nomeadamente do seu presidente, José Lourenço, que ainda em Paris, e antes de ser conhecido o positivo do ciclista Luís Costa, bronze no contrarrelógio da classe H5, tinha defendido que a Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP) devia ter garantindo que os resultados das análises feitas ainda em Portugal aos 27 atletas paralímpicos que participaram em Paris2024 estavam disponíveis antes da partida para França.

“Quando viemos para aqui, vínhamos convencidos de que os resultados das análises feitas em Portugal não demoravam esta eternidade, que soubermos agora são 20 dias, o que me parece um prazo excessivo”, afirmou José Lourenço, em 08 de setembro, data em que só era público o positivo de Simone Fragoso.

Depois de três participações como nadadora, Fragoso, de 41 anos, preparava-se para competir no torneio de powerlifting, mas foi afastada da competição na sequência de “um resultado analítico adverso” num controlo antidoping realizado em 31 de agosto, em Paris.

“Há uma coisa que eu não comento nem comentarei, o relacionamento institucional com o Governo, com o movimento desportivo. Não faço, nem farei. Portanto, as afirmações são de quem as fez e eu tenho por hábito, quando há uma dificuldade ou quando há uma divergência, agarro no telefone e telefono. Não falo pela comunicação social”, salientou o presidente da ADoP, em entrevista à agência Lusa.

No entanto, instado a pronunciar-se sobre o eventual atraso no processamento das amostras, Brito recordou que não pode interferir no Laboratório de Análises de Dopagem (LAD).

“O sistema antidopagem assenta em três pilares: o Colégio Disciplinar Antidopagem, que é o nosso tribunal, digamos, para questões disciplinares. A ADoP, que faz os controlos antidopagem, organiza a instrução dos processos disciplinares, faz a educação, etc., e o laboratório. O laboratório não é nosso. O laboratório é do Instituto Ricardo Jorge, que é do Ministério da Saúde. E, portanto, eles têm de obter as normas da AMA [Agência Mundial Antidopagem] e cumpriram. […] Não tendo sido comunicado nenhum caso adverso, estavam cumpridas todas as datas possíveis”, reforçou.

Ainda assim, numa alusão à sugestão de José Lourenço de que a ADoP “deveria ter antecipado o controlo dos atletas, ou seja os atletas não deveriam ter feito análises no dia 23, mas sim 20 dias antes”, para que os resultados fossem conhecidos antes de Paris2024, Manuel Brito lembrou que “as normas e as recomendações” da AMA dizem que os testes têm de ser realizados “o mais próximo possível das datas de realização dos Jogos” Paralímpicos.

Brito salientou ainda que o organismo ao qual preside “não tem nada a ver” com os processos disciplinares em curso relativamente a Luís Costa e Simone Fragoso.

“Não é um assunto da ADoP, porque […] os casos positivos que se registaram foram de controlos feitos em França, em Paris. A ADoP foi a primeira entidade a saber que havia resultados adversos. Porquê? Porque antes de seguir um processo disciplinar tem que se saber se o atleta tem ou não uma autorização de utilização terapêutica e isso está com a ADoP. São dados clínicos, portanto eu não posso saber. Tinha que ser a médica que coordena, que é responsável por essa área, que tinha que dar a informação. Demos a informação e, a partir daí, desenvolve-se o processo disciplinar, as suspensões, etc., e os eventuais recursos que os atletas têm direito, legitimamente”, esclareceu.

Do ponto de vista temporal, segundo o responsável máximo da luta antidopagem em Portugal, “compreende-se ou sabe-se” que as substâncias detetadas nos controlos de Costa (clortalidona, um diurético que é “um agente mascarante”) e Fragoso (esteroide) “foram introduzidas durante os Jogos” Paralímpicos, que decorreram entre 28 de agosto e 08 de setembro.

“Recebemos os relatórios, não poderei falar sobre isso, porque são confidenciais e, como digo, os atletas têm direito à sua defesa. Isso é sagrado. […] Sendo a ADoP a primeira a saber que havia um problema, dando nós a chave para a continuação, que é dizer que não havia uma autorização terapêutica, a partir daí foi-nos comunicado que havia uma irregularidade, havia um resultado adverso e, que ao mesmo tempo, informaram o chefe da Missão, a ADoP, no caso do ciclismo, por exemplo, a UCI [União Ciclista Internacional], a AMA, e estas entidades foram informadas todas ao mesmo tempo. Agora, o processo disciplinar não é connosco, não sei muito mais e se soubesse também não podia dizer”, concluiu.

ADoP viveu ano “complicado” devido a ‘exigências’ de Paris2024

Manuel Brito reconheceu que 2024 foi “complicado” para a Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP) “do ponto de vista logístico”, nomeadamente devido à imposição da World Athletics de controlos mais estritos aos portugueses para participarem nos Jogos Olímpicos Paris2024.

“Do ponto de vista logístico, foi um ano complicado”, admitiu o presidente da ADoP, em entrevista à agência Lusa.

Em ano de Jogos Olímpicos e Paralímpicos, a ADoP desdobrou-se em controlos fora e em competição, tendo, à data, recolhido 1.667 amostras (1.389 de urina, 168 para o passaporte biológico e 110 de hormona de crescimento.

“No caso dos Jogos Olímpicos, surgiu um problema muito complicado, que foi uma exigência, por cima das exigências e dos ‘standards’ da Agência Mundial Antidopagem [AMA], mas colocada pela World Athletics. Por exemplo, cada atleta que poderia ir aos Jogos – candidato, ainda não estava determinado – tinha que ter sete controlos fora de competição”, recordou.

Em março, a World Athletics determinou que os atletas de Portugal, Brasil, Equador e Peru teriam de enfrentar controlos antidoping mais apertados fora de competição para serem elegíveis para os Jogos Olímpicos Paris2024, após recomendação da Unidade de Integridade do Atletismo (AIU), que considerava insuficiente o número de testes naqueles países.

“Nós cumprimos com muita dificuldade, muita dificuldade, porque a própria AMA não exige isso. E houve países que não cumpriram e puseram a World Athletics em tribunal e ganharam, caso do Brasil”, exemplificou.

Do “ponto de vista operacional”, a determinação da federação internacional de atletismo, que Manuel Brito conheceu pela imprensa, “levantou problemas muito difíceis”.

“No fundo, é a World Athletics – o atletismo é muito importante nos Jogos -, a defender-se de escândalos diversos, de corrupção, de casos de dopagem, etc. Mas as autoridades antidopagem não estavam propriamente avisadas. Ora, isso veio introduzir, além dos problemas normais que temos em cumprir com as exigências dos Jogos Olímpicos ou Paralímpicos, um acréscimo de dificuldade”, reconheceu.

O presidente da ADoP garante que tudo foi feito “para que nenhum atleta estivesse em risco de não ir” a Paris2024.

“Vejam o que era a frustração, além do escândalo obviamente, mas a frustração de um atleta que tinha marcas para ir aos Jogos Olímpicos não ir porque […] a ADOP não teve a oportunidade de fazer um controlo”, elucidou, detalhando que “esse problema preocupou bastante entidades diversas”.

Assim, e apesar de um reforço de três pessoas ao longo deste ano, foi desafiante cumprir as metas estabelecidas pela World Athletics algo que, na opinião de Manuel Brito, só foi possível graças à equipa “coesa” da ADoP e também à colaboração de organismos antidopagem estrangeiros.

“Alguns [atletas] foram apanhados à saída do avião, no aeroporto. Casos extremos. Outros, pedimos a colegas que estão no estrangeiro. Em Espanha, nos Estados Unidos – nós temos permuta com colegas, eles também nos pedem. Como se sabe, há muitos atletas estrangeiros que estão em Portugal e nós fazemos controlos a pedido dos colegas estrangeiros e tudo isto é feito numa base fraterna, nem implica custos nem nada de uns e de outros, o que implica é fazer-se. Foi muito, muito difícil, muito difícil e isto obedeceu a um planeamento muito rigoroso do responsável pelo planeamento das ações dos controlos antidopagem, o diretor executivo [António Júlio Nunes]”, destacou.

Manuel Brito recordou que os responsáveis do controlo antidopagem — “os médicos, enfermeiros e técnicos de diagnóstico que fazem os controlos” — não são profissionais da ADoP, acumulando esta função com as suas profissões.

“[Os controlos] têm que ser nas folgas, têm que ser fora de horas, às sete da manhã, às seis, portanto, isso implica um planeamento muito difícil e eu só tenho que louvar os trabalhadores da ADoP por essa magnífica prova de amor à camisola”, concluiu.