A imagem até parece de outros tempos. Camisolas simplesmente vermelhas, com apontamentos em branco, sem logótipos de marcas desportivas e apenas com uma bandeira do lado esquerdo do peito. Os equipamentos da seleção feminina da Coreia do Norte espelham o país — mas são a simples apresentação de um projeto que rompe o isolacionismo da nação e chega onde poucos, na verdade, têm sequer noção.

Este domingo, na Colômbia, a Coreia do Norte venceu o Japão na final de Bogotá e conquistou o Campeonato do Mundo Sub-20. Na verdade, conquistou o Campeonato do Mundo Sub-20 pela terceira vez, juntando 2006 e 2016, e igualou Alemanha e Estados Unidos enquanto recordista de triunfos na categoria. As camadas jovens norte-coreanas têm uma palavra a dizer nas competições internacionais há cerca de duas décadas e o atual selecionador, Ri Song Ho, recordou o papel essencial que o desporto tem na sociedade do país.

“O futebol feminino é uma modalidade muito promissora no nosso país e o governo está concentrado no seu desenvolvimento. A partir dessa perspetiva, talvez as nossas condições sejam muito melhores do que as dos outros países, comparativamente. Temos muito a beneficiar desse aspeto”, disse o treinador durante o torneio que decorreu na América do Sul.

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Mas há mais para além do apoio institucional. Brigitte Weich, uma realizadora austríaca que foi autorizada a filmar dois documentários sobre o futebol feminino na Coreia do Norte durante várias visitas a Pyongyang nos últimos 20 anos, explicou recentemente que o sucesso parte da ideologia “juche”, a ideologia central do Estado norte-coreano que frisa a importância da auto-confiança, da autonomia e do papel dos cidadãos enquanto “mestres da revolução e da construção social”. “Além do desporto, não existem muitas áreas onde um país como a Coreia do Norte possa ter sucesso em palcos internacionais”, lembrou a austríaca em entrevista ao jornal Le Monde.

E essa ideia, precisamente, apareceu a meio dos anos 80. Na altura, Kim Jong Il — então herdeiro da liderança norte-coreana, pai do atual Kim Jong Un –, muito acalentado pela bem-sucedida candidatura da Coreia do Sul à organização dos Jogos Olímpicos 1988 em Seul, percebeu que o desporto do país estava reduzido ao atletismo e à ginástica, principalmente no que dizia respeito às mulheres. No final de 1985, o futuro líder anunciou a criação de 18 equipas femininas de futebol, para além da fundação da seleção nacional e respetivas camadas jovens.

“Temos de desenvolver o futebol feminino. Recentemente, a qualidade da nossa seleção feminina melhorou muito. Podem conquistar torneios internacionais num futuro próximo se continuarem a trabalhar muito”, terá dito Kim Jong Il, citado pelo livro “Bukan Cheyuk Jaryojip” sobre o desporto norte-coreano, que acrescenta que o otimismo do futuro líder não ficou afetado pela derrota no jogo de estreia da seleção, um 4-1 contra a China em dezembro de 1989.

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Kim Jong Il, na realidade, tinha razão. A forma como lá chegou, porém, é discutível. Sem qualquer base ou tradição no futebol, o país teve de ir buscar jogadoras a todas as modalidades imagináveis: incluindo ginástica, atletismo e até patinagem no gelo. As atletas não tinham a opção de recusar a mudança para o futebol e a larga maioria relatou a Brigitte Weich um cenário de treinos quase militares, para além de histórias de abortos forçados para evitar ausências devido a gravidez e consequente maternidade.

Para além dos três Mundiais Sub-20, a Coreia do Norte já conquistou três Taças Asiáticas e tem três medalhas de ouro nos Jogos Asiáticos no escalão sénior. No Campeonato do Mundo, chegou aos quartos de final em 2007, não passou da fase de grupos em 1999, 2003 e 2011 e falhou a qualificação em 2015 e 2019, não tendo sequer tentado o apuramento para 2023 devido à pandemia de Covid-19. Nos Jogos Olímpicos, marcou presença em Pequim 2008 e Londres 2012, tendo falhado tanto o Rio 2016 como Paris 2024, abdicando também de Tóquio 2020.