Mais uma noite, mais uma Assembleia Geral, mais um par (ou bem mais do que isso) de horas para discutir muito mais do que aquilo que era o âmbito da reunião magna, neste caso a votação do Relatório e Contas do exercício de 2023/24 com um prejuízo de 21,1 milhões de euros justificado em grande parte “pelo impacto da aplicação do MEP [Método de Equivalência Patrimonial] das participadas, com especial destaque para a Benfica SAD, para além da diminuição do resultado líquido da atividade isolada do clube”. No final, acabou por sobrar aquilo que tem sobrado em todos os encontros recentes: novo “cartão amarelo” à Direção, que em junho tinha conseguido sufragar à tangente mas com sucesso o Orçamento (47,61%-43,2%).
Mais de quatro horas depois do início da Assembleia Geral, e numa altura em que alguns associados ainda falavam (com muitos a deixar também o Pavilhão da Luz pelo adiantado da hora), José Pereira da Costa, agora líder da Mesa depois da demissão de Fernando Seara, anunciou que o Relatório e Contas tinha sido chumbado com 53,63% de votos contra e 46,37% a favor. Esses resultados não tiveram um impacto direto em Rui Costa e restante elenco diretivo mas acabaram por ser um espelho da atual realidade do clube em termos institucionais em mais uma reunião magna onde Jaime Antunes, vice-presidente e administrador da SAD, foi o mais visado por parte dos associados. No polo oposto, Noronha Lopes, antigo candidato à liderança do clube derrotado por Luís Filipe Vieira, foi o mais aplaudido num discurso muito crítico com os atuais dirigentes. Antes, Rui Costa abriu a reunião magna assumiu o resultado negativo apresentado.
“É um resultado que não é bom, que não queremos que se repita”, assume Rui Costa
“Antes de mais, quero agradecer a vossa presença. Acreditamos que o Benfica é tanto mais forte e mais robusto quanto maior for o contributo da sua massa associativa. Um contributo e uma dinâmica que se constatam em todo o processo de renovação dos estatutos, cuja aprovação na generalidade de uma proposta única consensual foi já alcançada. E iniciou-se, também, a análise e votação na especialidade, a qual continuará em data a anunciar pela Mesa da Assembleia Geral. É um caminho que queremos continuar a percorrer juntos, com a participação de todos, com elevado sentido de responsabilidade e ambição. A forma como temos convergido para uma nova constituição, a forma como todos queremos continuar a convergir nesta matéria, dignifica o Sport Lisboa e Benfica e deixam-no mais preparado para enfrentar os desafios vindouros”, começou por referir Rui Costa, num discurso lido no início da noite.
“Hoje reunimos para apresentar, discutir e votar o Relatório e Contas relativo à temporada 2023/24. Trata-se de uma época em que tivemos alegrias mas também algumas desilusões. Ficámos aquém daquilo que queremos e devemos fazer, ainda que nas cinco modalidades de pavilhão, o Benfica tenha conquistado 22 títulos e troféus em 37 provas disputadas no âmbito nacional, mais de metade de tudo o que competimos. Foi ainda uma época onde tivemos mais equipas a participar em provas europeias e onde estabelecemos um máximo histórico de atletas do Benfica numa edição dos Jogos Olímpicos. Estes são feitos que nos devem orgulhar, é certo, mas, insisto muito, ainda assim abaixo daquilo que queremos fazer. Ambicionamos mais. Queremos, temos condições e devemos vencer ainda mais”, apontou sobre as modalidades do clube.
“Para esta época, procurámos corrigir o que correu menos bem. Pretendemos renovar os títulos ganhos e irmos em busca de novas conquistas. A nossa história e os nossos sócios assim o merecem. E vamos fazê-lo com solidez e estabilidade económica, retificando o que aconteceu neste exercício, corrigindo o resultado negativo apresentado. Um resultado que não é bom, que não queremos que se repita, que embora tenha a sua justificação não voltará a acontecer. Quero ainda frisar o contínuo crescimento da nossa massa associativa, resultando em receitas de quotização recorde. Assim como termos atingido receitas de merchandising nunca conseguidas. Estes são dados que refletem a paixão e a dedicação dos benfiquistas, e que a todos os associados muito orgulham”, assumiu Rui Costa a propósito do Relatório e Contas.
“Paixão e dedicação que se nota, de forma muito evidente também, em todas as Casas Benfica, cujo trabalho em prol do engrandecimento do nosso clube é notável e imprescindível, de resto, à semelhança do extraordinário percurso da Fundação Benfica. Resta-me manifestar o desejo de que possamos debater nesta Assembleia com a elevação que o Benfica nos exige. Não podemos, nem devemos, estar sempre de acordo em todos os temas. Mas é da discussão, com respeito mútuo, que se engrandece o Benfica”, concluiu, num período que teve palmas, alguns silêncios e marcou o arranque de uma Assembleia Geral que voltou a contar com cerca de 20 associados a pedirem a palavra para, aí sim, apontarem a mira a vários “alvos” internos.
Aplausos para Noronha, (muitos) assobios para Jaime Antunes e pedidos de demissão
Alguns dos nomes visados por Luís Mendes, que não esteve presente esta noite no Pavilhão da Luz, foram aqueles que os associados mais foram referindo durante as intervenções. Três principais exemplos? Jaime Antunes e Fernando Tavares, vice-presidentes (no caso do primeiro, também administrador da SAD) que transitaram dos últimos elencos de Luís Filipe Vieira, e Nuno Costa, chefe de gabinete de Rui Costa que fazia a mesma função nos derradeiros tempos do anterior líder no clube. Houve ainda uma pergunta sobre um cenário possível de “riscar” Vieira de sócio dos encarnados e, mais uma vez, o pedido para o que o conjunto da Luz possa avançar para um cenário de eleições antecipadas quando está a um ano do sufrágio. Depois tomaram a palavra algumas das personalidades mais “mediáticas”, também com “tendências” definidas.
Quando subiu ao palanque, Mauro Xavier foi assobiado, falando depois quase sem interrupções. “O facto de pela primeira vez em 14 anos o Benfica apresentar resultados financeiros negativos deve ser visto como um alerta para reforçarmos o rigor. O total do orçamento das modalidades tem de estar limitado ao valor das receitas das quotizações, mais as receitas que as próprias modalidades consigam gerar. Apesar do maior investimento de sempre, os resultados estão muito aquém do esperado. Todos podemos errar mas temos a responsabilidade de corrigir e emendar e não se insistir no erro. O silêncio não contribui para a nossa união. Nas palavras imortalizadas por Borges Coutinho, ‘O Benfica não pode ter medo do Benfica'”, referiu numa reunião magna onde uma fotografia que circulou nas redes sociais com alguns associados do clube conhecidos na blogosfera voltou a ser comentada entre alguns dos presentes mais novos no Pavilhão.
Depois, Noronha Lopes. Num discurso muito aplaudido e que foi filmado em algumas partes por associados que estavam no recinto, o candidato que perdeu para Luís Filipe Vieira na sua última reeleição apontou o dedo a Rui Costa apesar de ter deixado depois o palanque para cumprimentar o presidente dos encarnados. “Na SAD as contas mostram um desequilíbrio de curto prazo muito superior a 100 milhões de euros. Não há contas certas quando não há controlo. No início do mandato prometeu uma gestão financeira equilibrada com foco no sucesso desportivo. Hoje em dia não temos uma coisa nem outra. Assistimos a sinais preocupantes de organização interna. Senhor presidente, não será o passado a tornar o Benfica cada vez maior. Precisamos de visão e estratégia para o futuro. Os benfiquistas querem saber onde queremos estar daqui a cinco ou dez anos. Como crescer de forma sustentável? Como garantir a competitividade? Qual o plano reverter este processo de desvalorização? Estas perguntas exigem resposta”, começou por apontar.
“O Benfica tem de ser líder e nunca um seguidor. Aos recados do presidente da Liga sobre os direitos televisivos devemos responder sem hesitações: o Benfica não aceita paternalismos de ninguém e deve ocupar o espaço no futebol português à medida da sua grandeza e da contribuição para a indústria do futebol, nunca saindo enfraquecidos de qualquer negociação futura porque, senhor presidente, não podemos ser rápidos a desmentir notícias de jornais e ficar calados quando o momento exige uma resposta. O nosso futuro constrói-se com uma liderança forte, com uma visão clara, com uma estratégia de longo prazo e com as melhores pessoas do nosso lado. É isso que esperamos. Todos queremos muito ganhar e estaremos daqui para a frente todos com Bruno Lage e com a equipa até ao Marquês, sempre tendo presentes as palavras de Cosme Damião: ‘Não somos benfiquistas de coração porque esse um dia pára, somos benfiquistas de alma porque essa é eterna”, acrescentou Noronha Lopes, na intervenção mais aplaudida da noite no Pavilhão da Luz.
Ainda antes da interrupção para votação do Relatório e Contas e inscrição para discursos em relação ao ponto 2 da Ordem de Trabalhos, Jaime Antunes foi a outra figura em maior destaque pela contestação que nem mesmo quando deixou “farpas” aos clubes rivais conseguiu inverter esses assobios. “Muitos sócios misturam contas do clube com contas do consolidado. Não houve descontrolo das contas das modalidades, tiveram um comportamento até bastante positivo em relação ao que estava orçamentado. O resultado negativo é fácil de explicar: tivemos um processo inflacionista no país, só as licenças da Microsoft aumentaram mais de 15%”, atirou numa fase de maior barulho e agitação no Pavilhão das águias.
“O Benfica este ano investiu cerca de três milhões em infraestruturas no Estádio Universitário, tínhamos um défice de oferta na margem norte do Tejo para as classes mais jovens da formação e estávamos a perder inclusivamente esse mercado para o Sporting. Libertámos o espaço que ocupávamos nos Pupilos, o que permitiu criar espaço para a formação do futebol feminino. Fizemos a reorganização de todo o património imobiliário no Seixal. É possível fazer melhor? Sim mas não é possível aumentar a qualidade. O Benfica aumentou também as suas equipas. Não tínhamos andebol feminino, voleibol feminino. A não ser que queriam começar a cortar equipas, nós começamos a cortar equipas”, referiu. “O Benfica nunca esteve em risco no fair play financeiro. O Benfica nunca precisou de um perdão bancário de 100 milhões para pagar aos seus fornecedores, o Benfica não tem uma lavandaria”, apontou mais tarde a visar os rivais.
Já depois da 1h da manhã falou João Diogo Manteigas, único candidato confirmado às eleições do Benfica em 2025. Já depois de ter feito três perguntas a Fonseca Santos, presidente do Conselho Fiscal e Disciplinar dos encarnados, fez também o mesmo com Rui Costa mas com mais afirmações do que questões. “Nas últimas duas semanas, foi atacado cobardemente duas vezes fora desta casa. Desafio-o a pegar no telefone para dizer a esses dois sócios [Luís Filipe Vieira e Luís Mendes] para virem falar aqui à nossa frente. Por outro lado, permita-me dizer-lhe o seguinte: o presidente do Benfica não recebe recados do presidente da Liga ou de um potencial candidato à Federação. Exija a reformulação dos quadros competitivos e a redução do número de clubes. Aproveite para lhe pedir de volta a águia de ouro atribuída este ano e despeça a todos os trabalhadores do Benfica que estão a promover a ida desse senhor para a Federação”, salientou.
Por fim, com muito menos pessoas na sala, Rui Costa ainda respondeu a algumas das questões que tinham sido deixadas ao longo de quase seis horas de reunião magna. “É triste que o diretor financeiro desapareça dois dias antes de uma Assembleia Geral e reapareça três meses depois a dois dias de uma Assembleia Geral. Justifica a saída sem pés nem cabeça”, atirou sobre Luís Mendes, antigo vice-presidente que saiu do clube em junho. “Vai ser um ano difícil mas vamos ter capacidade para dar a volta com a vossa força e o apoio. O Campeonato está no início e a equipa tem qualidade para dar a volta”, referiu sobre o futebol.
Foi também durante a intervenção de Jaime Antunes que mais se ouviu o cântico de “demissão”, à semelhança do que já tinha acontecido no sábado e na reunião magna de junho. Apesar de haver eleições no Benfica daqui a um ano e de não existir qualquer cenário em cima da mesa que pudesse levar a um sufrágio antecipado, a Direção liderada por Rui Costa continua a sentir a pressão do descontentamento dos sócios encarnados que marcam presença em Assembleias Gerais, visivelmente conhecedores da realidade do clube como se vai percebendo nas questões levantadas nos discursos feitos no palanque e nas críticas que se vão ouvindo. E agora? Ninguém saberá. Aquilo que parece certo é que, ao contrário de exemplos passados, nem a retoma do futebol com Bruno Lage está a conseguir pacificar o universo Benfica fora dos relvados.