Um homem está tão feliz por estar finalmente num Dunkin’ Donuts que nem sabe que bolo escolher, para exasperação da sua melhor amiga. O donut escolhido acaba por ser banal, como se esperaria de uma loja de cadeia, mas o homem sorve-o com o contentamento infantil que encontramos no conforto, no conhecido. É um momento ligeiro e cómico, mas que acaba por ganhar outro encanto porque aparece quase no fim das perto de duas de Will & Harper, um documentário exatamente sobre o desconforto do desconhecido, da luta contra o que somos e o que fingimos ser.
Will é Will Ferrell, o popular e desbragado ator cómico, o tal homem que só quer enfardar calorias vazias. E Harper é Harper Steele, a sua melhor amiga, que conheceu em 1995 como Andrew Steele, um dos mais prolíficos guionistas do programa de culto Saturday Night Live. Iniciaram-se ambos na mesma semana e depressa criaram uma parceria de sucesso, que resultou em vários sketches e filmes (como Eurovision Song Contest: The Story of Fire Saga, um filme sobre a Eurovisão no qual Salvador Sobral tem uma curta participação).
Ao fim de quase 30 anos de companheirismo, Andrew revelou um segredo da vida toda: sentia-se uma mulher e ia iniciar o processo de transição. Disse-o num e-mail para os mais próximos (ou não fosse ele um guionista, alguém que prefere a palavra escrita), em plena pandemia, que terminou com “instead of an asshole, I’ll be a bitch” (algo como “em vez de um parvalhão, serei uma cabra”). E assinou “Nome Por Determinar”. A reação de Will Ferrell foi a de amor incondicional, mas também de confusão. Nunca suspeitou que o seu amigo vivia uma vida secreta repleta de angústia, tristeza e tentativas de suicídio.
[o trailer de “Will & Harper”:]
O documentário agora estreado na Netflix apanha os dois amigos cerca de dois anos depois desta mudança. Passarão 16 dias a fazer uma viagem de carro que atravessará os Estados Unidos, de Nova Iorque a Los Angeles. A jornada tem dois objetivos: por um lado, que possam usar o tempo ao volante para fazerem todas as perguntas que sempre quiseram fazer — sobre como é ter mamas, sobre a vontade de voltar a ter uma relação, sobre como se escolhe um nome novo. Por outro, fazer com que Harper (que sempre adorou conduzir pela América mais profunda e procurar os bares mais manhosos) teste as águas: será tão confortável fazer este percurso enquanto pessoa trans como era como homem? “Eu não sei se consigo ir aos mesmos sítios como Harper”, apoquenta-se.
A viagem começa na cidade onde Harper mora, Nova Iorque. Will Ferrell vai ter com ela e a primeira paragem é para tomar o pequeno-almoço com as filhas da guionista. É a primeira ocasião na qual é possível começar a descascar todas as dúvidas desconfortáveis, num momento de grande generosidade e respeito entre todos. Daí seguem para o mítico 30 Rock, a sede da NBC, onde se cruzam com colegas antigos e mais recentes dos SNL, como Tina Fey, Seth Meyers ou Tim Meadows.
Realizado por Josh Greenbaum, premiado já pelo seu trabalho em documentários, Will & Harper tem sempre um tom intimista, nunca reconhecendo as câmaras ou a pequena equipa que rodeia os intervenientes. Os momentos não são guionados e vão rapidamente da lágrima à parvoíce, como uma boa conversa entre amigos. O resultado traz bastante proximidade e torna o filme num objeto carinhoso, mas levanta uma questão, assumida pela própria Harper na segunda metade: este é um ambiente altamente controlado, onde toda a gente é simpática e compreensiva, e não o quotidiano real de alguém trans. Exemplo disso é a cena em que, após um jantar entre ambos publicado nas redes sociais, os comentários descambam, num claro contraste com as conversas cara a cara até com o mais empedernido dos burgessos numa sala de snooker perdida nos arrabaldes.
Will Ferrell apresenta-se como o amigo protetor e atento que, apesar disso, pode dizer uma provocação a qualquer instante (“Conduzes pior por seres uma mulher?”). Está ali para mostrar que está tudo OK fora da zona de conforto, como quando Harper lhe diz que detesta a sua voz tão masculina e ele a leva a um karaoke. É um filme encantador para quem tem empatia. Para os outros, há sempre as caixas de comentários.