Um calendário “desadequado” e um planeamento “notoriamente desadequado” face à capacidade de resposta do mercado são os principais motivos avançados pelos gestores das Infraestruturas de Portugal (IP) para os atrasos de vários anos na execução e conclusão das obras do plano Ferrovia 2020.
O vice-presidente da empresa que tem o pelouro ferroviário reconheceu mesmo que “começar um projeto para quatro anos e acabar em oito anos foi uma estupidez completa”.
O mea culpa foi feito por Carlos Fernandes, que afirmou esta quarta-feira no Parlamento que enquanto técnico no gabinete do ministro que apresentou o plano (Pedro Marques tinha a pasta das Infraestruturas em 2016) não acreditou tecnicamente no mesmo.
Isto porque sem os projetos contratados, era impossível fazer as obras de modernização de várias linhas ferroviárias em simultâneo em quatro anos. Mas argumentou que os técnicos tinham muita vontade de fazer obra depois dos anos de paragem durante o período de assistência financeira. E garantiu que a IP está a aprender com os erros no planeamento em futuras obras da ferrovia, nomeadamente o PNI 2030 (plano nacional de infraestruturas sucessor do Ferrovia 2020) e na alta velocidade.
O vice-presidente e presidente da IP, Carlos Fernandes e Miguel Cruz, foram chamados pela comissão de obras públicas do Parlamento a explicar os sucessivos atrasos em praticamente todas as obras ferroviárias do plano 2020 pela Iniciativa Liberal. O deputado Carlos Guimarães Pinto acusou a empresa pública de infraestruturas de ter uma gestão política do calendário. “Se eram impossíveis de executar porque os apresentaram?” E dá a sua versão da resposta: “Porque havia conveniência política”. E assim, “criou-se uma expetativa nas pessoas e isso tem um custo”.
Entre outros fatores apontados para a demora estiveram os concursos vazios ou propostas abaixo do valor-base, a falta de engenheiros e da própria capacidade da empresa em dar resposta. Mas também razões mais inesperadas como a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e a visita do Papa e os concertos que interromperam durante dias as obras na Linha de Cascais, os roubos de material dos locais de obra que são uma preocupação crescente, e até pontuais descobertas arqueológicas que trazem atrasos adicionais.
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O presidente da empresa, Miguel Cruz, admite que existiu um “excesso de otimismo”, mas assinala que é muito fácil tirar agora essa conclusão. Mas diz que a empresa assume a sua responsabilidade nos planeamentos. “Estamos a aprender e a ajustar”, dando como exemplo o tempo de interação média necessário para ter autorização para o abate de árvores.
O Ferrovia 2020 tinha um plano inicial de execução até 2020, mas segundo um recente levantamento feito pelo jornal Público ainda há obras em curso em sete das oito linhas onde estavam previstas intervenções.
Numa intervenção inicial, Miguel Cruz, considerou que existiu “uma desadequação entre a data de conclusão prevista e a data em relação à qual era viável realizar as obras com a capacidade de resposta do mercado”. E lembra que, quando se arrancou com este plano de investimento em 2016, o país estava a sair do programa de assistência financeira que deixou uma forte limitação na “dimensão do mercado, da capacidade de resposta e da própria adaptação da estrutura da IP que, após um vale de investimento, arranca muito lentamente”. Não havia projetos feitos quando foram anunciados calendários de obras para executar em poucos anos.
“Estamos a falar de pouco mais de oito anos após os estudos preliminares para execução”. São ciclos de investimento muito pesados com projetos muito complexos com várias especialidades. Basta um problema numa especialidade para ter atrasos em cadeia. “A partir do momento em que temos um pecado original que é a desadequação do calendário, o investimento é sempre olhado como uma tentativa de concluir os processos o mais rapidamente possível”.
O gestor apontou ainda para outros fatores, como concursos vazios ou impugnações, uma tendência que está a diminuir. Mas assegurou que os fundos comunitários previstos para a execução destes projetos foram todos aproveitados, tendo contribuído para tal o faseamento dos projetos. E, dando como exemplo o corredor internacional sul, onde o custo de obra passou de 620 milhões de euros para 650 milhões de euros, desvalorizou derrapagens financeiras.
Nas situações em que se verificam propostas abaixo do preço base diz que a empresa foi corrigindo cirurgicamente os processos, introduzindo maior exigência nos requisitos técnicos, excluindo critérios exclusivamente fundamentados no preço para ter mais concorrência e mais qualidade nos projetos.
Os gestores da IP repetiram várias vezes a explicação de que são “projetos muito complexos” e se um empreiteiro se atrasa na catenária isso tem consequências em todo o projeto. Mas insistiram que os prazos têm vindo a ser ajustados à realidade que a empresa tem encontrado no terreno.
Dos roubos de material à visita do Papa e aos concertos que atrasaram a Linha de Cascais
Miguel Cruz alertou ainda para um fenómeno mais recente que tem introduzido novos atrasos nas obras em curso — o roubo de material. “Estamos a passar por uma situação muito complicada com impactos financeiros e temporais”, referindo os casos da linha da Beira Alta, linha do Algarve (atraso de três meses devido ao roubo de cabo) e linha do Oeste (atraso de seis meses). Foi um fator que não foi considerado no planeamento das obras.
“Esta situação tem vindo a revelar-se premente muito recentemente. A nossa primeira preocupação não é o valor, mas sim o tempo”, sublinhou. “Roubo de cabo significa necessariamente que é preciso encomendar”, o que pode demorar seis meses. Mas há outros equipamentos a serem roubados, como aparelhos de via. Isto também tem consequências no planeamento.
Uma das obras com atrasos mais significativos é a modernização da Linha da Beira Alta, onde a circulação ferroviária foi interrompida em 2022 e cuja reabertura está agora só prevista para 2025, depois de sucessivos atrasos. A Linha da Beira Alta deveria ter fechado durante nove meses, mas está encerrada há dois anos — segundo os gestores da IP a modernização não teria sido possível executar com a linha a operar. Esta infraestrutura tem vindo a reabrir gradualmente — o próximo troço previsto é Gouveia e Guarda — e a reabertura total só está prevista para o início de 2025.
Os gestores da IP apontam a modernização da Linha de Cascais como “um dos melhores exemplos da falta de capacidade de resposta do mercado” pela muita dificuldade de resposta por parte do empreiteiro. Até as interrupções introduzidas nas obras pela visita do Papa durante a Jornada Mundial da Juventude ou por causa de concertos (em que a CP assegurou serviço noturno, parando o período de obras) “tiveram consequências muito significativas”.