A convocatória que o Governo enviou às comunidades da zona de Lisboa para a reunião desta terça-feira não referia o assunto, nem indicava os participantes, segundo um email mostrado à Lusa por uma das representantes das associações convocadas.
Em causa está a reunião convocada pelo ministro da Presidência, António Leitão Amaro, na sequência dos incidentes desencadeados em vários bairros da Área Metropolitana de Lisboa (AML) após a morte de Odair Moniz, baleado por um agente da Polícia de Segurança Pública, no dia 21, em circunstâncias ainda por esclarecer.
O email do Governo, enviado às 17h50 de sexta-feira (o que também motivou críticas em relação à pouca antecedência), não tinha “caderno de encargos” para a reunião, convocada para esta terça-feira, às 14h30, confirmou à Lusa outro representante, enquanto aguardava na sala de espera do Campus XXI, em Lisboa.
O mesmo representante perguntou, em resposta ao email, “por três vezes, qual era o objeto da reunião, o caderno de encargos e os participantes”, tendo ainda sugerido uma “reunião aberta”, entendendo que “o Governo não pode escolher com quem dialogar”.
Foi só através do comunicado que o Governo publicou na sexta-feira, duas horas depois de enviar o email mostrado à Lusa, que as associações souberam que na reunião, já iniciada, estariam também as ministras da Administração Interna e da Juventude e Modernização e dirigentes das polícias (GNR e PSP), do Instituto Português do Desporto e da Juventude e da Agência para a Integração, Migrações e Asilo.
Na sala de espera, representantes de duas dezenas de associações representativas das comunidades da AML manifestaram críticas ao processo que conduziu à reunião desta terça-feira, considerando-o “opaco e sem transparência”.
Flávio Almada, do movimento Vida Justa, e Mamadou Ba, da associação SOS Racismo, criticaram o foco em Lisboa. “É escandaloso”, qualificou Mamadou Ba, destacando que “o racismo é um problema nacional” e recordando os casos recentes de discriminação no Alentejo e no Algarve. O Governo está a olhar para a questão como se fosse “um beco, um cantinho e não um tema nacional”, concordou Flávio Almada, defendendo que tem de haver uma abordagem transversal.
Ainda que queira acreditar na “boa vontade” do Governo, Paula Cardoso, da associação Afrolink, não escondeu o ceticismo em relação à eficácia de uma reunião com dezenas de organizações. “É para quê, para nos apresentarmos? Para isso não precisávamos de uma reunião”, disse, comentando ainda o atraso para o início dos trabalhos (cerca de meia hora), sem qualquer justificação dada a quem esperava.
Mamadou Ba teme que o Governo queira usar as associações para “estancar a indignação e o descontentamento” das comunidades, recordando que, até aqui, nunca foram consultadas sobre as alterações institucionais e estruturais das políticas públicas sobre racismo e integração. A convocatória para a reunião desta terça-feira pareceu “uma espécie de conselho de guerra”, considerou, garantindo que “a SOS Racismo não servirá de corta-fogo para ninguém”.
Também bem presentes entre os representantes das associações estavam as declarações que o primeiro-ministro, Luís Montenegro, fez na segunda-feira, à entrada da reunião do Conselho Nacional para as Migrações e Asilo, considerando que as questões raciais e de ódio não têm “uma natureza preocupante” em Portugal.
“A nossa luta é, portanto, descabida?”, questionou Paula Cardoso, confessando que esperava “um primeiro momento” reservado às associações, antes de juntar à mesma mesa outros intervenientes.
Paula Cardoso considera ainda que ficou claro que o Governo “não sabe quem tem de chamar” para debater estes problemas e destacou que, além de ter “deixado de fora associações que estão no terreno”, o executivo convocou “grupos que já não têm atividade e outros que acabaram de nascer e que não têm ainda qualquer intervenção” no terreno.
“Se não sabem quem são, falavam com alguém que as soubesse identificar”, sugeriu.
Na lista de convites para a reunião desta terça-feira inicialmente divulgada pelo Governo, com o intuito de “dialogar” com as comunidades da AML, não estavam coletivos como o movimento Vida Justa, que só foi incluído depois de pedir explicações. Também o Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e Xenofobia expressou “veemente repúdio pela exclusão do Coletivo Consciência Negra e FAR — Frente Anti-Racista”.
Na lista inicialmente divulgada pelo Governo foram convocadas as associações Moinho da Juventude, Mundo Nôbu, Afrolink, Movimento Nu Sta Djuntu — Estamos Juntos, Associação Caboverdeana, Associação Cultural e Juvenil Batoto Yetu, Academia do Johnson, Associação Helpo, Semear o Futuro, Djass — Associação de Afrodescendentes, Femafro — Associação de mulheres negras, africanas e afrodescendentes em Portugal, SOS Racismo, Plataforma Gueto, Associação para a Mudança e Representação Transcultural, Associação Filhos e Amigos de Farim, Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos e Associação Kamba.
Apesar das críticas, sublinhou Mamadou Ba, as associações não têm “uma lógica de bota-abaixo” e estão disponíveis para “ouvir as propostas concretas” do Governo. Porém, acrescentou, “tem de haver uma rutura com a prática atual, que olha para os bairros como zonas de guerra e de exceção jurídica”.
A iniciativa do Governo surge na sequência dos acontecimentos que se seguiram à morte de Odair Moniz, cidadão cabo-verdiano de 43 anos, morador no bairro do Zambujal, na Amadora, que há uma semana foi baleado por um agente da PSP, no bairro da Cova da Moura, no mesmo concelho, o que desencadeou tumultos em vários bairros da AML, onde foram queimados e vandalizados autocarros, automóveis e caixotes do lixo. Há cerca de duas dezenas de detidos, outros tantos suspeitos identificados, e sete pessoas feridas, uma das quais com gravidade.