O velho tema da “prostituta/stripper/dançarina com um coração de ouro”, tão pragmática na sua atividade como ingénua em matéria de sentimentos, e que encontramos em filmes tão díspares como As Noites de Cabíria, de Fellini (1957), Irma La Douce, de Billy Wilder (1963), Sweet Charity — A Rapariga que Queria Ser Amada, de Bob Fosse (1969), Pretty Woman: Um Sonho de Mulher, de Garry Marshall (1990), ou The Players Club, de Ice Cube (1998), volta a ter expressão em Anora, de Sean Baker, Palma de Ouro em Cannes. O autor de títulos como Take Out, Tangerine ou The Florida Project, sobre personagens que vivem, trabalham ou sobrevivem nas franjas da sociedade americana, mas deficitários na narrativa, na estética e no drama, tem aqui o seu filme mais coerente, seguro e conseguido.
A Anora (Mikey Madison) do título prefere que lhe chamem Ani e é uma azougada dançarina erótica de ascendência uzbeque, com 24 anos, que vive e trabalha no bairro de Brighton Beach, em Brooklyn, e vende os seus favores sexuais a alguns clientes. Uma noite, o dono do clube onde trabalha pede-lhe que tome conta de um cliente russo que fala mal inglês. Ele é o jovem Vanya Zakharov (Mark Eydelshteyn), o filho mimado, efusivo, borguista e irresponsável de um oligarca russo que está a estudar nos EUA. Vanya fica tão fascinado por Ani que a leva para a luxuosa casa dos pais para terem relações sexuais e a contrata depois em exclusividade por uma semana como falsa namorada, um acordo feito parte de transação, parte de atração.
[Veja o trailer de “Anora”:]
Ani e Vanyalançam-se num virote de festas, sexo e compras, rumando depois a Las Vegas com dois casais de amigos da mesma idade, onde o divertimento e os gastos sumptuários continuam. Num impulso, acabam por se casar. De volta a Nova Iorque, Ani deixa o emprego e vai viver com o marido, passando o dia na cama como coelhinhos, a jogar jogos de vídeo e a fumar erva. Mas esta felicidade vai ser sol de pouca dura, porque a notícia do casamento chega aos pais de Vanya, que estão em Moscovo. Ficam apopléticos, sobretudo a mãe, e mandam o padrinho do rapaz, e seu vigilante, Toros (Karen Karagulian), um sacerdote ortodoxo arménio-americano, oferecer dinheiro à rapariga para se afastar e acabar de imediato com a ligação por via legal.
Por estar num batizado, Toros envia o seu irmão Garnick (VacheTomasyan) e um jovem capanga russo, Igor (YuraBorisov), para que o casal não fuja enquanto ele não chega.
Rodado em película de 35mm e widescreen pelo diretor de fotografia DrewDaniels, conseguindo assim um efeito realista de grande autenticidade, táctil e áspero, por onde quer que as personagens se movimentem, o filme precipita-se então numa vertigem febril mas fluida de farsa, tensão e comédia, enquanto Ani e o equivalente étnico dos Três Estarolas procuram Vanya em restaurantes, bares, pizzarias e clubes de strip, ao mesmo tempo que ralham uns com os outros e a rapariga não pára de insultar o trio.
[Veja uma entrevista com Mikey Madison:]
Sem nunca perder o sentido da história, o controlo da narrativa, a homogeneidade do tom nem a identidade visual, ou a verosimilhança de personagens, locais e situações, Sean Baker realiza, em Anora, a comédia screwball possível nos nossos dias. Carregada com um pronunciado viés étnico que faz rir mas também refletir (todos os intervenientes têm as suas raízes no Leste e querem viver o sonho americano, uns conseguindo-o melhor do que outros); um enredo sentimental da vertente Gata Borralheira, mas pouco; um comentário social — que nunca pesa — sobre a vida e os trabalhos de pessoas como Ani e o abismo cada vez mais cavado entre os que têm muito e os que se esforçam para ter um pouco que seja, e um remate de amargura.
Anora é também uma montra para a fabulosa Mikey Madison (que vimos na pele de um dos membros da “família Manson” em Era Uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino). A portátil e espalha-brasas Madison leva o filme a reboque da primeira à última imagem, interpretando, com espontaneidade, verdade, garra e um misto de experiência de quem foi obrigado a crescer e a safar-se sozinho muito cedo, e de inocência e credulidade ainda infantil, uma Ani tão prática e calejada profissionalmente, como cândida na ilusão romântica de ter encontrado o seu Príncipe Encantado.
[Veja uma entrevista com Sean Baker:]
A simpatia que Sean Baker tem para com ela, e que nos faz partilhar, nunca se transforma em piedade pegajosa. Nem na sequência final no carro, à porta da casa para onde tem tristemente que voltar, em que Ani por fim se vai abaixo e retribui, da única maneira que sabe, ao inesperadamente sensível Igor, a empatia e a compreensão que este demonstrou, a única pessoa a fazê-lo. É uma conclusão pressentida e muito arriscada, que Baker leva a cabo de forma inatacável. Anora inclui-se numa “escola novaiorquina” cinematográfica com antecedentes cotados, e que tem os irmãos Safdie entre os seus representantes mais destacados a trabalhar hoje. E é um filme indie que fala para o seu nicho de público, ao mesmo tempo que tem tudo para agradar a uma plateia mais vasta e mainstream.