Olhos nos olhos, no banco das testemunhas, David Pelicot dirigiu-se ao pai, Dominique Pelicot, e apelou a que revele em tribunal o que fez à irmã, que utiliza o pseudónimo Caroline Darian. “Conta o que fizeste à minha irmã, que sofre todos os dias e vai sofrer para o resto da vida, porque acha que nunca dirás a verdade”, pediu, deixando o mesmo apelo em relação ao seu próprio filho, referindo-se às conversas entre Dominique Pelicot e um dos netos, a quem terá pedido para “fazer de médico”.

A dúvida assombra uma família inteira, nas palavras dos próprios filhos, “devastada” pelas ações de Dominique Pelicot, o homem acusado de drogar e permitir a violação da mulher por cerca de 80 homens durante mais de dez anos. David e Florian Pelicot, de 50 e 38 anos respetivamente, depuseram em tribunal enquanto testemunhas no julgamento do pai que, consideram, se tornou no “julgamento de uma família inteira”. “Esperamos que no futuro consigamos apagar da nossa mente o homem que está à minha esquerda”, disse David Pelicot, referindo-se ao pai, citado pelo canal France 24.

Ao longo do depoimento, David identificou o pai como “este senhor” e manifestou a esperança de que ele e os seus co-réus, 47 homens de várias idades, sejam “punidos pelos horrores e atrocidades que cometeram” contra a sua mãe, Gisèle Pelicot.

Dominique Pelicot confessou praticamente de imediato as agressões sexuais cometidas contra a mulher, após a sua detenção no dia 2 de novembro de 2020, quando foi apanhado por um segurança a filmar por baixo das saias de mulheres num supermercado local. Na investigação do delito, a polícia encontrou um ficheiro com a designação “abusos” numa pen USB ligada ao seu computador, que continha 20.000 imagens e filmes da sua mulher a ser violada quase 100 vezes ao longo de dez anos.

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Em relação a abusos cometidos contra outros membros da família, como a filha ou netos, Dominique Pelicot continua a insistir em tribunal que não fez “nada” com eles, mesmo que tenham sido encontradas, na mesma pen, imagens da filha e de uma nora nuas enquanto dormiam.

“Disseste que ela era uma santa, mas tu eras o próprio diabo”

Florian Pelicot, de 38 anos, o filho mais novo do casal, revelou em tribunal a dificuldade em reerguer-se depois de descobrir que o pai era um dos “maiores criminosos dos últimos 20 anos”. O seu casamento não resistiu às revelações chocantes de que o pai era um agressor sexual. “Sempre disseste que a nossa mãe era uma santa, mas tu eras o diabo em pessoa“, afirmou, dirigindo-se a Dominique Pelicot em tribunal durante o depoimento dos dois filhos.

O filho mais novo do ex-casal — Gisèle Pelicot divorciou-se do marido após descobrir os abusos sexuais — admitiu que houve momentos suspeitos no passado, principalmente à luz do que sabe agora. No seu testemunho, citado pelo The Guardian, lembrou as ocasiões em que foi o pai a atender o telefone da mãe quando ligou. Contou ainda que numas férias de verão, durante um jantar em que a mãe bebeu apenas um copo de vinho, a viu “desligar-se” em frente dos convidados.

“Senti que já não estava connosco, estava completamente grogue, a olhar em frente… Eu disse: ‘Mãe, tu está bem’? Ele levantou-se rapidamente e disse ‘Vou colocá-la na cama’. Fomos para casa. Mas imaginem se me tivesse esquecido de alguma coisa e regressasse a casa, o que teria encontrado? Ele planeou fazer com ela o que agora sabemos que fez”, descreveu.

Revelou ainda que Dominique Pelicot lhe parecia ficar “pouco à vontade” e que “suava” sempre que tinha de aceder ao seu computador para, por exemplo, imprimir desenhos para os seus netos colorirem. Era através desse dispositivo que angariava homens para violar a mulher e no qual guardava as gravações dos abusos que eram depois partilhados por uma comunidade.

A ex-mulher de Florian Pelicot, Aurore, que também foi fotografada nua por Dominique Pelicot com câmaras escondidas, depôs igualmente em tribunal. Revelou que, quando era criança, foi abusada pelo avô, um polícia, e disse compreender a importância deste julgamento. “Hoje quero colocar a questão: como chegámos a esta situação? Como podem os seres humanos fazer tais coisas?”, questionou.

Os depoimentos dos filhos do ex-casal surgem na fase final do julgamento de Dominique Pelicot e dos 49 co-réus no tribunal da cidade francesa de Avignon, no sul do país. O conjunto final de acusados ​​irão ainda testemunhar antes dos pedidos de sentença no final da semana e do veredicto ser conhecido no próximo mês.

Doze homens, incluindo o principal réu, declararam-se culpados dos crimes de abuso sexual e violação em série de Gisèle Pelicot. Os restantes admitiram que tiveram relações sexuais com ela, mas dizem que não tinham qualquer intenção de a violar. Em vez disso, muitos argumentaram que acreditavam que as relações eram consentidas. A sua linha de defesa é a de que pensavam que participavam em jogos sexuais conhecidos pelos dois membros do casal.

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Nas últimas 10 semanas, o tribunal considerou as acusações contra 47 arguidos. Joseph C., um reformado de 69 anos, que visitou o casal em junho de 2020, prestou depoimento em tribunal. Admitiu que se deslocou à residência do casal, mas que não conseguiu ter relações sexuais com a mulher inconsciente.”Foi difícil conseguir uma ereção”, afirmou, acrescentando que ficou 10 minutos no quarto e depois saiu. “Se eu soubesse o que ele estava a fazer à mulher, tê-lo-ia denunciado. Isto é atroz”, garantiu aos juízes.

Texto atualizado de acordo com a data da sentença, prevista para esta quinta-feira, 19 de dezembro