Que melhor forma de celebrar Sara Tavares, um ano após a morte da cantora e compositora, com uma noite de homenagem à música que escreveu e gravou, protagonizada por amigos e (mais do que) confessos admiradores da sua obra? Dificilmente haveria melhor maneira de prestar tributo à artista que deixou um legado palpável, transversal a grande parte da música e cultura nacional. E dificilmente seria possível fazê-lo numa noite mais memorável do que esta.
Os músicos e técnicos que acompanhavam Sara Tavares ao vivo foram a base deste espetáculo intitulado Coisas Bunitas. Foram eles os alicerces que desenharam a base para as interpretações das canções, feitas por vozes de diferentes gerações, sotaques e registos. Noite sem egos, feita de pura comunhão, com uma estrutura bastante horizontal, para a qual todos trabalharam sem receber um único cêntimo — no mínimo inspirador e revigorante. No máximo: foi o que se viu e ouviu.
Ana Moura, Capicua, Carlão, Dino D’Santiago, Djodje, Ivandro, Luiz Caracol, Lura, Miroca Paris, Nancy Vieira, Nenny, Samuel Úria, Selma Uamusse, Slow J e Toty Sa’Med formaram o elenco de intérpretes que se juntou ao baterista Ivo Costa e ao teclista João Gomes (diretores musicais), ao baixista Pity e aos guitarristas Rolando Semedo e Ivan Gomes. Só houve uma ausência no ensemble anunciado para o evento, do cantor Richie Campbell.
Foram eles, e quem trabalhava nos bastidores, os obreiros desta noite e da casa acolhedora em que se transformou o Coliseu dos Recreios nesta terça-feira. Todos em palco a todos os minutos, os músicos passaram o espetáculo — que se prolongou durante duas horas e meia — sentados, entre sofás e poltronas, levantando-se quando chegava a sua vez de descer ao centro do palco para fazer uma interpretação. Foi mesmo um ambiente de casa aquilo que foi construído — já a evocar a Casa Saracotiar que este projeto pretende materializar através das receitas angariadas, um espaço físico em Lisboa que preserve o legado de Sara Tavares e que possa potenciar novos artistas, promovendo ações culturais.
Com direção vocal de Selma Uamusse, foram muitas as versões que iluminaram a sala. A voz poderosa de Ivandro arrebatou todos em Eu Sei; ao lado de Capicua, Lura brilhou em Coisas Bunitas; Carlão protagonizou um dos momentos singulares do serão com Blá, Blá, Blá, de silhueta frente a frente com a da “Mana Sara”, como tantos carinhosamente lhe chamam.
Djodje fez levantar a sala com Mi Ma Bo, num registo quase gospel, de harmonia espiritual; Ana Moura ocupou brilhantemente o papel de Sara em Brincar de Casamento, um dueto com Toty Sa’Med, levando a canção para outro lugar; Dino D’Santiago e Capicua deram vida a um dos seus maiores êxitos, Balancê; Slow J desceu ao centro do palco para a sua Também Sonhar, um dos temas mais aclamados da noite.
Sara Tavares (1978-2023): o “balancê” inquieto e lutador de uma mulher de voz plena
Pelo meio, vários dos músicos foram partilhando palavras sobre a sua ligação com Sara Tavares, relatando histórias do passado ou descrevendo a sua personalidade ímpar, que tanto tinha de “doçura” como de “travessura”. “A minha música com o Prince era a Ponto de Luz da Sara”, revelou Ana Moura, antes de interpretar o tema. “Uma vez o Prince estava cá, liguei à Sara, ela veio, era uma da manhã, e ficámos numa jam pela noite fora.”
Em Bom Feeling, Selma Uamusse demonstrou mais uma vez os seus dotes vocais e a sua generosidade ao convocar Eliana Tavares, sobrinha de Sara, para um dueto familiar. Samuel Úria protagonizou um dos momentos mais especiais do espetáculo com Chamar a Música, o tema com que Sara conquistou o Festival da Canção há precisamente 30 anos, numa sublime arranjo de guitarra e voz. E o alinhamento terminou com uma versão de One Love e uma mensagem clara de união, de apologia de uma sociedade misturada, contra as barreiras que persistem.
Também é esse o legado de Sara Tavares, uma das primeiras cantautoras femininas em Portugal a reclamar tal lugar e a conquistá-lo; um dos primeiros rostos negros a ocupar um lugar de destaque na cultura pop nacional. A obra que construiu é parte fundamental de um cancioneiro afro-português com cada vez mais camadas e impacto, que se cruza naturalmente com tudo o resto que existe por cá, do fado ao pimba, do rock ao rap, do jazz à eletrónica. Como alguém descreveu em palco, é uma “panela de cozedura lenta”, o fruto de “muitos temperos”.
A ideia de uma Lisboa crioula, onde a mistura orgânica entre África e Europa (e não só) se cultiva e celebra, que tão bem em voga tem estado nos últimos anos, tem raízes profundas na postura e música desta portuguesa de origem cabo-verdiana. Que nunca precisou de erguer bandeiras nem de fazer declarações politizadas para o ser, para o simbolizar, para o personificar, desde a cultura negra à causa LGBT. O país de Sara Tavares é a utopia por que tantos almejam, mesmo em momentos difíceis, de tensões na sociedade, de desigualdades sociais, de racismo e violência policial, de ascensão da extrema-direita e de alegadas perceções de insegurança.
O desaparecimento de Sara Tavares lembra que nem sempre as flores são entregues em vida. Era bom que essa tendência se invertesse, que o reconhecimento chegasse em força no tempo devido e não estivesse adormecido, que existisse espaço para momentos de celebração quando eles mais são valiosos. Como é possível que Sara Tavares nunca tenha, em vida, tocado em nome próprio numa sala com a dimensão do Coliseu dos Recreios?
Por mais ingrato que possa ser, esta noite fez-se alguma justiça, ocupando aquela sala emblemática com as suas canções, fazendo soar a sua voz e as cordas da sua guitarra por aquelas paredes e corredores centenários, perante uma plateia lotada e comovida, numa noite de emoções e muita luz interior. Resta (a todos) manter vivo o seu legado de ícone de criatividade e representatividade.