A 1 de setembro de 2022, durante a sessão de apresentação da futura biblioteca António Lobo Antunes, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, deixou um repto e um prazo para este futuro espaço cultural a ser instalado em Benfica, bairro onde o escritor nasceu. “É muito importante que em 2024, durante o ano de 2024, nós possamos estar aqui para inaugurar a biblioteca”, afirmou.
Mais de dois anos depois, não se sabe ao certo quando é que a biblioteca vai abrir. A única garantia é que não vai ser em 2024. “A biblioteca não vai abrir este ano. Isto é algo que nos deixa muito desiludidos”, afirma ao Observador Ricardo Marques, presidente da Junta de Freguesia de Benfica, que se queixa da “opacidade” da câmara quanto a todo o processo.
Desde que decorreu a sessão de apresentação de 2022, não foram feitas quaisquer comunicações públicas ou prestados detalhes por parte do executivo quanto ao estado de preparação da biblioteca António Lobo Antunes. A exceção a esta regra encontra-se na proposta de orçamento municipal para 2025 divulgada no passado dia 13 de novembro pelo município. Dos 1.359 milhões de euros previstos para o próximo ano, 64 milhões serão dedicados à cultura e, neste pelouro, dois projetos de bandeira são apresentados: a abertura do Museu Julião Sarmento e da Biblioteca Lobo Antunes.
No entanto, em resposta às perguntas feitas pelo Observador, a Câmara Municipal de Lisboa mantém-se omissa quanto a explicações sobre a mudança nos prazos — não adiantando datas — e às causas de tal alteração. “Encontram-se em curso os procedimentos tendentes ao início das obras de adaptação do espaço da antiga Fábrica Simões, na Avenida Gomes Pereira, e de instalação da biblioteca”, informa o município.
Segundo a informação disponibilizada pelo Portal Base, o contrato da empreitada para a “execução de obras de adaptação e instalação da futura biblioteca de Benfica”, celebrado com a empresa Ressa, que venceu o concurso público para o projeto, foi apenas assinado a 23 de outubro deste ano e publicado a 8 de novembro. Orçamentada em perto de 2,03 milhões de euros (mais IVA), a obra tem um prazo de execução de 365 dias.
Sem fazer menção ao contrato, a Câmara refere em resposta ao Observador que “neste mês de novembro está previsto o início do conjunto de processos participativos junto da comunidade de Benfica, para concretização dos objetivos e perfil funcional dos serviços e espaços da biblioteca, com a preocupação de que respondam aos desejos e necessidades da comunidade local”.
Ricardo Marques diz que a Junta de Freguesia que preside “desde há um ano que não tem informações sobre esta intervenção”, sendo que a única coisa que vê “todos os dias” é que “ainda não começou a obra”. À frente deste órgão local pelo Partido Socialista desde 2020 — substituindo Inês Drummond no anterior mandato e garantindo a reeleição nas Autárquicas de 2021 — Ricardo Marques diz não ser informado sobre os trabalhos da biblioteca António Lobo Antunes. “É uma coisa sui-generis que nunca tinha acontecido; aliás, diga-se de passagem, não acontece em mais nenhuma área com a Câmara, com a qual temos uma belíssima capacidade de comunicação. Neste caso, não temos, da parte da Cultura da CML, nenhuma informação”, lamenta.
O autarca, de resto, tem uma previsão bastante pessimista quanto a um projeto que era suposto ser “equipamento de bandeira” que”estava nos dois programas eleitorais dos dois partidos que concorreram com a hipótese de ganhar” em 2021. “O facto é que começamos a achar que não iremos ter a biblioteca António Lobo Antunes até ao final deste mandato. Para já, claramente, não a iremos ter até ao final de 2024, aliás as obras não começaram. Muito honestamente, começo a achar que será difícil até 2025 termos esta intervenção terminada ou até iniciada”, critica.
Um projeto antigo com futuro incerto
Ricardo Marques diz sentir em particular as dores de desconhecer o rumo do projeto porque foi uma das figuras que mais força fez para que António Lobo Antunes deixasse o seu espólio em Lisboa, mais particularmente no bairro de Benfica, onde cresceu.
As conversas para que tal aconteça estendem-se até aos primeiros contactos feitos em 2012, durante o mandato de António Costa em Lisboa, mas as negociações foram precipitadas em 2018 perante a iminência de Lobo Antunes levar o seu acervo para fora do país. Nessa altura, Ricardo Marques “recrutou” o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, para esta causa, alertando-o para a situação durante as Marchas Populares de Lisboa.
“Se vier a existir a biblioteca António Lobo Antunes, deve-se acima de tudo à Junta de Freguesia. Os serviços municipais nunca demonstraram vontade de instalar uma biblioteca municipal aqui em Benfica, foi uma luta muito grande, primeiro da presidente Inês junto da vereação e do sr. presidente de câmara Fernando Medina, e depois também da minha parte, que felizmente puxei para esta causa o sr. Presidente da República e a dra. Isabel Alçada [escritora, ministra da Educação entre 2009 e 2011 e consultora de Marcelo Rebelo de Sousa para a educação desde 2016]. Na altura, consegui ganhar-lhes o interesse e foram eles que, de facto, connosco, fizeram muita pressão quer junto da família quer junto da Câmara para que se conseguisse construir a biblioteca”, recorda ao Observador.
As negociações aceleraram em 2019, por ocasião dos 40 anos de carreira literária de Lobo Antunes e do seu romance de estreia, Memória de Elefante, mas a garantia de que o espólio do escritor ficaria em Lisboa foi conseguida dois anos depois, a 28 de junho de 2021, com a assinatura de um protocolo nos Paços do Concelho. “Corresponde a um desejo meu deixar ao país os meus papéis, os meus livros, as minhas condecorações, e nada melhor que deixá-los à câmara da cidade onde nasci e onde me sinto bem”, terá dito o autor, citado pelo município, liderado ainda por Fernando Medina.
Por essa altura, foi desde logo adiantado que tal acervo teria como destino uma biblioteca a instalar na antiga fábrica têxtil “Simões & Companhia Lda”, à época um edifício devoluto cujo processo de requalificação há muito desejado tinha oficialmente arrancado. O anúncio oficial da futura biblioteca António Lobo Antunes ocorreria já no mandato de Carlos Moedas, na cerimónia pública inicialmente mencionada, no dia em que António Lobo Antunes cumpriu 80 anos. O escritor, dada a sua saúde debilitada, não pôde estar presente, fazendo-se representar por uma das filhas, Joana Lobo Antunes, e um dos netos, José Maria Lobo Antunes.
A obra da biblioteca foi acordada num protocolo com a construtora Teixeira Duarte, que se assumiu como mecenas do projeto. A instalação de um equipamento cultural desta natureza no Fábrica 1921 — um complexo de habitação de luxo assente na requalificação da antiga fábrica — foi, aliás, uma das contrapartidas oferecidas pela empresa para a aprovação do loteamento urbano deste empreendimento.
Quando foi feito o anúncio a 1 de setembro de 2022, os apartamentos no Fábrica 1921 já tinham começado a ser habitados e, de acordo com o presidente da administração da construtora, Manuel Teixeira Duarte, a obra estava “praticamente concluída” — mas isto dizia respeito ao projeto residencial e não à biblioteca. Já a 16 de maio de 2023, o atelier Broadway Malyan, responsável pela requalificação da Fábrica Simões e transformação do espaço no Fábrica 1921, anunciou que a primeira fase do projeto estava concluída, não fazendo qualquer menção ao espaço cultural.
Essas omissões são explicadas por Ricardo Marques. “Aquilo foi entregue em bruto e a biblioteca era um projeto à parte, da responsabilidade do município. As contrapartidas públicas da Teixeira Duarte naquele empreendimento pressupunham a entrega de 2000 metros em bruto para a instalação do equipamento que o município quisesse. Daí termos feito muita força para que fosse esta biblioteca”, informa. De 2022 para cá, “não faz sentido que a obra não tenha sido lançada”, afirma. “Há muito tempo que foi feita a intervenção por parte da Teixeira Duarte e a passagem para a Câmara Municipal deste espaço. Não conseguimos perceber o porquê da demora”, lança.
Responsabilidade de “biblioteca âncora” fica do lado da câmara
A gestão das 18 bibliotecas municipais de Lisboa divide-se em dois modelos. Se 11 são geridas diretamente pela câmara, as outras sete — David Mourão-Ferreira, no Parque das Nações, Maria Keil, no Lumiar, Natália Correia, em Carnide, São Lázaro, em Arroios, assim como as bibliotecas dos Olivais, da Estrela e o Espaço Cultural – Cinema Europa, em Campo de Ourique — estão a cargo das juntas de freguesia.
Perante aquilo que considera ser um projeto estrutural para Benfica — que, à data, carece de uma biblioteca municipal, lacuna semi-suprimida pelos serviços do Palácio Baldaya —, Ricardo Marques diz que o seu executivo “fez um pedido para começar a trabalhar naquilo que era o programa funcional com a Câmara para uma possível passagem da gestão desta biblioteca municipal para a freguesia”. Além do mais, sendo também deputado municipal do Partido Socialista, o autarca assinou também uma recomendação apresentada a 10 de janeiro na Assembleia Municipal de Lisboa que faz o mesmo apelo.
Foi após este pedido que Ricardo Marques afirma ter recebido a única comunicação por parte do município quanto à biblioteca, não tendo vindo nem do pelouro da Cultura — acumulado pelo presidente Carlos Moedas desde a suspensão do mandato do vereador Diogo Moura — nem da Divisão da Rede de Bibliotecas, que faz parte da Direção Municipal de Cultura.
Segundo o presidente da Junta de Freguesia de Benfica, a resposta partiu de António Valle, chefe de gabinete de Carlos Moedas, que negou, para já, essa passagem de responsabilidade da gestão para aquele órgão local por esta tratar-se de uma futura “biblioteca âncora” para Lisboa. Essa mesma nomenclatura é aplicada na resposta do município às perguntas do Observador, caracterizando o projeto como uma “biblioteca âncora” que “será um equipamento cultural estruturante para a cidade mantendo, simultaneamente, uma dimensão de cidade e local”.
No entender de Ricardo Marques, não só a resposta partir do chefe de gabinete é “uma coisa inusitada” porque “os pelouros costumam conseguir responder, ter autonomia, dialogar, marcar reuniões para perceber intenções”, como considera a recusa desta passagem “uma desculpa esfarrapada”. “Se há freguesia que tem apostado em cultura em parecia com a Câmara e cumprido é a de Benfica, quer com o Palácio Baldaya, quer com o Cineteatro Turim, aberto e com sessões todos os dias. Não há outra razão para isso, tendo em conta que esta junta tem um orçamento de dois milhões e meio na área da cultura”, atira.
É perante esta situação que o presidente da Junta de Freguesia de Benfica vai perguntar a Carlos Moedas como será o futuro da biblioteca António Lobo Antunes numa reunião descentralizada da Câmara Municipal de Lisboa e organizada para debater assuntos sobre esta freguesia. Decorrendo no Ginásio da Escola Básica Quinta de Marrocos esta quinta-feira, dia 21 de novembro, Ricardo Marques diz que vai “pedir um ponto de situação das obras” e vai indicar ao Presidente da Câmara que “a freguesia mantém a intenção” de gerir a biblioteca.
Família decide que partes do espólio vão para consulta pública
Regressando a 2021, por ocasião do protocolo assinado entre a Câmara Municipal de Lisboa e António Lobo Antunes, este não previa apenas uma biblioteca apadrinhada pelo escritor. Parte do acordo para a cedência do acervo pressupunha que tal projeto constituiria “não só um espaço de investigação e divulgação junto dos docentes dos vários níveis de ensino, mas também uma oportunidade de investigadores se sediarem na freguesia e contribuírem para o seu desenvolvimento cultural, económico e social”. Ou seja, ficou logo assente que esta não seria apenas uma biblioteca municipal, mas um espaço de investigação da obra de Lobo Antunes, dos manuscritos e documentos que legou à cidade.
Durante a apresentação da biblioteca, em 2022, foi explicado pela chefe de Divisão da Rede de Bibliotecas de Lisboa, Edite Guimarães, à comunicação social que das 20 mil obras, manuscritos e documentos cedidos por António Lobo Antunes, apenas 2700 livros ficariam disponíveis para empréstimo. O restante acervo, noticiou a revista Time Out, teria acesso reservado a académicos e investigadores.
Passados dois anos, não se sabe ao certo em que estado se encontra esta coleção e se manter-se-á esta proporção entre obras de acesso livre e acesso reservado quando a biblioteca abrir. Para tal, seria necessário proceder a um tratamento e catalogação do acervo, processos que, segundo a CML, foram recentemente iniciados.
Em resposta às questões colocadas pelo Observador, o departamento de comunicação da CML informa que a coleção de António Lobo Antunes foi transportada “para os serviços municipais do Alto da Eira, para início do tratamento dos livros” em setembro deste ano.
Segundo a câmara, “a coleção de António Lobo Antunes está, neste momento, a ser alvo do tratamento documental, nomeadamente os trabalhos de catalogação, indexação e classificação”. Tal procedimento, assegura o município, “é comum a todas as obras rececionadas na Rede de Bibliotecas de Lisboa que tenham como destino a integração na coleção municipal e será realizado por um conjunto de técnicos que assegurarão as tarefas no tempo necessário à sua conclusão”.
Já quanto ao destino do espólio do autor — que partes vão para acesso livre e quais para acesso reservado? —, a câmara indica que “no início de 2025, e em articulação com a família do autor, serão discutidas e identificadas as orientações para a criação da biblioteca especializada do autor que permitirá a seleção dos documentos que ficarão em consulta pública e os que deverão ter acesso condicionado”. Quanto aos motivos para o atraso em iniciar estes procedimentos, não foram dadas explicações.