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Dylan Thomas: a poesia num incêndio de cifras

"Eu vi o tempo assassinar-me", com seleção e tradução de Frederico Pedreira, apresenta cerca de metade da obra do poeta galês, contra a ausência de uma voz fundamental das letras inglesas em Portugal.

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Dylan Thomas nasceu no País de Gales em 1914 e morreu em Nova Iorque em 1953

Corbis via Getty Images

Dylan Thomas nasceu no País de Gales em 1914 e morreu em Nova Iorque em 1953

Corbis via Getty Images

À poesia de Dylan Thomas assiste — caminho de quem escreve e de quem lê — um esforço imaginativo investido em caracterizar a voz que fala ou, não obstante a linguagem pedregosa, a voz que canta. Mais do que um rosto, a essa voz chegada (ela assoma como dádiva, foi enviada não se sabe por quem nem de que parte, mas soa, em profundidade, como um órgão de igreja), atribuímos um timbre, uma cadência, elaboramos ou reconhecemos maneirismos que a singularizam. São poemas que obrigam a uma entoação interior. Sentimo-los próximos (dos tímpanos à epiderme mais exposta) pela distância engenhosa que inscrevem e por que se dão a escutar. Somos atiçados pelo inusitado de certas combinações imagéticas, sons tão ressonantes quanto embaraçados, para concluir que a poética de Thomas vive precisamente de correspondências não subsidiárias da contradição como termo, mas como problema especulativo e potência expressiva.

As imagens, como enquadramentos, não contrariam — por supostos emblemas cristalizados que fossem — o corpo, sua temperatura, seus tecidos e texturas. Imagem e corpo encontram equivalência numa espécie de grau zero da língua, pelo qual o poeta se habilita a conhecer e a dizer o próprio espectro. Este processo de autognose não é motivado por qualquer promessa de eternidade ou volatilizada omnipresença, mas por um compromisso de justiça, exigente da presentificação da voz em palavra escrita (para ser dita), responsável pela reunião dos elementos num coro de substâncias passageiras:

“Os suaves deslizes marinhos do dizer devo agora desfazer
Para que tudo o que graciosamente se afogou possa vir à tona da matina e matar”

Ambas com tradução de Fernando Guimarães, a plaquete Oito Poemas de Dylan Thomas, publicada em 1981 na colecção Oiro do Dia, bem como uma pequena antologia, A Mão ao Assinar este Papel, saída em 1998, na Assírio & Alvim, há muito indisponíveis no mercado, concretizaram os primeiros esforços de trazer aos leitores de língua portuguesa os penhascos verbais e os corais silábicos de Thomas. É, no entanto, a recém-editada antologia, Eu vi o tempo assassinar-me, organizada e traduzida por Frederico Pedreira, que vem colmatar mais significativamente a ausência editorial do poeta galês em Portugal, apresentando cerca de metade da obra, numa tradução que rigorosa e generosamente nada concede a lirismos que ao autor tenham sido alheios. Talvez a condição apartada de Thomas no âmbito das correntes poéticas que se foram consolidando e difundindo no seu tempo de vida tenha determinado um exílio no respeitante à sua receção entre os leitores de poesia.

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A capa de "Eu vi o tempo assassinar-me". de Dylan Thomas (Assírio & Alvim)

Se, como aponta Frederico Pedreira no prefácio que abre a antologia, citando Joaquim Manuel Magalhães, Dylan Thomas não bebeu, como alguns defenderam, do surrealismo, nascido em França, consensual é a circunstância da geração sucessora ter procurado rejeitar um aparente neo-romantismo alicerçado numa sensibilidade eminentemente imagética e de cariz surrealizante, de que Thomas poderia fazer parte. Ora, o poeta do célebre poema “Do not go gentle into that good night” (“Não entres sereno nessa noite escura”) não parece caber nem de um lado nem de outro. Uma tal posição solitária — cujo diagnóstico não cabe aqui fazer — derivará, em parte, do uso associativo da imagem metafórica, contrário ao imediatismo da pena vertiginosa dos surrealistas, ao mesmo tempo que apresenta cadeias de imagens que resultam num uso barroco da linguagem que não se sintoniza com o despojamento — mais contido do que abnegado — da poesia moderna em língua inglesa.

Por outro lado, o paralelismo entre a natureza e a escrita não visa qualquer proximidade análoga — de afinidade romântica —, mas antes a identificação de uma mecânica subjacente a tudo de que se pode extrair um sentido comunicável, partilhável: a mistura de uma e outra realidade assume um tom imperativo tanto num registo proverbial e/ou proto-messiânico, “Derrama o sangue silábico e esgota as palavras”, quanto assevera uma arquitetura e um mediatismo de cercas e cercanias (em movimento ora de oclusão, ora de expansão), “Trancada ademais em torre de palavras”, quanto significa ainda a gramática para a captação do imaterial, do indefinido e do que é tão-só um tanto claro, como “vultos verbosos”.

Se a tudo subjaz uma mecânica da relação (difícil não lembrar o soneto e a teoria literária nele contida “Correspondances”, de Baudelaire), o mesmo será dizer que a tudo assiste uma natureza inventiva aliada a um outro que a assuma e revele. Veja-se, a propósito da referida consciência interna ao poema acerca do seu artificialismo, o poema em que Thomas dá a ver as costuras do processo de escrita. Em “Especialmente quando o vento de Outubro”, ao marcador temporal, com valor de deítico, segue-se a declaração da natureza fictícia desse mesmo marcador, tornando-o peça única exatamente pela entrevista do seu carácter substituível: “Especialmente quando o vento de Outono/ (Alguns deixam que te crie com outonais feitiços (…)”. O valor dos elementos é cunhado pela consciência de que no seu lugar poderiam estar outros, sendo, todavia, incontornável tratarem-se daqueles os escolhidos. Reconhecê-los é, pois, reconhecer a realidade presente que se nos defronta. Se nela algo quisermos mudar teremos necessariamente uma outra realidade, inteiramente nova.

É, assim, uma poesia que quer, e afirma-o, ser levada a sério, rejeitando de antemão paráfrases que, de qualquer forma, seriam uma deturpação do sentido do poema, já que o mesmo se constrói com aquelas, e não com outras, palavras. Assim se alia a objetividade da palavra e da língua ao mistério do que a construção poética tece. Isto contraria o valor das imagens surrealistas, na medida em que estas deteriam, pela vertigem que lhes dá forma, um valor quase epifânico, partindo do pressuposto de que o entendimento se encontra num ponto de não retorno, invariavelmente inacessível. Assim, um poema surrealista seria o fóssil de um poema arcaico, obscurecido na psique humana, ao passo que um poema de Dylan Thomas apresenta-se como a própria mesa de trabalho, o ateliê, o recreio onde se processam infinitamente as correspondências que dão um sentido ao texto, tomando aqueles elementos por estranha matéria-prima em vias de extinção.

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Na vontade poética de Dylan Thomas: descobrir o incontável, o imensurável para resgatar um conto em verso, por mais absurdo que este resulte

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É na iminência do fim que começa a grande faina dos homens e da natureza, essa força agonística que concilia a destruição com a alimentação e a sensualidade, unindo o estritamente útil e o vitalíssimo desnecessário, descerrado, inconcluso, luxurioso: “De dia o homem e de noite o vento/ Vergaram a colheita, tomaram o júbilo da uva” para “Esta carne que partes, este sangue que  deixas/ Em desolação na veia,/ Eram uva e aveia/ Nascidas de raiz e de seiva sensuais;/ Meu vinho bebes, meu pão abocanhas.”

O que de excessivo houver em Thomas nada compõe de residual, na medida em que o que o poema contém não representa a imagem mimetizada de uma forma primeira. O excessivo é, assim, já um meio de articular o erro de que a noite escura da nossa conceção ou o portal sacralizado do nosso inconsciente são fugas e modos de contornar, sem tocar, a matéria do mundo. Por isso, qualquer aproximação à origem implica uma morte, tratando-se esta, afinal, da substância essencialmente reiterável, por oposição ao nascimento que é uno e irrepetível, logo, atonal: “Sonhei a minha génese e de novo morri”. De facto, não é essa unidade primeira do nascimento que interessa a Thomas, antes o instante de suspensão ou resistência em que a fúria, odiosa ou amorosa, é o clarão que assume o indescritível da vida. Resta partir verso, efabular para tornar sensível o que tantas vezes se apresenta como um esquema organizado de corpos fechados para obras que nunca se cumprem. Descobrir o incontável, o imensurável para resgatar um conto em verso, por mais absurdo que este resulte. Guardar bem a mentira e dizê-la a alta voz, se se preterir a verdade que os agentes desassombrados de todos os dias murmuram ao ouvido, debaixo das mesas e em registos civis. Pousar num ramo de árvore e esperar a tempestade, pois é “Numa árvore de histórias [que] estão todos os amores lendários,/ Por detrás da fabulosa cortina, a cruz do meu fabulário.”

A poesia de Dylan Thomas, tão bem apresentada na tradução e seleção de Frederico Pedreira, é essencialmente aliterativa e metonímica. Raspa, pela repetição de sons – a recorrência do uso da aliteração — e encadeia imagens que sempre remetem para outras — pela metonímia como recurso estilístico e esteira semântica basilar — não necessariamente maiores ou primeiras e prioritárias. É por esse estado de remissão que se apela à vontade, e nessa disponibilidade para o salto (de que o enjambement é a forma mais fiel) a baralhar hierarquias, a desfazer a simetria de pares dicotómicos, que as metades surgem mais como brechas, intervalos inventados e provisórios, do que como divisões definitivas.

O poema “Se as lanternas brilhassem” é bem representativo de uma poética do atrito e do assalto, do contacto e da levitação, pelo fim do texto a revelar-se como surpresa e suspensão, tanto que apresenta elementos até aí ausentes do poema para propor um fecho em síntese: “A bola que lancei enquanto jogava no parque/ Ainda não chegou ao chão”. Eis a poesia que melhor diz o efémero por sugestão de uma mesmidade temporal: “Avanço pelo tempo que para sempre é”. Resistir pela voz, pela língua e pelo corpo, saber que os fins não são universais, mas pontuais. Pessoais, à falta de melhor termo. Entretanto, a vida, uma câmara para deixar rebater as palavras, deixar-se inebriar, não importando, nem podendo saber nunca, se se trata de uma potência demolidora, se o canal aberto para o corpo estreito do desejo. Incerto o encontro almejado, certíssimo o encontro acontecido, vigorosa a fábula dita.

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