Na noite de sexta-feira, escassas horas após Kendrick Lamar ter lançado de surpresa GNX, o seu mais recente disco, uma piada viralizou nas redes sociais – tratava-se de uma sobreposição das datas de lançamento dos disco de Father John Misty e de Lamar, que curiosamente coincidem, pelo menos em termos de anos. A graça consiste nesta surpreendente aproximação entre duas personagens tão diferentes.
Não que não tenham coisas em comum – se bem que ambos dão muita importância às palavras que escolhem e nenhum deles foge a uma polémica. Como prova temos o ano de 2024 de Lamar, que podemos definir – sem errar muito – como quase exclusivamente povoado de polémicas, GNX à parte: a muito pública disputa com Drake deu origem a centenas de memes e dividiu não só fãs de hip-hop como fãs de música em geral, que deram por si a ter de escolher lados.
Lamar terá saído vencedor dessa contenda, em particular porque Not Like Us, uma das diss tracks que lançou a dar cabo de Drake, se revelou um êxito instantâneo – e facilmente pode ser considerada uma das faixas do ano. A contenda foi dura, duríssima, até – de entre as inúmeras acusações que Lamar fez a Drake constavam pedofilia e tráfico sexual. Como resultado, Drake – que é ou era o rei do hip-hop comercial – viu a sua imagem manchada e Lamar foi convidado a fazer o intervalo do SuperBowl de 2025.
Portanto, não deve ter sido a vontade de Kendrick de manter o mesmo padrão de lançamentos de discos de Father John Misty a levá-lo a editar agora – agora, após sair por cima de uma bravata tão pública que só faltou ter intermediação da ONU, agora era uma excelente altura para lançar o sucessor de Mr. Morale & the Big Steppers (2022), um disco confuso e que não foi particularmente bem recebido.
Estrelas da estirpe de Lamar não dão passos em falso – e GNX deve ter andado a ser pensado e produzido pelo menos desde a altura da chatice com Drake. O adversário pode até não ser mencionado em GNX, mas a atitude combativa, de não fazer prisioneiros, antes disparar a matar, que marcou o ano de 2024 de Lamar, mantém-se: logo na canção de abertura, wacced out murals, sobre o facto de terem deixado abaixo um mural dele em Compton, Lamar promete “kill ’em all before I let ’em kill my joy”, isto antes de dedicar um sentido “Fuck you” a todo o mundo do hip-hop.
Este rapaz anda zangado e não apenas porque derrubaram o seu mural – o tom violento regressa em squabble up, hey now e tv off, esta última produzida por Mustard, o homem por trás de Not Like Us. squabble up não é musicalmente tão negra quanto wacced out murals, em parte porque o beat é mais saltitão, mas também porque os synths que vão entrando e saindo da canção têm um swag danado – os coros que depois aparecem fazem da faixa um daqueles milagres só possíveis quanto um rapper auto-confiante encontra o instrumental perfeito.
Não é tão conseguida, hey now, mas tv off sobe novamente a fasquia, muito por conta do delicioso sample em que assenta – produzida por Mustard e com grande potencial pop, a faixa parece ser uma reflexão sobre a amizade, ou quem rodeia o próprio Lamar: “Few solid niggas left, but it’s not enough”, rappa Kendrick, antes de acrescentar “Few bitches that’ll really step, but it’s not enough”.
Tendo em conta que tv off é uma tremenda canção, só Kendrick saberá porque é que é a única faixa de Mustard num disco produzido sobretudo por Sounwave e o omnipresente Jack Antonoff. Obviamente, Antonoff não põe Lamar a soar a Taylor Swift, mas em algumas faixas há um tom mais doce: o beat de heart pt. 6 é suave e meloso e o rappanço de Kendrick cai ali como mel – é uma faixa admirável, com as doses exatas de soul e sabedoria pop, coros a surgir no momento exato; gloria e luther contam com a participação de SZA. A primeira é mais relaxadona e soul, enquanto a segunda se aproxima do registo balada com beat, com violinos por cima. man at garden segue mais ou menos pelo mesmo caminho, mas não é tão conseguida quanto luther.
GNX marca uma inflexão numa direção mais pop, aproximada de DAMN., pop mas devidamente arranjada (cortesia de Antonoff) e pop mesmo quando, em “reincarnated”, a zanga regressa, enquanto Lamar parece dirigir-se à família. Rapa ele, antes de prometer viver em harmonia:
“My father kicked me out the house, I finally forgive him
I’m old enough to understand the way I was livin’
Ego and pride had me looking at him with resentment
I close my eyes, hoping that I don’t come off contentious
I’m yelling, “Father, did I finally get it right?”
A canção seguinte é tv off e é uma excelente passagem. Já dodger blue é uma espécie de versão acetinada de música de club, de fim de noite, narcótica e sensual e mais uma vez coloca os ombros a abanar.
Músicos como Kendrick Lamar não são apenas músicos e não se limitam a lançar discos – são vistos como ícones, intérpretes da sua época; é por isso que lhes dão prémios Pulitzer, não porque são quem melhor escreve, mas porque as suas palavras ressoam na comunidade e têm impacto histórico. O que significa que quando lançam um disco esse álbum será comparado com a sua produção anterior (mas também com os discos lançados neste ano, os discos dos adversários e mesmo o estado do mundo).
A era de ouro de Lamar foi ali entre 2012, com Good Kid, M.A.A.D City, e 2017, com DAMN., incluindo To Pimp a Butterfly (2015) de permeio. Costuma ser assim, na vida dos músicos: há um momento em que não só eles acertam em cheio como o mundo decide reparar neles nesse instante e tudo o que fazem e dizem parece refletir o mundo em que vivemos – o momento em que branco ao negro, do gordo ao magro, toda a gente adere ao artista.
É muito difícil a um músico – seja quem esse músico for – voltar a ser tão consensual como nessa meia dúzia de anos em que a humanidade acredita em tudo o que o músico faz, mas Lamar não parece ter perdido créditos. Como é que se retorna a um momento como Good Kid, M.A.A.D City? Ninguém fora do hip-hop conhecia Kendrick e no dia seguinte Bitch, don’t kill my vibe está por todo o lado e os brancos juntaram-se à festa – e não eram apenas os miúdos, eram brancos de 30, 40 anos, tão universal o raio da faixa se tornou. (Curiosamente, a faixa mais ouvida desse disco, no Spotify, é Money trees, um temaço, menos pop mas temaço, e como ele se safa bem nestas faixas lentas – leva 1,6 mil milhões de escutas, enquanto Bitch, don’t kill my vibe “só” tem 776 milhões. Números absurdos, mas que nos dizem do poder e da popularidade de Lamar na indústria actual.)
Talvez To Pimp a Butterfly tenha sido o momento mais alto da carreira de Kendrick, um disco com tanta miscigenação de géneros que tem de ser colocado ao lado de obras-primas como Electric Circus, de Common, ou Phrenology, dos The Roots. To Pimp a Butterfly também teve os seus sucessos pop, com King Kunta ou Alright, mas o que realmente o definia era essa vontade de moldar toda a história da música negra, essa liberdade e inventividade, às quais não seria alheia a presença de músicos como o genial Thundercat – e era em faixas mais obscuras, ou aparentemente menos pop, como The blacker the berry que o grau de experimentação se notava.
GNX pode vir a não ter a importância histórica de Good Kid, M.A.A.D City ou To Pimp a Butterfly, mas vê Kendrick regressar em grande forma, com meia dúzia de ótimas canções pop e uma quase mão cheia de canções devedoras da soul que entram discretas pelos ouvidos, aninham-se no cérebro e se recusam a sair. Ainda não é desta que o mundo apanha Kendrick Lamar em má forma.