A suposta utilização de inteligência artificial pelos juízes desembargadores Alfredo Costa, Hermengarda do Valle-Frias e Margarida Ramos de Almeida num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa foi alvo de uma participação no Conselho Superior da Magistratura (CSM) pelos advogados do processo, relacionado com adjudicações na Santa Casa da Misericórdia. “O Conselho Superior da Magistratura confirma que recebeu uma participação relativa ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa alegadamente elaborado com recurso a ferramentas de inteligência artificial”, adiantou ao Observador fonte oficial do CSM.
Segundo o organismo, a participação dos advogados será analisada na “próxima reunião da Secção de Assuntos Gerais do CSM”, agendada para a próxima quarta-feira (4 de dezembro). O Observador apurou ainda que os advogados pretendem que o CSM, liderado pelo vice-presidente Luís Azevedo Mendes, avance com uma averiguação sobre esta situação e que avalie a possível aplicação de procedimentos disciplinares.
Na origem da participação dos defensores deste caso está a verificação de alguns erros no acórdão e que levantaram a suspeita da utilização de inteligência artificial para redigir o documento, sublinhando que o mesmo tem “parecenças várias com um texto gerado por inteligência artificial ou alguma outra ferramenta de natureza informática ou digital”, segundo o requerimento inicial apresentado e divulgado pelo Correio da Manhã.
Participação “para que não falte impulso” para averiguar
Submetida na terça-feira ao CSM, a participação dos advogados do processo volta a levantar a hipótese de recurso a inteligência artificial pelos desembargadores responsáveis pelo acórdão da Relação, entre outros cenários – como um eventual “clamoroso erro de natureza informática” ou uma “intromissão de terceiro no sistema” -, justificando que, em qualquer destas possibilidades, se justifica uma averiguação.
Este Conselho também já não carece nem de participação nem de queixa para averiguar e agir ⎯ como pode e como deve. (…) E para que não falte impulso de participação, se acaso for/fosse necessária, que cremos (já) não ser, vale este escrito como tal”
Como o organismo declarou, numa primeira reação pública ao caso, não ter recebido qualquer participação, os mandatários dos arguidos decidiram que tal iria mudar. “Agora, nesta data, 26 de novembro, este Conselho também já não carece nem de participação nem de queixa para averiguar e agir ⎯ como pode e como deve. (…) E para que não falte impulso de participação, se acaso for/fosse necessária, que cremos (já) não ser, vale este escrito como tal”, lê-se no documento a que o Observador teve acesso. Os advogados do caso consideraram ainda que esta situação, “sejam quais forem os seus reais contornos, se afigura séria e grave” e que tem repercussões no Estado de Direito, na credibilidade do sistema judicial e na confiança da comunidade.
O acórdão em causa foi proferido em outubro e reverteu a decisão da instrução do juiz Nuno Dias Costa de não levar a julgamento os arguidos, entre os quais se encontram a antiga deputada do PSD Helena Lopes da Costa ou o líder da concelhia do PS e presidente da Junta de Freguesia de Alcântara, Davide Amado.
“O que os signatários nunca viram acontecer, como acontece neste caso, é um texto apresentado como acórdão citar artigos legais que não existem, nem sequer alguma vez existiram, e louvar-se em jurisprudência que não existe”, indicaram os advogados no requerimento inicial, apontando que 12 dos 14 acórdãos citados no contestado acórdão da Relação de Lisboa “não existem nas bases de dados internas dos respetivos tribunais superiores”.
São também criticados os erros relativos aos crimes imputados, em que, por exemplo, sobre um alegado abuso de poder é citado o artigo do crime de peculato, “levando os arguidos a ser julgados por crimes pelos quais não foram acusados pelo Ministério Público”.
Relação sem conhecimento da participação
Após ser conhecido este caso, o CSM defendeu que “os juízes gozam de independência e autonomia no exercício das suas funções jurisdicionais, incluindo na seleção das fontes que utilizam para se documentar e fundamentar as suas decisões”.
Contactada pelo Observador, a presidente do Tribunal da Relação de Lisboa assumiu não ter tido ainda conhecimento da participação apresentada no CSM sobre esta matéria e reiterou a resposta já transmitida pelo desembargador Alfredo Costa.
“A informação que me foi transmitida é de que era completamente descabida a utilização de inteligência artificial e que o processo está a seguir os seus trâmites normais. A decisão das reclamações só não foi proferida por impossibilidade pessoal de um dos juízes”, explicou Guilhermina Freitas. Quanto a um eventual afastamento provisório de funções dos três magistrados caso seja aberta uma averiguação, a presidente da Relação de Lisboa remeteu decisões para o Conselho: “O Conselho é que terá de decidir o que houver a decidir”.
(artigo atualizado às 12:45)