Parado em frente à roda — por assim dizer — gigante (colocada na parte inferior do Parque Eduardo VII e por isso com uma vista consideravelmente menos ampla do que a disponível a meio da feira), vejo pessoas em T-shirt atravessar o pórtico do Wonderland Lisboa ao som de Santa Claus Is Coming to Town, primeiro na versão de Bruce Springsteen e depois num instrumental.
Começo a subir a ladeira e à direita vejo inúmeras bancas de bijuteria, produtos artesanais e, sobretudo, comes e bebes (pastéis de nata, ginjinhas, pães com chouriço, frango frito e por aí afora), até que os meus olhos são seduzidos por um conjunto de tote bags nos quais Frida Kahlo nos recomenda que não nos demoremos onde não pudermos amar, um bom conselho que ainda assim não me impede de por ali ficar alguns minutos, a contemplar outras sugestões bastante pertinentes, como a de Minnie (“Força, Foco, Fé”) ou de Garfield (“Dizem que sou bom partido, imagina inteiro”). A meio do parque, encontro uma zona VIP, ali de propósito para que eu sinta a alegria de, por uma vez, ver reconhecida a minha grandeza, que me torna tão superior a todos vós. Infelizmente, apesar dos meus melhores esforços, a segurança não me deixa entrar, provando-se assim de novo que ninguém é profeta na sua terra.
Alguns metros adiante, vejo outra roda, esta bastante mais pequena, e um minúsculo carrossel com certeza dirigidos a crianças de colo, que ainda assim não dispensam o aviso acerca da interdição a pessoas que pareçam bêbadas. Na divisória do corredor direito, vejo árvores amarradas com luzes de Natal e uma árvore de Natal não muito imponente. Do outro lado, já quase na continuação do Pavilhão Carlos Lopes, uma loja vende T-shirts com estampagens do álbum Meat is Murder, dos Smiths e outras com uma imagem do E.T., a proclamar que este mundo é uma fantochada (“This world sucks”).
É aí que a maior feira de Natal de Lisboa destrói o meu ceticismo e me deixa rendido. É então que me livro da sobranceria irritante destes primeiros parágrafos e passo a simpatizar com o sítio onde vim passar a tarde.
Há duas formas, parece-me, de olhar para uma feira de Natal deste género, ambas válidas, mas uma certamente mais promissora do que outra. A primeira é imaginá-la como uma imitação de uma imitação, como uma tentativa pobre e atabalhoada de copiar as feiras de Natal das grandes capitais europeias, que por sua vez tentam rica e atabalhoadamente imitar o espírito do filme Sozinho em Casa. Sendo certo que o meu coração bate mais forte perante tentativas pobres e atabalhoadas de imitar seja o que for, há outra coisa que está aqui a acontecer. Será sobre isso o resto deste texto.
Comecemos pelo nome: Wonderland. Num mesmo movimento, uma feira com pouco mais a oferecer do que um rinque que a boa vontade natalícia me concede apelidar de pista de gelo, uma roda gigante e uma banca de produtos do Benfica decide fazer das fraquezas forças e proclamar-se ousadamente digna herdeira do Natal e do País das Maravilhas que a pequena Alice encontrou ao cair pela toca de um curioso coelho.
Por mais virtudes que tenha (e tem) o tempo que nos calhou em sorte viver, esta é também a era que decidiu declarar guerra ao mistério e à maravilha. Um mês que poderia servir de desafio aos nossos corações empedernidos, um período que nos deveria fazer questionar se o nosso reino será deste mundo, foi substituído alegremente por um intervalo para publicidade em que desejamos tibiamente uns aos outros umas festas felizes. O dia em que alguns garantem que nasceu o redentor da humanidade poderia servir para um multiculturalismo inteiro, em que conversamos uns com os outros acerca das nossas convicções mais profundas, à semelhança do que idealmente aconteceria no ano novo chinês, no arraial do Pride e no ramadão.
Escolheu-se uma outra via, em que descemos as avenidas para ver iluminações que procuramos tornar o mais neutras possível porque, por motivos que ultrapassam a minha inteligência, alguém decidiu que já não somos adultos, sendo por isso inaceitável consentir que uma vez por outra alguma das tribos que formam a extraordinária comunidade em que vivemos fale às restantes daquilo que ama acima de tudo o resto.
Comovi-me, dizia eu, perante uma T-shirt de um E.T. que remotamente apontava para uma das ideias mais fortes da narrativa fundadora da sociedade ocidental: this world sucks. Talvez seja, afinal, disto que precisamos: uma feira que reduza o mistério a uma banca de farturas, para que, então, reconheçamos que alguma coisa se perdeu quando decidimos fazer da tolerância surda uma bandeira. Pode ser que, enfim, sintamos saudades de um tempo que nunca vivemos. Pode ser que seja desta que olhamos uns para os outros com admiração e curiosidade verdadeiras e que o mundo se transforma numa interpelação ao mistério, onde as perguntas certas são mais importantes do que a resposta a que aos tropeções chegarmos. Quem sabe se não é de uma Wonderland amorfa que precisamos para nos voltarmos a apaixonar pela ficção. Não era mau.
***
No topo do Parque, vejo a cidade descer até ao rio. Duas colinas, divididas por um pequeno bosque de árvores desfolhadas, parecem desabar uma sobre a outra, como se se preparassem para uma batalha, numa avalanche de betão. À direita, os hotéis, as gruas, os bancos. À esquerda, os miradouros, o castelo, as casas minúsculas cheias de gente à janela. Ao fundo, a voz do Michael Bublé a falar-nos de um Natal branco, com trenós e neve, igual aos que nunca vivemos mas que ainda assim insistimos em recordar. Feliz Natal, amigos.