O livro cai-nos em cima como Miguel cai em cima de André. Um suicida que se atira da janela enquanto, na rua, um marido acaba de sair de casa para ir ajudar a mulher a transportar um quadro demasiado pesado, num sábado de manhã. Um segundo que muda tudo e que dura um livro inteiro – magistral estreia em Portugal de Mariana Salomão Carrara (n.1986).
Este não é o primeiro romance da autora brasileira – antes dele há uma mão cheia e um volume de contos –, mas é o primeiro a cruzar o oceano e a chegar à Península Ibérica (será publicado também em Espanha). Distinguido com o Prémio São Paulo de Literatura para Melhor Romance, Não Fossem as Sílabas do Sábado atropela-nos com o acontecimento trágico que deixa sozinhas duas mulheres que até aí não se conhecem – “a primeira vez que reparei na Madalena foi na sala de espera do Instituto Médico Legal e ela era inteira um desfiguramento”, escreve a narradora –, e atropela-nos com a própria escrita de Carrara, tão crua quanto emotiva, tão impulsiva quanto trabalhada, uma torrente sôfrega e confessional:
E eu olhava pra Catarina sempre ali acordada e tão próxima de mim e continuava com as mesmas dúvidas de antes, a bebê já inteira na minha frente e eu ainda pensando se devia mesmo ter um filho, será que devemos André é um decisão tão definitiva, e ele entusiasmadíssimo, daria conta de tudo, eu sabia que não devia fazer escolhas como esta com base no marido, maridos falham, não produzem leite, não aguentam a pressão, maridos morrem.” (p.46)
Ana, a narradora, está há mais de 12 anos “presa dentro daquela meia hora” – “a manhã das mortes”, como lhe chama. Recém-casada e “nos vinte e tantos”, o seu futuro é interrompido umas horas depois de saber que está grávida, e o romance movimenta-se entre opostos: vida e morte, fim e recomeço, uma casa cheia de memórias e vazia de planos. A melhor personificação desta dança constante entre luz e sombra é a estranha amizade que emerge da tragédia, entre as duas mulheres que ficam viúvas e que continuam a viver no mesmo prédio, separadas apenas por andares e pela culpa que uma atira sobre a outra: “Algum tempo depois da manhã das mortes, Madalena começou a me visitar. Ela toca minha campainha sempre mais fraco do que é necessário (…), como se o problema fosse o barulho da campainha e ela pudesse diminuir o peso da existência dela na minha vida anunciando suavemente a sua chegada.” (p.23) Ou, um pouco antes: “Se existe alguém que pode culpar a Madalena sou eu porque eu posso o que eu quiser, é um atributo de viúvas como eu. Não de viúvas como ela.” (p.15)
Título: “Não Fossem as Sílabas do Sábado”
Autora: Mariana Salomão Carrara
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 176
As duas chegam a partilhar insignificâncias do quotidiano e a trabalhar lado a lado, rolos enormes de plantas e provas corrigidas a vermelho na mesma mesa. Ana é arquiteta – “eu tentava projetar casas para os outros enquanto a minha se despedaçava, desenhava quartos para os casais que a morte tinha poupado” –, Madalena é professora de português e vai-se impondo no dia-a-dia da narradora, neste gesto salvando-a de lidar sozinha com o luto, de educar a filha sem ajuda, de conversar com os móveis – algum que a compreendesse, “um abajur” –, ou de simplesmente desaparecer como as frutas que apodrecem na bancada.
As frutas e os legumes podres, comecei a achar todos de uma beleza hipnótica, cultivava-os muitos dias em cima da pia, no canto das estantes. Os tomates eram os mais belos, abriam-se lentamente em sulcos fundos e murchavam para dentro de si mesmos escorrendo uma água rala e depois esses rasgos se cobriam da penugem branca que então ganhava uma camada marrom, e nos casos mais avançados eu podia ver que iam de fato sumindo, eu deixava todos muito próximos, brócolis sulfurosos maçãs amolecidas mexericas peludas todos juntos acelerando o sumiço e eu achando bonito cada dia desse desaparecimento, cuidava que acontecesse assim natural e doméstico, vai ficar tudo bem, eu dizia ao tomate, aposto que não dói.” (p.29)
Num registo íntimo e com um toque de humor negro na medida certa, este é um mundo de mulheres à procura de normalidade e de uma mulher em particular, a braços com um estranho contra-senso: o peso de lembrar e a culpa de começar a esquecer. Por entre as memórias que Ana vai partilhando e os grandes temas que vão emergindo – morte, maternidade e amizade feminina, temas recorrentes na obra de Mariana Salomão Carrara –, o livro demonstra uma sensibilidade rara e está recheado de imagens fortíssimas: as duas viúvas a protegerem-se do fogo de artifício numa passagem de ano, demasiado agressivo na sua euforia; a mãe polvo gigante do Pacífico que passa seis meses sem dormir para proteger os ovos com os seus oito tentáculos e cai morta no fundo do oceano quando os filhos finalmente se lançam ao mar; o porteiro que não consegue prever o suicida a cair do décimo andar, diz bom dia e carrega no botão para abrir a porta.
Um romance belíssimo sobre a fragilidade da vida, a constante mudança e a resiliência.