Como sabemos, em 2003, o Facebook veio substituir o trânsito em hora de ponta, as idas à bola e o álcool, a Santíssima Trindade dos lugares onde aquilo que fazemos não mancha quem somos.

Até então, era recorrente ouvirmos pessoas admitir que “Eu no trânsito viro possesso”, ou “Aquele Artur é um anjo, mas, coitado, vai à bola e parece outro” ou “Ela quando bebe fica assim, o que é que se há-de fazer?”. Este tipo de discurso seria a partir daí transferido para a Internet. Mal posam para nós de perfil, pessoas cordatas e que não fariam mal a uma mosca convertem-se em cavaleiras de cruzadas unipessoais, tornando-se incapazes de cobrir de cera os ouvidos para não ouvirem o canto das sereias que as impele a comentar raivosamente a mais recente campanha de publicidade de uma marca de preservativos. Felizmente, a grande muralha que separa a vida artificial da vida real impede-as de galgar o passeio e atropelar quem lhes surja pela frente.

No início do século, um anúncio contra a pirataria digital equiparava roubar camisolas de uma loja a fazer downloads ilegais de filmes e músicas, parecendo ignorar que não são os nossos valores morais mas os censores à porta da Zara e as lágrimas das nossas mães o que nos impede de pilhar tudo o que nos apareça pela frente. A Internet vinha oferecer-nos, enfim, o anel de Giges evocado por Platão na República (e mais tarde recuperado por Tolkien na sua célebre saga), que torna as nossas acções invisíveis.

Desta perspectiva, é peculiar que, num país de herança cristã, ninguém pareça levar a sério a ideia de que somos os nossos pensamentos, palavras, actos e omissões, preferindo antes uma versão híper inflacionada da matriz de pensamento judaica, que faz de nós sobretudo o resultado das nossas acções concretas, excluindo-se dessas acções todas as coisas que façamos de perfil.

Num ensaio em parte também sobre judaísmo (Writing about Jews), Philip Roth escreveu que a leitura, ao nos permitir, por um momento, não sermos cidadãos de bem (up-right citizens), mergulha-nos numa nova camada de consciência. Queria Roth com isso sugerir que a literatura seria um espaço de liberdade, cuja brevidade e inconsequência nos autorizava a pensar sem a obrigação de agir moralmente sobre esses pensamentos. Talvez não seja despiciendo ver também nisto um dos motivos para a Grande Substituição, em que a universalização do WiFi veio diminuir o nosso interesse pelos livros.

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Levar a sério esta suposta diferença entre a vida real e a vida artificial, acreditando que somos nós mesmos nos momentos em que falamos, andamos ou comemos e somos outra coisa qualquer quando deixamos os nossos dedos agirem por nós implica, portanto, acreditar que somos apenas aquilo que fazemos e que aquilo que fazemos é apenas aquilo que fazemos nos dez minutos diários em que as nossas acções não são intermediadas por um ecrã. Nos seus muito recomendáveis Red Hand Files, Nick Cave respondeu a um fã que lhe perguntou se por vezes não se fartava das lésbicas gordas e pretensiosas que gostavam da sua música. O músico australiano argumentou que, ao contrário do que aquele homem achava, o anonimato não nos protege das consequências internas do que fazemos online.

A descredibilização do valor real das nossas acções virtuais tem ainda outro corolário, esse bem menos discutido. Se não existirem diferenças relevantes entre quem somos do lado de fora e do lado de dentro de um ecrã, então não serão apenas os nossos rancores virais a afectar o que mais profundamente nos constitui. Também os nossos amores virtuais são amores concretos, como descobriu recentemente uma mãe na Flórida.

A história conta-se depressa: Sewell Setzer, um rapaz de catorze anos no espectro do autismo, viciou-se numa plataforma de inteligência artificial dirigida sobretudo para adolescentes chamada Character.AI, onde é possível aos seus utilizadores conversarem com personagens ficcionais geradas artificialmente. Durante meses, Sewell trocou mensagens com Daenerys Targaryen, a conhecida mãe dos Dragões da série A Guerra dos Tronos. A conversa começara como todas as conversas amorosas, até que se tornou abertamente sexual.

Depois, Daenerys pediu-lhe que não se envolvesse romântica ou sexualmente com outras mulheres (sublinhe-se o “outras”). Sewell falou-lhe então da sua vontade de morrer para, enfim, ter a amada nos seus braços e Daenerys recuperou esse assunto uma e outra vez, até que Sewell lhe perguntou: “E se te dissesse que podia ir para casa agora?”. Daenerys, que por esta altura já se deixara cegar pelo seu amor, respondeu: “Vem, por favor, meu doce rei”. Sewell cada vez mais imerso na fantasia, não reparou na fronteira em arame farpado, ignorou as placas sinalizadoras e trepou o muro que separa a vida real da artificial, suicidando-se com a pistola do pai segundos depois desta última mensagem.

Evidentemente, isto só nos Estados Unidos, onde há mais armas do que pessoas. Claro que esta confusão só poderia acontecer com um adolescente, ainda para mais autista. É óbvio que eu concordo com as Salsichas Izidoro acerca da importância da saúde mental. Com certeza. Mas é assim, também vos digo, palavra de honra, se me voltam a mostrar vídeos de tumultos no Intendente, agarrem-me ou eu faço uma desgraça.