Há 16 anos saiu um disco chamado Since I Left You. Era uma obra-prima de corte e colagem que juntava quase 3500 samples mais ou menos modificados de discos e filmes para criar algo de inegavelmente novo e único. Feito pelos australianos Avalanches, um grupo de produtores, músicos e DJs, ainda hoje aparece rotineiramente em listas dos melhores álbuns da década de 2000, de publicações como a Pitchfork ou o Resident Advisor, por exemplo. Em 2011, pediram a ?uestlove, o baterista dos Roots, a canção favorita de sempre. Ele respondeu com o seu “melhor top 10 de discos de sempre”. Este álbum estava lá. Em décimo lugar, mas estava.

Since_i_left_you

Depois disso, nunca mais lançaram música nova propriamente dita. Até à semana passada. A 1 de junho saiu a notícia. Pela primeira vez em 16 anos, os Avalanches iriam lançar nova música. E falar do novo álbum numa entrevista no programa da Beats 1, a rádio da Apple Music, do neo-zelandês Zane Lowe. Era fácil não ter acreditado, mas aconteceu mesmo. A canção chama-se “Frankie Sinatra”, tem a colaboração dos rappers Danny Brown e DOOM, bem como do compositor francês Jean-Michael Bernard, além de um vídeo bizarro rodado num pântano no sul dos Estados Unidos. O refrão tem um sample de “Bobby Sox Idol”, uma canção calypso – o género de música afro-caribenho – do trinitário-tobagense Wilmoth Houdini em que este se dirige a Frank Sinatra dizendo que o velho olhos azuis pode não saber, mas tem uma voz perfeita para cantar calypso (se Robert Mitchum podia…). É o primeiro indício verdadeiro de Wildflower, que sai em julho e, como fenómeno de culto que os Avalanches são, já gerou mais de um milhão de visualizações no YouTube desde que saiu.

[a nova canção dos The Avalanches]

Isto se tudo correr bem

Resta a hipótese, ainda que remota, de que nada mais aconteça. Quem espera um novo disco da banda já foi enganado antes. É fácil não levar à letra nada do que eles dizem. Praticamente desde os tempos a seguir: nesta entrevista da Pitchfork em 2001, disseram que iam começar a trabalhar em nova música. Ao longo dos anos, foram saindo notícias: em 2005 foi mesmo anunciado um álbum, em 2009 estavam a licenciar os samples, em 2011 estavam a arranjar e misturar tudo, etc. O lançamento de um novo single não veio do nada, contudo. Havia indícios de que algo aconteceria este ano: concertos marcados para o Primavera Sound em Barcelona, um excerto de uma nova canção que se ouvia ao marcar um número publicitado nas ruas em Londres e saiu um vídeo, um teaser para um documentário (se irá mesmo acontecer ou não é uma incógnita, como muito do que está ligado aos Avalanches) chamado “Since They Left Us”, com depoimentos de algumas pessoas que gravaram com eles: Ariel Pink, Jennifer Herrema, RTX e Father John Misty. Mas podia não dar em nada. Já tinha acontecido antes.

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[trailer do documentário “Since They Left Us”]

Mas para perceber por que é que isto interessa, temos de recuar até aos anos 1990, em Melbourne, Austrália. Em 1997, Robbie Chater, que tinha tido uma banda punk/pós-punk inspirada em gente como os Drive Like Jehu e os The Fall, fez um conjunto de demos no estúdio de gravação da faculdade onde estava a estudar cinema (que os colegas, mais preocupados com filmes, nunca usavam e estava sempre vazio). E juntou alguns amigos para tocar esses temas ao vivo. Entre eles contavam-se Tony Di Blasi, o único membro original que resta hoje além de Chater, e Darren Seltmann. O som do grupo, como visível no single de estreia, “Rock City”, lembrava uma espécie de Beastie Boys mas um bocadinho piores.

Nada faria prever Since I Left You. Produzido por Chater e Seltmann, que iam trocando cassetes e gravações, e com vários outros músicos creditados como membros da banda, o álbum não tem vozes novas postas por cima dos temas – gira-discos e teclados são praticamente os únicos instrumentos adicionados. Demoraram dois anos, prova de que atrasos e esperas são constantes na vida da banda desde sempre.

3500 samples, recolhidos de longas passagens por lojas de beneficência a comprar muito vinil, a escolher o que não interessava e a devolver e a comprar mais matéria prima, este é o som de miúdos na casa dos 20 a tentarem – e conseguirem – criar canções novas a partir do que havia antes. Em “Frontier Psychiatrist”, por exemplo, diálogos de “Polyester”, o filme de John Waters, convivem com rotinas cómicas da dupla canadiana Wayne and Shuster ou do americano Flip Wilson, cavalos a relinchar, relógios de cuco e scratch com o som de papagaios, bem como a banda sonora de “Lawrence da Arábia” e Spitfire, o 1º Entre Poucos ou os coros e sopros do easy listening – em modo spaghetti western – de Enoch Light and The Enoch Light Singers. Mas nada do que se possa dizer se compara à audição do tema (e o vídeo também é altamente recomendável).

Um destes ninguém mais fez

A ideia não era lançar um disco e ter sucesso. Era fazer algo coerente, sem pausas, em que um tema dava seguimento a outro, e como Chater disse à revista australiana triple j no ano 2000, com referências tão díspares na cabeça como “Slanted and Enchanted”, o primeiro álbum dos indie-rockers dos anos 90 Pavement, “Enter the Wu-Tang”, a estreia dos Wu-Tang Clan, “What’s Going On”, o disco de Marvin Gaye, os Royal Trux, os Mercury Rev e os Flaming Lips, rap da onda dos De La Soul, disco-sound, discos de comédia e “aquela época estranha nos anos 1970, quando os Beach Boys perderam a noção e estavam a fazer discos sobre vegetais”. Isto além da wall of sound do produtor Phil Spector. Tinham tão poucas expectativas que, quando chegou a altura de licenciar os samples colecionados ao longo dos anos, nem se lembravam de onde tinham vindo.

E, claro, mesmo sabendo a origem, não foi assim tão fácil conseguir autorizações para tudo. Mesmo que muitos dos samples sejam obscuros, há algumas canções mais óbvias, como “Holiday”, de Madonna, ou “Ma Baker”, dos Boney M. “Stay Another Season”, a faixa que usava parte do êxito de Madonna, foi muito falada na altura por ter sido supostamente a primeira vez que a cantora, ela própria dada a fazer música com samples, tinha autorizado tal prática – e isto foi feito numa altura em que as leis ainda eram muito relaxadas.

Chega de saudade, Avalanches

Depois disso, ainda tentaram concertos em vários formatos, mas o disco não tinha sido feito para ser tocado ao vivo. Entretanto, projetos como a banda sonora para um musical, “King Kong”, entre outros, envolveram os membros dos Avalanches e o nome, mas música nova a sério teimava em não sair. Uma demo com David Berman, dos Silver Jews, a falar apareceu no YouTube, bem como remisturas, vários mixes, incluindo alguns da residência que, até 2009, tiveram no agora defunto (e minúsculo) bar St. Jerome’s, em Melbourne. O teaser que fizeram para essa noite mensal, chamada Brains, é dos poucos momentos que pode ser classificado como “música nova dos Avalanches” nesse período. Entretanto, Seltmann saiu da banda, que agora é composta por Robbie Chater, Tony DiBlasi e James Dela Cruz, que se juntou a eles depois da saída de Since I Left You, abandonou-os em 2004 e voltou a juntar-se no ano passado.

Wildflower chega, em princípio, no próximo mês de julho. Além dos já mencionados Danny Brown, DOOM, Jean-Michel Bernard, Ariel Pink, Father John Misty e Jennifer Herrema, inclui gente – a emprestar a voz e não só às canções – como o neo-zelandês da pop psicadélica Connan Mockasin, o cantor/compositor sueco que recorre muito a samples Jens Lekman, o duo de rap Camp Lo, August Darnell, dos Kid Creole & the Coconuts — que eram samplados em “Close To You”, de Since I Left You —, a lenda do rap/beatbox Biz Markie, o americano Chaz Bundick que faz aquela coisa a que se chamou chillwave como Toro y Moi, o barbudo multi-instrumentista Warren Ellis, que tem os Dirty Three e faz parte dos Bad Seeds, e Jonathan Donahue, de Mercury Rev (e ex-Flaming Lips). São tudo ou heróis de sempre ou gente com muitas influências da banda. Promete. É esperar que aconteça mesmo. Mesmo.