Antes do Château Smith Haut Lafitte ser considerado um dos melhores vinhos do mundo, a família detentora das vinhas já sabia que tinha um tesouro. Foi a filha dos proprietários, Mathilde Thomas, que ouviu a expressão pela primeira vez. Estava a passear pela propriedade na altura das vindimas quando um farmacêutico de Bordéus comentou que estavam a deitar fora material precioso. Ele não estava a olhar para o líquido que iria ser fermentado, engarrafado e fechado com uma rolha de cortiça — estava a olhar para as grainhas que iam para o lixo.

O professor era, na verdade, especialista em polifenóis, uma substância que protege dos radicais livres como os raios UV, a poluição e o stress que é retirada, precisamente, do pequeno caroço da uva. Nesse dia, há 23 anos, resumiu os poderes antioxidantes deste fruto na cosmética, se se soubessem estabilizar as fórmulas. Mais ou menos ali foi contratado e nasceu uma marca.

Quem a conhece das farmácias sabe que a Caudalie assenta toda a sua filosofia na vinoterapia, e por isso mesmo vende cremes anti-idade com extratos de videira, sprays de água de uva orgânica ou uma linha de defesa antirrugas construída em torno dos tais polifenóis retirados das grainhas. O que não conhece é o lugar onde ela foi criada, em Martillac, perto de Bordéus, as tais vinhas onde passeava Mathilde Thomas até dar de caras com o Professor Joseph Vercauteren. Mas as vinhas estão abertas a visitantes, assim como o château onde se realizam visitas guiadas e provas de vinho, um hotel com 40 quartos e 21 suítes, três restaurantes e o spa da marca, o primeiro a abrir em França e onde se fazem esfoliações com grainhas e massagens com uvas frescas, numa versão vinícola do filme de Tarantino, “Pulp Friction”.

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O hotel Les Sources de Caudalie foi construído ao lado das vinhas e é todo feito em madeiras reaproveitadas, como um lugar que nasceu da terra, ou uma casa da árvore.

Visitar Les Sources de Caudalie, as fontes da Caudalie, é descobrir um destino para amantes do vinho mas também da beleza. Está tudo ligado: de um lado o Château Smith Haut Lafitte, um castelo do século XIV que no início dos anos 90 foi comprado pelos pais de Mathilde, Florence e Daniel Cathiard; do outro o hotel de cinco estrelas e o spa, uma grande casa em madeira com lagos pelo meio, cisnes, cabras, galinhas e uma horta que está a ganhar terreno para abastecer os restaurantes, sobretudo o La Grand’Vigne, que ganhou a segunda estrela Michelin há dois anos. De manhã, antes de chegar à esplanada, é possível dar de caras com um dos assistentes do chef Nicolas Masse a apanhar morangos.

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Como se não bastassem os 78 hectares de vinhas por onde se pode passear de bicicleta, pontuadas aqui e ali por esculturas de artistas contemporâneos, vários detalhes da propriedade vão recordando a ligação ao vinho. No hotel principal os porta-chaves dos quartos são rolhas, no restaurante La Grand’Vigne, onde também se servem os pequenos-almoços, os arranjos de mesa são pequenas videiras, e no bar-mercearia gourmet Rouge é possível acompanhar canelés, os bolos tradicionais de Bordéus, com um copo de vinho da propriedade ou, não querendo álcool, sumo de uva Merlot.

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No bar e mercearia gourmet Rouge, o vinho é rei.

Da neve para as vinhas

Por mais estranho que pareça, a família que hoje faz do vinho a sua vida nem sequer era da área. Florence e Daniel Cathiard eram atletas de ski, entraram em competições, tinham um futuro promissor. Ele chegou a ser campeão e foi escolhido para representar França nos Jogos Olímpicos, mas decidiu continuar os estudos porque “achou que o desporto não ia durar muito tempo”, lê-se num livro à venda na receção do hotel, Sharing a bottle with Florence & Daniel Cathiard, de Gilles Berdin. Na mesma obra percebe-se que, apesar de não ter grandes conhecimentos, Daniel não era um estranho ao mundo vinícola. Em 1944, quando o pai decidiu mudar-se para o vale de uma aldeia termal dos Alpes, Uriage-les-Bains, e abrir uma pequena mercearia, ele vivia por cima da adega que abastecia a loja. O seu universo eram os cheiros, os sons, os tubos que transportavam o líquido, recorda no livro. A mãe diz que ele tocava bateria nas barricas.

Hoje, o Château Smith Haut Lafitte “é um dos quatro, entre 800 castelos produtores de vinho na região, que produz os seus próprios barris“, conta uma guia durante uma visita às adegas. Só se conseguem fazer dois ou três por dia e é preciso escolher o carvalho francês pessoalmente. O processo é delicado e muito importante, tendo em conta que o barril interfere no sabor do vinho e que o Château Smith Haut Lafitte está entre os dez melhores vinhos franceses, com garrafas que podem ultrapassar os 250 euros (e começam nos 58€).

Barrel cellar of Chateau Smith Haut Lafitte, Graves region, Bordeaux, France

As caves de vinho tinto dão para mais de mil barricas. (Foto: © Sara Matthews)

Há visitas guiadas todos os dias, por marcação, para conhecer o castelo e a história das vinhas, visitar as caves com capacidade para mais de mil barricas e fazer provas dos dois vinhos da propriedade (o segundo é o Les Hauts de Smith, igualmente com variedades tintas e brancas). Na sala de provas tem-se, aliás, direito a um momento James Bond: um alçapão eletrónico que se abre deixando a descoberto uma sala secreta onde Daniel Cathiard guarda uma coleção de garrafas Château Smith Haut Lafitte que remontam a 1878. O pó não mente: nessa altura já se fazia vinho, e até antes disso, porque as vinhas foram plantadas ainda no século XIV pela família Verrier du Bosq e 400 anos mais tarde adquiridas por George Smith, que deixou o seu apelido no rótulo. Mas tal como não mente o pó, não mentem os guias, e a verdade é que o vinho Château Smith Haut Lafitte só se tornou famoso nos anos 90, já sob gestão dos Cathiard, quando começou a entrar na lista dos melhores vinhos de Bordéus e, depois, na dos 10 melhores vinhos franceses.

Uma das razões do sucesso estará na forma como os ex-campeões de ski conseguiram aliar a produção tradicional às novas tecnologias, a começar pelas próprias vindimas: as uvas continuam a ser apanhadas à mão mas é um satélite que indica qual a data ideal para a colheita, medindo por exemplo a temperatura. “A data das vindimas é muito importante porque tem influência nos taninos do vinho”, explica a guia, acrescentando que é um sistema de vibração que separa as uvas dos ramos e um sistema visual, criado em 2008, que escolhe os melhores exemplares de cada cacho. A explicação parece tirada de um filme futurista e envolve um sistema que tira uma fotografia de cada uva e analisa a sua forma, cor e tamanho — “só as uvas consideradas perfeitas continuam o processo do vinho, as outras são retiradas com um jato preciso”.

Mas nada se perde, tudo se transforma. Depois de separados, os ramos são usados para compostagem, as cascas e as grainhas (não usadas no vinho branco) vão para a cosmética e até o dióxido de carbono emitido durante a fermentação é transformado em bicabornato de sódio, outro fertilizante.

Travaux d'hiver - Chevaux a SHL (1)

Em nome da tradição, as vinhas ainda são aradas com cavalos criados ali.

Uma videira, três patentes

Desde o encontro nas vinhas entre Mathilde Thomas e o Professor Vercauteren, a Caudalie — cujo nome vem da unidade que mede a duração do sabor do vinho depois de uma prova — já espremeu muitas uvas, literal e simbolicamente. Criada em 1995 e gerida ainda hoje de forma familiar, por Mathilde e o marido Bertrand, a marca já registou três patentes distintas, uma delas em parceria com os especialistas em envelhecimento de Harvard. Para além dos polifenóis presentes na grainha, os tais que combatem os radicais livres, há ainda o resveratrol e a viniferina. O primeiro, presente nos ramos, é o que permite às videiras renovarem-se e viver até aos 100 anos, dando por isso um potente anti-rugas. A segunda está na seiva e deu origem a um ditado. “Dizemos que quando a vinha chora, a cara da mulher ilumina-se”, conta Gaëlle Vassilev, responsável pela comunicação internacional da Caudalie. A crença veio de um facto que se observava durante as vindimas: ao contrário de outros trabalhadores agrícolas, as mulheres que cortavam os cachos não tinham as mãos manchadas pelo sol. A luva natural era a viniferina, hoje utilizada em cremes e séruns de uma das linhas bestsellers, a Vinoperfect.

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No spa há massagens com uvas frescas.

Não é por isso de estranhar que na sala de relaxamento do spa de Martillac, recentemente renovado, haja uvas para comer com as infusões, em vez dos tradicionais frutos secos. “Somos únicos no mundo porque usamos tudo o que retiramos das vinhas ao lado”, diz a diretora, Delphine Dufour. Basta passar os olhos pelos tratamentos de assinatura para o comprovar. Para além da massagem “Pulp Friction” com uvas frescas (108€), há um envolvimento com levedura, “muito hidratante” (66€), um banho com os resíduos das uvas depois de pisadas e espremidas (“Barrel Bath”, 66€) e uma esfoliação com uma pasta que apetece comer porque leva grainhas, açúcar amarelo e mel (Crushed Cabernet, 88€).

Na fonte onde tudo começou é possível relaxar no jacuzzi com vista para as vinhas e banhar o corpo na água termal descoberta a 540 metros de profundidade. Só não é possível passar lá a vida sem passar primeiro pelo aeroporto de Bordéus. Mas para isso resta um (semi) consolo: os dois spas da marca em Portugal: um no L’AND Vineyards, no Alentejo, outro no The Yeatman, em Gaia. Dois hotéis dedicados ao vinho, pois claro.

Nome: Les Sources de Caudalie
Morada: Chemin de Smith Haut Lafitte, 33650 Bordéus-Martillac (França)
Contactos: +33 (0)5 57 83 83 83, sources@sources-caudalie.com, reservations@sources-caudalie.com
Preços: Quartos duplos a partir de 300€/noite. O menu de degustação do restaurante La Grand’Vigne custa 90€ ou 130€, consoante tenha cinco ou sete pratos.

O Observador viajou a convite da Les Sources de Caudalie.