A Comissão Europeia não pediu ao Governo para entregar uma versão revista do Orçamento apesar de este não cumprir os requisitos para ser aprovado, nem exigindo mais medidas, apesar de o ter feito com o Orçamento para 2016 que cumpria as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Bruxelas justifica a decisão dizendo que Portugal chumbaria por pouco, e por isso deixa passar o Orçamento e não pede mais medidas. Para já.

Depois de uma muito pública negociação sobre o Orçamento do Estado para 2016, que culminou com a sua aprovação, a negociação para a aprovação da proposta de Orçamento do Estado para 2017 também terminou com final feliz. Tudo está bem, quando acaba bem. Mas, desta vez, para este processo voltar a acabar bem, Portugal contou com uma mãozinha da Comissão Europeia.

Que mãozinha foi esta? Como a própria Comissão Europeia admite na opinião que é publicada esta quarta-feira, o orçamento não cumpre o que lhe é exigido para poder ser aprovado pela Comissão Europeia, mas como chumbaria por uma margem muito pequena (face à diferença que tanto Pierre Mocovici, como Valdis Dombrovskis , disseram por várias vezes a 5 de fevereiro, era o máximo que permitiriam) a Comissão deixa o orçamento passar.

Em fevereiro, a Comissão Europeia refugiou-se nas mesmas regras que agora não aplica para exigir ao Governo mais medidas no Orçamento do Estado para cortar o défice. Isto obrigou o Governo a apresentar mais medidas de última hora, depois de propor um aumento maior que o inicial do imposto sobre os combustíveis e sobre o tabaco. A medida escolhida foi a redução da Taxa Social Única (TSU) paga pelos trabalhadores com salários brutos até 600 euros, que permitiria a todos os trabalhadores com mais baixos ordenados ter mais rendimento líquido sem um aumento do ordenado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sem o recuo dessa medida, a redução do défice estrutural prevista no Orçamento do Estado para 2016 seria igual ou até maior que a prevista no Orçamento para este ano, mas ainda assim a Comissão disse na altura que legalmente não o podia aprovar sem mais medidas e ameaçou de chumbo até ao último dia.

De acordo com o regulamento da Comissão Europeia 1466/97, se o esforço estrutural exigido estiver dentro da barreira considerada de desvio significativo (como a Comissão Europeia diz que está), então o Conselho tem de exigir mais medidas, que seria o que aconteceria agora, caso a Comissão não tivesse decidido que o desvio é demasiado curto para exigir mais medidas.

“Se , posteriormente, na sua actividade de acompanhamento, o Conselho considerar que persiste ou se agravou o desvio da situação orçamental em relação ao objectivo orçamental de médio prazo, ou em relação à respectiva trajectória de ajustamento, o Conselho apresentará então, nos termos do n? 4 do artigo 103?, uma recomendação ao Estado-membro em causa para que este tome imediatamente medidas correctivas, podendo, nos termos daquele artigo, tornar pública a sua recomendação”, pode ler-se no regulamento.

O que era exigido ao Orçamento

Quando os ministros das Finanças da União Europeia decidiram, em agosto, que não iriam impor uma multa a Portugal por ter violado a meta do défice em 2015, foi decidido que em troca Portugal teria de reduzir o défice estrutural de 2017 em pelo menos 0,6 pontos percentuais, o equivalente a 1.100 milhões de euros.

Depois da resistência inicial do Governo, mas à qual a Comissão Europeia não foi sensível, o Executivo disse publicamente que ia cumprir e que iria apresentar uma proposta de orçamento com uma redução do défice estrutural em 0,6 pontos percentuais, tal como exigido por Bruxelas.

“Implementar um esforço estrutural adicional de 0,25% do PIB em 2017, comparando com os 0,35% do PIB estipulados no Programa de Estabilidade para 2016 de abril”, é o que diz a decisão do Conselho da União Europeia, entre as razões para cancelar a multa de 0,2% do PIB por violação do défice em 2015.

As palavras, então do secretário de Estado do Tesouro e Finanças numa entrevista à Bloomberg, em Nova Iorque, pareciam ter passado a actos no orçamento. A 14 de outubro Mário Centeno apresentou ao país um orçamento com uma redução do défice estrutural de 0,6 pontos percentuais. Tudo de acordo com as regras até aqui.

As contas que não batem certo

Problemas com as contas. A Comissão Europeia recebeu o Esboço do Orçamento a 17 de outubro. Uma semana depois enviava uma carta para Lisboa a pedir esclarecimentos ao Governo, já que as contas da Comissão não batiam com as do Governo.

Os técnicos da Comissão Europeia projetavam uma melhoria ligeira do défice estrutural que, a ser confirmada, “apontaria para um risco de desvio significativo do ajustamento de 0,6 pontos percentuais do PIB recomendados”, pode ler-se na carta da Comissão Europeia.

Nela, a Comissão pedia então ao Governo para prestar alguns esclarecimentos, nomeadamente em relação a medidas individuais. O Governo desdramatizou o tema, dizendo que havia uma divergência pequena e que a Comissão tinha dúvidas muito limitadas em relação à forma como se previam os resultados de algumas medidas.

No entanto, na resposta enviada dois dias depois pelo Governo para Bruxelas, o Governo já explica as divergências que tem em relação à forma de cálculo do PIB potencial pela Comissão Europeia.

A questão foi explicada pelo Conselho das Finanças Públicas esta terça-feira e confirmada pela Comissão Europeia esta quarta-feira: apesar de no orçamento o Governo prever que vai reduzir o défice estrutural em 0,6 pontos percentuais, este cálculo é feito usando um cálculo do PIB potencial de acordo com aquilo que o Governo acha mais correto, e que beneficia as contas do défice estrutural do Governo, e não com o que as regras aprovadas por todos os Estados-membros obrigam.

Recalculado o ajustamento estrutural no Orçamento de acordo com as regras europeias, as que contam legalmente, a redução do défice estrutural só vale 0,3 pontos percentuais. Isto em si já demonstra um desvio face ao que Portugal acordou com o Conselho da União Europeia em agosto (vale apenas metade), mas não chegaria para ver o Orçamento chumbado.

Então o que justificaria o chumbo? Ao contrário do que aconteceu em fevereiro, porque o orçamento português chegou mais tarde – porque as eleições e a queda do Governo atrasaram o processo -, o que conta para a avaliação da legalidade do orçamento são as previsões da Comissão Europeia e não as do Governo.

Ou seja, o ajustamento estrutural é calculado com base naquilo que a Comissão Europeia espera que seja: 1) o valor das medidas em si; 2) a evolução da economia.

O primeiro efeito, que é de pequena dimensão, é que a Comissão Europeia, à semelhança do que aconteceu no passado (o tempo viria a dar-lhe razão), acha que as poupanças com a redução do número de funcionários públicos não vão valer os 122 milhões de euros que o Governo estima. A previsão da Comissão é que valham metade deste valor.

O segundo efeito, com maior impacto, é a diferença de previsões. A Comissão Europeia espera que a economia portuguesa cresça apenas 1,2%, mais pessimista que os 1,5% esperados pelo Governo para o próximo ano. Não só a atividade económica cresceria menos, nas contas da Comissão, como as suas componentes seriam menos favoráveis à obtenção de algumas das receitas fiscais que o Governo conta obter e que contariam para a redução do défice.

Há ou não ajustamento em 2017?

No final de contas, o Governo diz que o ajustamento é de 0,6 pontos percentuais, a Comissão recalcula esse ajustamento de acordo com as regras e diz que vale apenas 0,3 p.p., e depois aplica-lhe o seu próprio cenário macroeconómico e ajusta o valor que dá às medidas e diz que não há ajustamento estrutural em 2017.

Ou seja, o défice estrutural este ano piora em uma décima, de 2,3% para 2,4% do PIB, e em 2017 fica inalterado nos 2,4%, ano em que devia cair pelo menos 0,6 pontos percentuais para cumprir o acordado com a União Europeia, ou 0,1 pontos percentuais para não ser chumbado.

É isso mesmo que diz a Comissão Europeia na opinião sobre o orçamento que publica esta quarta-feira: “o desvio projetado excede o limite a partir do qual é considerado um desvio significativo [o que implicaria o seu chumbo], mas por uma margem curta”.

O comissário europeu Pierre Moscovici disse na conferência de imprensa que se seguiu à decisão no Colégio de Comissários que o desvio “é muito pequeno” e que os “riscos estar contidos”, e que a correção duradoura do défice parece ser alcançável, mas que a decisão será revisitada na primavera, lembrando também os números do PIB mais positivos que o esperado que foram conhecidos esta terça-feira.

O desvio de que fala o comissário não é em relação ao que Portugal se comprometeu a fazer, mas em relação ao que as regras estipulam. O orçamento para 2017 tem, nas contas da Comissão, um desvio maior à partida face ao que tinha o orçamento para 2016 em fevereiro.

Ainda assim, mesmo com este desvio maior e ao contrário do que aconteceu este ano, a Comissão diz que não Portugal não precisa de tomar mais medidas para corrigir o défice.

“Portugal não precisará de apresentar medidas adicionais em 2017, desde que os riscos de desvios não se materializem”, disse o comissário francês, que disse que os resultados orçamentais podem ser melhores que o esperado, quando os pareceres da Comissão e dos seus técnicos, conhecidos esta terça-feira, dizem que os riscos são predominantemente negativos.

“Para 2016 e 2017, os riscos das projeções de outono da Comissão [mais negativos que os do Governo] são maioritariamente negativos. Estes estão ligados a incertezas em torno do cenário macroeconómico, ao potencial impacto orçamental de medidas de apoio a bancos [Caixa Geral de Depósitos] e a potenciais derrapagens na despesa”, pode ler-se na avaliação dos técnicos da Comissão.

E explicações?

O Observador questionou a Comissão Europeia sobre a base legal para avançar com esta decisão e sobre o porquê de durante as negociações para o Orçamento para 2016 não ter adotado a mesma postura, que permitiria que pelo menos a última cedência feita pelo Governo – não avançar com a redução da Taxa Social Única para os trabalhadores vencimentos brutos até com 600 euros – não tivesse de ser feita, mas até ao momento ainda não foi possível obter esclarecimentos da parte do Executivo europeu.

(Artigo atualizado às 18h20 com mais informação)