Aconteceu há 100 anos. Amadeo de Souza-Cardoso era já um pintor reconhecido nos meios de vanguarda artística e tinha participado em exposições coletivas em Paris, Berlim ou Nova Iorque. Regressara a Portugal no início da I Guerra Mundial. E em 1916 expôs em nome próprio: primeiro no Porto, no Jardim Passos Manuel; depois em Lisboa, na Liga Naval Portuguesa.
Foram dois momentos históricos, marcados por críticas e polémicas em torno da ousadia estética de Amadeo – um artista plástico difícil de definir, que navegou pelo cubismo, impressionismo, futurismo e abstracionismo. Rezam as crónicas que houve no Porto quem cuspisse os quadros, tal a incompreensão perante as obras.
Um século depois, essas mesmas exposições estão a ser reabilitadas. Em novembro e dezembro, o Museu Nacional Soares dos Reis evocou a exposição nortenha de 1916 – com 90 obras, das 114 originais. Esta semana, o Museu do Chiado inaugura a recriação da mostra lisboeta centenária – com 81 quadros (52 de instituições pública, 29 de coleções privadas).
Intitulada “Amadeo de Souza-Cardoso/Porto Lisboa/2016-1916“, a exposição inaugura esta quarta-feira e abre ao público na quinta, 12, mantendo-se até 26 de fevereiro. A curadoria pertence às historiadoras Raquel Henriques da Silva e Marta Soares.
“Para esta exposição tivemos de estudar muito o contexto dos dois locais em que Amadeo expôs para percebermos de que modo esses espaços foram fundamentais para a receção das exposições”, explica Marta Soares.
“No Porto, Amadeo teve uma enorme visibilidade, houve multidões a acorrer ao Jardim Passos Manuel. Em Lisboa, a polémica foi menor. Ele não foi agredido, ninguém cuspiu os quadros. Isso demonstra a diferença de públicos, mas também o facto de a Liga Naval, em Lisboa, ser um espaço mais resguardado”, acrescenta a curadora.
Além da exposição propriamente dita, o Museu do Chiado organiza um conjunto de seis conferências em torno de Amadeo. A primeira realiza-se no sábado, 14, às 16h00: “O Porto em 1916, o Jardim Passos Manuel e a exposição de Amadeo”, com moderação da museóloga Aida Rechena, diretora do museu, e a participação de Ana Paula Machado, Elisa Soares, Sónia Moura e Marta Soares.
Em jeito de antecipação, o Observador falou com a curadora Marta Soares e pediu-lhe que escolhesse e explicasse brevemente seis das obras que vão ser exibidas a partir desta semana.
“Tristezas cabeça”
cerca 1914-1915; óleo sobre cartão; 37 x 38,5 cm
“Vemos um rosto sombrio, um pouco expressionista, que parece encaixar na paleta muito colorida pela qual Amadeo se tornou conhecido. Estas cabeças que o pintor mostrava em vários quadros, mais ou menos no início da exposição de 1916, eram tão grotescas e sombrias que podem ter contribuído para a incompreensão dos visitantes há 100 anos.”
“Par Impar 1 2 1”
cerca 1915-1916; óleo sobre tela; 100 x 70 cm
“É um belo quadro, especialmente importante pela relação que parece estabelecer entre Amadeo e Almada Negreiros. A expressão do título surge num postal que o Amadeo envia a Almada, ainda antes de o conhecer pessoalmente, apoiando o Manifesto Anti-Dantas. Neste quadro, a figura humana surge automatizada, parece quase uma marioneta intersetada por varas. É uma via que Amadeo vai explorar em 1916, 1917: as varas que intersetam objetos.”
“Vida dos Instrumentos”
cerca 1916; óleo sobre tela; 70 x 50 cm
“Outro traço fundamental da exposição é a atribuição de vida aos objetos: nas naturezas mortas e sobretudo nos instrumentos musicais. Por volta de 1916, Amadeo está a trabalhar em torno desse animismo, da transferência de vida para os instrumentos musicais, enquanto os músicos surgem desumanizados, muito sombrios em algumas composições. É o período da I Guerra, como se os humanos estivessem esvaziados de alma e a vida tivesse sido transferida para os objetos.”
“Mucha”
cerca de 1915 – 1916, óleo sobre tela, 27,3 x 21,4 cm
“Talvez a palavra ‘Mucha’ [lê-se “muchá”] seja uma ironia com a expressão ‘na mouche’. De resto, há em muitos títulos desta exposição um jogo fino entre o francês e o português. A partir de 1916, Amadeo pega nas experiências cromáticas do pintor Robert Delaunay, que se encontrava em Portugal, e transforma-as. Em vez de desenvolver os discos órficos de Delaunay [uma superação do cubismo através da cor e da luz em múltiplas facetas e de forma circular], Amadeo como que os parodia, tornando os discos em alvos concretos, alvos de tiro. Ele está a descer à terra, transforma uma teoria em objetos.”
“A máscara de olho verde cabeça”
cerca de 1915-1916, óleo sobre tela, 55 x 39,5 cm
“Um pormenor desta pintura está a ser utilizado no cartaz da exposição do Museu do Chiado. É belíssimo. Em contraste com as cabeças sombrias que Amadeo criou para o início da exposição, este quadro é muito garrido. É uma antítese. Faz parte da série de cabeças, mas tem outras influências. Fala-se da máscara africana, mas também podemos pensar nas máscaras dos caretos de Podence, de Trás-os-Montes. A paleta é muito parecida, assim como o nariz. Há a possibilidade de Amadeo ter encontrado nesse costume tradicional português um estímulo para a sua pintura.”
“Arabesco dynamico = REAL…”
cerca de 1915-1916, óleo sobre tela, 100 x 60 cm
“O título é bastante longo e inclui intervenções gráficas, o que despertou curiosidade e polémica em 1916. Muitas críticas negativas então publicadas citavam este título como exemplo da excentricidade de Amadeo. Claramente, estava em diálogo com Santa-Rita Pintor, que também utilizava parêntesis nos títulos. Vemos neste quadro um ambiente mecanizado, com o pintor a explorar as relações com futurismo. Note-se a vaga sugestão de uma mão a segurar um instrumento musical. É um elemento muito camuflado e subtil.”
O Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado está aberto de terça a domingo, das 10h às 18h. Entrada: 4,5 euros. Gratuito no 1.º domingo de cada mês.