Sem medo e pela liberdade. As palavras de ordem soam do alto da estátua da República, em Paris, onde dezenas de manifestantes mais ágeis se instalaram para se fazerem ouvir lá em baixo. Lá em baixo, leia-se um verdadeiro oceano de gente, que responde e bate palmas. Há Ahmeds, Maries e todos os nomes que alguns cartazes em homenagem às vítimas do Charlie Hebdo exibem para passar a mensagem de que todos “somos Charlie”. Calcula-se que, pelas 15h, 1,5 a dois milhões de pessoas estivessem na zona.
Pelas 11h30 já a praça estava composta de manifestantes. Excecionalmente, os transportes públicos são gratuitos e estão abertos até à 1h00. Pelas 13h, no entanto, oito estações foram encerradas por “motivos de segurança”. As mais próximas do local da manifestação. O acesso ao local faz-se pelas restantes estações mais próximas. Pelas 15h há, ainda, centenas de grupos de pessoas a chegar.
Por esta altura já é difícil chegar à estátua onde, pela manhã, tinham sido colocadas velas, flores e lápis. Lápis pela liberdade de expressão. Este foi, aliás, um dos objetos levados por muitos manifestantes. As ruas de acesso à Praça da República também começam a encher. Centenas de pessoas com cartazes e bandeiras. Há cafés cheios de gente. Outros preferiram fechar portas. Ouve-se mais uma salva de palmas. Pela liberdade.
“Eu estou aqui pela República e pelos valores da República”, atira a mulher de braço no ar, de onde sai a bandeira da França. Parece cansada de ouvir outros argumentos. Mas a liberdade de expressão assim o permite. Duas horas antes, quando ainda era possível chegar à estátua da República, Hajer, uma muçulmana de 31 anos, apresentava os seus. Nasceu em França, mas decidiu deslocar-se à Praça da república para representar as suas origens e a sua religião.
“Sou franco tunisina”, afirma perante o casal que insiste que ela é, sim, francesa.
Traz nas mãos um cartaz em homenagem a Lassana Bathaly, o muçulmano do Mali que salvou “15 pessoas” no supermercado judaico na Porte de Vincennes, onde o jihadista Amedy Coulibaly fez quatro mortos na última sexta-feira. Veio sozinha porque não quer por os seus “amigos em risco”. E quando o diz emociona-se. Hajer trabalha como secretária e nos tempos livres faz caricaturas. “Não como as caricaturas a que o Charlie Hebdo” nos habituou, avisa Hajer, muçulmana.
“Eu sou contra o que os falsos muçulmanos fizeram, mas também não concordo que se faça caricaturas sobre a religião e sobre o sagrado”, afirma. Uma mulher junta-se a ela e dá-lhe razão. “Não se deve brincar com a religião, seja ela qual for”, diz. Um casal intervém. “É humor, não é gozar. Num país livre não se pode fazer humor?”, interrogam. A mulher exalta-se e continua a responder que não, acaba por virar costas e pôr um ponto final à discussão.
Hajer pede paz. Paz para aceitar que cada um tenha “o seu ponto de vista”, mesmo que diferente. “Os dois irmãos que atacaram o Charlie Hebdo não são muçulmanos. São fanáticos que se deixaram instrumentalizar”, alerta. Ela, diz, que é muçulmana, aceita que existam outras religiões. “A minha melhor amiga é budista. Eu não acredito no Buda”, justifica.
Da estátua da República, onde está inscrita a frase “À glória da república francesa”, continuam as palavras de ordem. “Quem são vocês?”, grita-se. A multidão responde: “Somos Charlie”. Mais uma salva de palmas. E o hino nacional. Impossível ver se os chefes de Estado que disseram estar presentes já chegaram.
No lado oposto da praça, uma bandeira portuguesa no ar.
Em França, os dois casais portugueses e as filhas vieram do departamento 94, o de Val-de-Marne. De Portugal são de Aveiro, Amarante e Mogadouro. Chegaram à república francesa há mais de 20 anos. Susana casou com Paulo Miguel e têm uma filha de 12 anos. Paulo Neves casou com uma francesa de origens croata e argelina, de educação católica. Os dois têm uma filha de 11. Ao contrário de muitos portugueses, os dois casais fizeram questão de deslocar-se ao centro de Paris “pela liberdade de expressão”. Também eles, afirmam, “não têm medo”. Mas tiveram. Pelo menos no dia em que ligaram a televisão e viram que o semanário satírico “Charlie Hebdo” tinha sido barbaramente atacado por dois terroristas.
As autoridades francesas montaram um mega dispositivo de segurança. As redes telefónicas estão lotadas e entre a multidão não é possível fazer chamadas telefónicas. Só fora do perímetro da manifestação o telefone volta a captar.
Entre a multidão, é possível ver elementos da Polícia Nacional e da Gendarmerie. Há quem queira mesmo tirar fotografias com os guardas. Uma criança de cerca de seis anos fica feliz enquanto posa para a fotografia entre dois guardas. Um homem que passa mostra-se solidário e dá um chocolate a cada um deles. Afinal, é a manifestação pelos valores da República Francesa. Liberdade, fraternidade e igualdade.