A Associação Portuguesa de Realizadores (APR), que representa pelo menos 116 profissionais do cinema, considerou este domingo que a situação do setor é “calamitosa”, no contexto da pandemia do novo coronavírus, e que o Ministério da Cultura está a revelar “falta de lucidez” e uma “absoluta irrelevância política” por, alegadamente, ser “testemunha  de braços cruzados” da “expectável falência de produtoras, distribuidores, exibidores independentes e outras entidades”.

Em comunicado recebido pelo Observador, a APR — desde há muito crítica das políticas públicas adotadas para o cinema — explicou que se tinha reunido a 20 de abril com o secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média, Nuno Artur Silva, e com o presidente do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), Luís Chaby Vaz, aos quais apresentou “três medidas de intervenção pública com caráter de urgência”. Segundo a APR, Nuno Artur Silva “rejeitou a totalidade das propostas” porque, terá dito, “não podem existir medidas de apoio a fundo perdido”.

O secretário de Estado terá acrescentado que “as questões dos trabalhadores da cultura devem ser resolvidas pelos ministérios centrais” e que “as medidas de apoio ao setor se irão cingir à flexibilização das regras administrativas no ICA”. Com estas respostas, Nuno Artur Silva, e já anteriormente a ministra Graça Fonseca, “colocam a tónica no futuro do setor”, mas a APR “não percebe que futuro é esse de que falam”.

A APR participou na reunião de 20 de abril como membro da Plataforma das Estruturas de Cinema, a que também pertencem a Apordoc – Associação pelo Documentário, o IndieLisboa, a Portugal Film, a Agência da Curta Metragem e a PCIA – Produtores de Cinema Independente Associados, entre outros. O comunicado de domingo foi subscrito por todas aquelas entidades.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“A Plataforma do Cinema não percebe que futuro é esse de que falam ministra e secretário de Estado”, referiu o comunicado. “É revelador de uma preocupante falta de lucidez que se pondere  a discussão de um novo plano estratégico no final do ano, enquanto se testemunha  de braços cruzados a expectável falência de produtoras, distribuidores, exibidores independentes e outras entidades do setor.”

As três propostas presumivelmente rejeitadas por Nuno Artur Silva são:

  • a “criação imediata de um fundo de emergência para os trabalhadores do setor”;
  • a “criação de um plano de contingência a dois anos para produtoras, festivais, cineclubes, empresas de serviços, exibidores e distribuidores independentes”;
  • e um retomar do acordo que já existiu entre a RTP e o ICA para “um complemento financeiro automático” por parte da estação pública sobre os montantes atribuídos pelo ICA a cada projeto apoiado.

Em tom mais duro, a APR e a Plataforma disseram constatar “a absoluta irrelevância política do Ministério da Cultura e da recém-criada Secretaria de Estado do Cinema e do Audiovisual”, considerando que “os atuais ocupantes do Palácio da Ajuda não sentem fazer parte do setor que tutelam, não o conhecem e nada farão para o preservar”.

Ao Observador, Filipa Reis, presidente da APR, precisou entretanto o sentido da acusação de “irrelevância política”. “Se há um ministério que tutela a cultura, não faz sentido que remetam tudo para outros ministérios, considerados centrais”, disse. “Se são outras as instâncias do Governo que podem decidir, parece que afinal não temos interlocutor possível.”

Medidas são as mesmas desde 18 de março

Em audição parlamentar a 15 de abril, o secretário de Estado informou que o ICA simplificou e flexibilizou os concursos de financiamento “com a preocupação de facilitar ao máximo” a vida de produtores e realizadores. A 18 de março, o ICA tinha anunciado que iria “manter as datas previstas de fecho” dos concursos de apoio ao cinema e ao audiovisual de 2020 — abertos a 18 de fevereiro, com orçamento de 22,7 milhões de euros —, garantindo uma “atuação protecionista dos candidatos” e “flexibilização de algumas exigência formais”. Esse anúncio foi atualizado há poucos dias, nos mesmos termos mas com mais pormenores.

Ou seja, mantém-se até ao momento a resposta que o Ministério da Cultura implementou praticamente desde a chegada da pandemia a Portugal e da consequente declaração de “estado de emergência”.

“A flexibilização de procedimentos é bem-vinda, mas tem de haver apoio extra, porque muitos projetos pensados em termos de orçamento antes da pandemia não conseguirão ser concretizados com a dotação a que se candidataram”, notou ao Observador Filipa Reis. “Estamos a alertar para que não aconteça o pior: que, em desespero, o dinheiro destinado a projetos apoiados pelo ICA venha a ser usado para a sobrevivência dos profissionais de cinema e das suas estruturas”.

A APR e a Plataforma dizem manter-se “abertas ao diálogo” e pediram entretanto ao CENA-STE (Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos) e ao APTA (Agrupamento Português de Técnicos de Audiovisual) para fornecerem ao Ministério da Cultura o número de profissionais da área afetados pela crise.

O encerramento de salas, uma possível redução de público mesmo depois da reabertura e a interrupção de filmagens sem data de retoma são alguns dos sintomas dessa crise, no entender da APR e da Plataforma, a que acresce tratar-se de um “setor marcado pela precariedade e sazonalidade da atividade”.

O Observador pediu na tarde de domingo um comentário ao Ministério da Cultura, mas não obteve resposta imediata.