No “limiar de meio século de democracia”, o Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto, irá celebrar os 50 anos da Revolução dos Cravos, evocando os valores de Abril e com uma programação temática, cujo elo de ligação será o questionamento das heranças que esta época de mudança no país relegou às gerações vindouras. Nuno Cardoso, diretor artístico do TNSJ, explica que se trata de uma programação “dialogante e de questionamento para com o público, numa sociedade cada vez mais extremada pelas certezas absolutas e consequente falta de debate”, que contradizem o “viver democrático que o 25 de Abril de 1974 ajudou a consolidar”.

Nessa mesma evocação, o destaque vai desde logo para a nova produção própria do TNSJ, na qual o encenador dramatiza o romance Fado Alexandrino, de António Lobo Antunes. Levantado em parceria com as principais instituições parceiras do TNSJ – o Theatro Circo de Braga, o Teatro Aveirense e o Centro Cultural de Belém –, o espetáculo estreia-se a 5 de abril, fica em cena até ao dia 28, seguindo depois numa digressão nacional com paragens em Lisboa, Aveiro, Braga e Faro. Trata-se de um projeto de cunho pessoal, marcado pelas memórias familiares do encenador, mas também de uma criação que “aborda a guerra colonial, que não deixa ainda hoje de ser um tema pouco confrontado”, acrescenta Nuno Cardoso. “É quase impossível traduzir o turbilhão e a poética deste romance, que é também um documento vibrante para dialogar sobre o que foi este meio século no país”.

Ainda no âmbito das comemorações, o TNSJ convida Pedro Penim, o encenador e diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, que irá projetar nas vozes e nos corpos de jovens atores/cantores um questionamento individual e coletivo em Quis Saber Quem Sou (em cena de 31 de maio e 1 de junho), título-emblema que recupera o verso inaugural de E Depois do Adeus, a canção que foi a primeira senha do 25 de Abril. Já no Teatro Carlos Alberto, a revolução volta a ser lembrada em O 25 de Abril Nunca Aconteceu, peça de Ricardo Alves, que assume a forma de distopia-homenagem aos valores da liberdade e da democracia, e que pode ser vista de 11 a 27 de abril.

A relação da Revolução dos Cravos com a música será também destacada como tema dos concertos de MUSICAL-MENTE, a decorrerem no Mosteiro de São Bento da Vitória, de 15 fevereiro a 27 março, e que marcam o arranque deste ciclo celebrativo.

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As outras formas de Shakespeare

Orientado historicamente para os clássicos, a TNSJ apresenta igualmente para estes meses o ciclo Outro Shakespeare, que decorre a partir de março, no Teatro Carlos Alberto, com três coproduções. Nos três espetáculos, cada um dos encenadores trabalha as peças do dramaturgo inglês sob um ângulo muito próprio. Neste “périplo por Shakespeare”, pretende-se trabalhar um outro “olhar sobre a posição que o dramaturgo mais famoso de todos os tempos ocupa no cânone ocidental”, realça Nuno Cardoso ao Observador. “Será sobretudo uma programação descentrada e não estilizada pela forma habitual como as suas peças são encenadas”, sintetiza.

O ciclo arranca então com a proposta de Marco Paiva e a peça Ricardo III, apresentada em Língua Gestual Portuguesa e Espanhola, com um elenco formado por intérpretes dos dois países. O espetáculo legendado em português está em cena entre 18 e 21 de janeiro. Segue-se a criação Outra Tempestade, em cena de 15 a 18 de fevereiro, uma encenação de Carlos J. Pessoa, que oferece horizonte à última das peças de Shakespeare, A Tempestade, marcando igualmente o regresso do Teatro da Garagem aos palcos do TNSJ. Por fim, em Hamlet, L’Ange du Bizarre, Miguel Moreira propõe um espetáculo híbrido, que combina teatro, dança numa espécie de anjo do bizarro de 29 de fevereiro a 3 de março.

Coproduções com companhias da cidade do Porto

Além da nova criação própria de Nuno Cardoso, o destaque destes últimos meses de temporada irá para a criação da escritora e encenadora Patrícia Portela, que irá dirigir o próprio diretor artístico do São João como ator em Homens Hediondos, monólogo a partir da obra de David Foster Wallace. Quase no fecho da temporada, o espetáculo estreia-se a 20 de junho, no Teatro Carlos Alberto, e fica em cena até ao dia 30. Num outro momento importante para a presente temporada, o TNSJ coproduz e apresenta Angela (a strange loop), a nova criação da encenadora alemã Susanne Kennedy, em colaboração com o artista visual Markus Selg. Ultrapassados os limites tradicionais do teatro, o espetáculo quer “mergulhar nos abismos de uma influencer das redes sociais”, através de um espetáculo multimédia em permanente transformação. Está em cena nos dias 15 e 16 de março no Teatro São João.

Em 2024, o TNSJ quer reforçar igualmente a sua colaboração com companhias de teatro sediadas na cidade do Porto. Em parceria com a ASSéDIO, que celebra 26 anos de trabalho, o TNSJ levanta Terno e Cruel, de Martin Crimp. A primeira coprodução a estrear em 2024 tem encenação de João Cardoso, fundador e diretor artístico da companhia. Está em cena de 22 de fevereiro a 3 de março. No mesmo palco, estreia-se a 29 de maio Lugares Invisíveis, uma coprodução com o Coletivo Espaço Invisível, na qual o ator e encenador Nuno Preto e a bailarina e criadora Daniela Cruz propõem um espetáculo-percurso pelos lugares inacessíveis ao público na rotina diária daquela instituição.

De 13 a 22 de junho, o Ensemble – Sociedade de Actores regressa ao palco principal do Teatro Nacional São João com uma peça do dramaturgo britânico Arnold Wesker, um dos nomes essenciais da geração dos angry young men. A emblemática companhia portuense coproduz com o TNSJ Os Homens Morrem As Mulheres Sobrevivem, numa encenação de Jorge Pinto, que também assina a cenografia do espetáculo.

Por sua vez, em maio, o Teatro Nacional São João volta a receber o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica. A 47.ª edição do FITEI traz quatro espetáculos aos palcos do Teatro Carlos Alberto e do Teatro São João. O FITEI no TNSJ arranca nos dias 16 e 17 de maio com Manuela Rey Is In Da House, um espetáculo do Centro Dramático Galego (Espanha) com encenação e dramaturgia de Fran Núñez. Nos dias 18 e 19, o TeCA acolhe Amédée ou Como Desembaraçar-se, de Eugène Ionesco, numa encenação de Ivo Alexandre. A 23 e 24 de maio, Nuno Cardoso volta a apresentar O Canto do Cisne, de Anton Tchékhov, no Teatro Carlos Alberto. A fechar o FITEI, a companhia brasileira de teatro traz ao São João, nos dias 24 e 25, Sem Palavras, um espetáculo concebido por Marcio Abreu.

No caderno da nova programação, o TNSJ adianta ainda que tanto o São João, o Mosteiro de São Bento da Vitória, e o Atelier de Guarda-Roupa e Adereços ser intervencionados no âmbito da eficiência energética, através do financiamento do Fundo Ambiental. “Estas iniciativas permitem criar condições para a produção energética e melhoria do conforto térmico destes espaços, tornando-os mais cómodos e sustentáveis a nível ambiental e económico. À operação de reabilitação do São João, realizada em 2021 no quadro das comemorações do centenário do Teatro projetado por Marques da Silva, segue-se agora um conjunto significativo de intervenções que visam tornar estes três edifícios mais eficientes”, explicam em comunicado.

Relativamente à presente temporada, Nuno Cardoso destaca a continuação daquilo que já tinha sido anunciado em setembro deste ano, nomeadamente a ligação à temática do “sonho” por via da peça Um Sonho, do sueco August Strindberg, com encenação de Bruno Bravo, que vai estar em cena de 6 a 14 de janeiro, sendo a primeira proposta em cena do novo ano. “A programação que arranca em janeiro descende da que já tínhamos de alguma forma preparada e está relacionada com casos práticos que podem contribuir para uma narrativa entre o São João e o seu público num viver que ser quer mais social”.

O repto lançado a vários criadores e coletivos da cidade do Porto, bem como a outros artistas nacionais, fazem parte de um diálogo que a instituição quer continuar a aprofundar. “Ao lançarmos algumas destas questões, pretende-se ter em conta o património da língua, que não se esgota em Portugal, fomentar a nova criação e criar um conjunto de narrativas que também nos lembra sobre a importância do teatro”, conclui.