Numa noite de junho de 1858, em Bolonha, então parte dos Estados Papais, as autoridades apresentaram-se à porta dos Mortara, uma família judia da cidade, para lhes retirarem um dos filhos, Edgardo, de seis anos. Motivo: a criança teria sido batizada secretamente quando era bebé e o direito canónico postulava que, num caso como este, ela tinha que ser educada na fé cristã para a salvação da sua alma. Edgardo Mortara foi levado para Roma e internado numa instituição religiosa onde estavam outras crianças como ele, e colocado sob a proteção pessoal do Papa Pio IX, enquanto os pais faziam tudo para que a criança lhes fosse devolvida. É esta a história contada por Marco Bellochio em O Rapto (durante alguns anos, Steven Spielberg acalentou a ideia de a filmar).
A Itália passava na altura por grandes convulsões políticas, estando à beira da unificação, e o Papa-Rei via-se ameaçado no seu poder temporal e contestado na sua autoridade espiritual. A opinião pública liberal italiana, as forças maçónicas e a comunidade judaica nacional e internacional iniciaram uma campanha contra o Vaticano e pelo regresso do menino ao seio da família, apoiada mesmo por alguns soberanos e políticos de outras nações. Pio IX tentou chegar a um compromisso com os pais de Edgardo (que entretanto haviam descoberto que fora uma antiga criada que tinha batizado a criança por ablução às escondidas quando era bebé, por a julgar muito doente e às portas da morte), mas estes recusaram.
[Veja o trailer de “O Rapto”:]
Com a unificação e o advento do Reino de Itália, e a perda de territórios, espoliação de bens e diminuição drástica do peso político e da autoridade da Igreja, o caso seguiu para os tribunais civis de Bolonha, onde o padre Pier Feletti, antigo Inquisidor-Mor da cidade e que havia desencadeado a ação de retirada da criança aos pais, foi julgado e absolvido. Quando adolescente, foi dada liberdade a Edgardo Mortara para voltar para junto da família, mas ele recusou. Ordenado padre, nunca abjurou nem atacou a Igreja Católica ou Pio IX (a cena do filme em que ele se revolta durante o funeral do Papa é pura invenção), passou a maior parte da vida fora de Itália e morreu na Bélgica, em 1940, aos 88 anos.
Tirar uma criança à sua família, a não ser por motivos de excepcional força maior, é um ato indefensável. Aos nossos olhos e às nossas mentalidades modernas, é muito difícil, senão mesmo impossível, compreender e aceitar a ação da Igreja, embora no contexto da época a criada dos Mortara tenha agido levada pela sua fé ingénua, e os responsáveis eclesiásticos escolhido seguir a lei e a doutrina, de forma inflexível, acreditando ser pelo bem supremo da criança — a salvação da alma —, ao invés de se terem condoído e fechado os olhos. É o firme e convicto “Non debemus, non volumus, non possumus” de Pio IX, naturalmente entendido como cruel e inadmissível pela família de Edgardo, e por muita gente em Itália e fora de portas.
[Veja uma entrevista com Marco Bellochio:]
Marco Bellochio faz de O Rapto uma obra de ressonâncias fortemente operáticas, envolvimento melodramático, arcaboiço clássico e fundo de denúncia, aproveitando a história de Edgardo Mortara para glosar um tema que surge várias vezes na sua filmografia. As instituições que constrangem, limitam ou mesmo sufocam o indivíduo com as suas regras, princípios, códigos ou dogmas, que tanto podem ser a família como uma corporação profissional, um partido político, a Máfia ou uma religião (aqui, é a Igreja Católica), e contra as quais ele acaba por se revoltar (o que, excecionalmente, não sucede com Edgardo Mortara).
O realizador é fiel a grande parte dos factos do caso, omitindo alguns e deturpando outros. A figura de Pio IX é caricaturada e diabolizada, sobretudo no que se refere ao tratamento dos judeus (foi ele que mandou derrubar o muro do gueto de Bolonha, e os judeus era os únicos, além dos católicos, a ter liberdade de culto nos Estados Papais) e, por exemplo, a penitência que, a certa altura ele impõe ao jovem padre Mortara é absurda. O Rapto precisava de um vilão poderoso, cruel e cínico, e Marco Bellochio escolheu, injustamente, Pio IX. Basta ver a muito primária cena da audiência em que ele recebe os representantes da comunidade judaica italiana.
[Veja uma sequência do filme:]
O contexto histórico-político em que decorre a história de EdgardoMortara é complexo, e o filme sofre por Marco Bellochio ter de destacar alguns acontecimentos e sintetizar ou mesmo ignorar outros. O realizador quer correr a vários carrinhos ao mesmo tempo e acaba por não desenvolver devidamente ou então omitir coisas como a instrumentalização política e religiosa do caso pelos liberais, pela Maçonaria e por países como a Inglaterra ou os EUA protestantes, que o usam para levar a cabo a unificação de Itália e derrubar o poder de Roma, enfraquecer a Igreja e a sua influência, ou comprometer o Papa e o Vaticano ante a Europa e os católicos moderados ou críticos.
A compressão factual, a condensação cronológica e a síntese extrema dos acontecimentos, aliadas à limitação de meios, levam a sequências tão básicas no seu simbolismo como o rebentamento a canhão de um muro do Vaticano por onde entram as tropas inimigas, para figurar a conquista de Roma e a derrota e humilhação do Papa-Rei, e O Rapto resvala a partir de certa altura para o didatismo ostensivo e o óbvio explicativo, e para facilidades formais e emocionais próprias da televisão. O que Marco Bellochio se abstém de explicar é a férrea fidelidade de Edgardo Mortara ao catolicismo, deixando apenas a pairar vagas sugestões de uma espécie de Síndrome de Estocolmo avant la lettre, ou de uma lavagem ao cérebro radical, porque feita na tenra idade.
[Veja uma sequência do filme:]
Marxista de formação, fervoroso seguidor do maoísmo até certa altura da vida, e com o qual depois se desiludiu, ateu assumido por rebeldia contra a severa educação católica que teve na juventude, no seio de uma típica família burguesa da classe média italiana, e hoje um radical-libertário de esquerda, Marco Bellochio assina, com O Rapto, um filme até certo ponto descritivo e objetivo. Mas o seu anticlericalismo e anticatolicismo não deixa de se manifestar, na forma como pretende denunciar a Igreja Católica tanto como máquina intolerante e insensível de perpetrar arbitrariedades e esmagar identidades, como pelo seu comportamento na época para com os judeus.
Em termos de representação e abordagem da religião, é legítimo preferirmos a Rapto um outro filme de Marco Bellochio, o excelente L’Ora di Religione (2002), em que um pintor de esquerda e ateu pertencente a uma rica e tradicional família de Roma é informado pelo Vaticano que a mãe, que foi assassinada por um dos filhos, um demente, poderá ser santificada por ter feito uma cura milagrosa. É uma fita mais subtil e intrigante, e muito menos ribombante e envolta em negrume mórbido que O Rapto. E que dispensa o tiro à Igreja com pontaria incerta.