Em 2018, o belga Olivier Masset-Depasse adaptou ao cinema, em Duelles, um livro da escritora Barbara Abel, transpondo-o da atualidade para a década de 60. A história passa-se nos arredores de Bruxelas, onde moram, em casas geminadas, Alice e Céline, duas melhores amigas, cujos filhos, também melhores amigos e da mesma idade, foram criados juntos e frequentam a mesma escola. As duas famílias dão-se lindamente e tudo corre bem, até ao dia em que o filho de Céline cai da janela do seu quarto e morre à vista de Alice, que não foi a tempo de impedir a tragédia. A partir daí, o comportamento de Céline torna-se cada vez mais estranho, começando a ficar obcecada pelo filho de Alice e a relação entre as duas azeda até se tornar sinistra.
Realizado em estreia pelo diretor de fotografia francês Benoît Delhomme, que substituiu à última da hora Olivier Masset-Deplace, Dupla Obsessão é o remake americano de Duelles, e um veículo para Jessica Chastain e Anne Hathaway (esta também com funções de produção), que assumem, respetivamente, os papéis de Alice e Céline. A ação passa do subúrbio de uma capital europeia para o subúrbio de uma grande cidade dos EUA que nunca é referida, mantendo-se nos anos 60, pouco antes da eleição presidencial que John F. Kennedy ganharia a Richard Nixon, e que é referida no início da fita, durante uma conversa entre os maridos das duas protagonistas.
[Veja o “trailer” de “Dupla Obsessão”:]
Dupla Obsessão pertence àquela categoria de filmes que postulam que os subúrbios da classe média, com as suas casas amplas e bem arranjadas, os seus jardins imaculados e as famílias aparentemente felizes e sem problemas que lá moram, são o cenário ideal para histórias funestas, dramas lancinantes, intrigas negras e horrores insuspeitos. Fazendo jus ao seu ofício de diretor de fotografia, Delhomme ambienta Dupla Obsessão no que aparenta ser um lugar idílico de perfeição, harmonia, prosperidade e luminosidade, onde é sempre Verão e as cores pastel dominam o guarda-roupa feminino, os interiores e a natureza. E quando o negrume se manifesta, vem de dentro das personagens, como manda a convenção.
[Veja uma entrevista com as duas atrizes:]
A fita belga original é um pastiche hitchcockiano muito aceitável, em que Olivier Masset-Depasse consegue, até bastante perto do fim, deixar-nos na dúvida sobre se Céline ficou mentalmente perturbada com a morte do filho, profundamente ressentida para com Alice e se transformou numa ameaça para esta e para a sua família, ou se Alice é que é a desequilibrada e imaginou tudo na sua cabeça. Apesar de seguir muito de perto a história de Duelles, e mau grado toda a aplicação de Chastain e Hathaway, Dupla Obsessão não consegue sequer invocar climas de suspense, crispação e pavor ao estilo de um Brian De Palma, quanto mais de Alfred Hitchcock. Não invoquemos o nome do mestre em vão.
[Veja uma sequência do filme:]
O filme lida com temas como a culpabilização exacerbada, o ressentimento que se transmuta em ódio de morte, ou o instinto maternal doentiamente deturpado pela dor. Benoît Delhomme maneja-os, narrativa e visualmente, com pouca subtileza, escassa capacidade para gerar tensão física e psicológica, criar mal-estar no espectador ou instalar uma atmosfera de ambiguidade e desconfiança. É tudo muito denunciado e evidente, e embora as duas atrizes se esforcem, Jessica Chastain numa Alice em crescendo de suspeita e aflição, Anne Hathaway numa Céline cuja compostura mascara a sua hostilidade, Dupla Obsessão não consegue ter nem as convulsões angustiantes do grande psicodrama, nem a pulsão mórbida do thriller bem trabalhado. São 94 minutos em lume brando.