Texto publicado originalmente a 10 de outubro de 2015, por altura da qualificação da Islândia para o Euro 2016.

Antes de compreender qual a explicação para esta inédita qualificação da Islândia para o Euro ’16, vamos recuar na máquina do tempo futebolística. E vamos recuar até 25 de setembro de 1991. Foi uma quarta-feira. Diz-se dessa noite no estádio Laugardalsvöllur, em Reiquiavique, pequeno mas lotado por 3.848 fervorosos islandeses nas bancadas, que corria um frio de enregelar o corpo e a alma. Disputava-se a qualificação para o Campeonato da Europa de 1992, na Suécia – um campeonato a norte do “velho continente”, que foi conquistado pela nórdica Dinamarca do gigante Peter Schmeichel e do talentoso Brian Laudrup.

A Islândia terminou o Grupo 1 de qualificação com 10 golos sofridos e só sete marcados. Pior, só a Albânia (21 golos sofridos e dois marcados), última do grupo atrás da Islândia, que perdeu, logo no primeiro jogo da qualificação em casa dos islandeses. A Islândia haveria de vencer mais um jogo, também por dois golos sem resposta, contra a Espanha. E fê-lo precisamente nessa noite gélida de setembro. A Espanha acabou por não se qualificar para o Euro ’92 (foi terceira do grupo, atrás da Checoslováquia e da França), mas tinha uma base de jogadores do Barça de Johan Cruyff, como Zubizarreta, Guardiola, Bakero, Eusebio Sacristán, Goikoetxea ou Txiki Begiristáin, mais uns quantos rivais do Real Madrid como Manolo Sanchís, Míchel e Emilio Butragueño. Uma Roja que impunha respeitinho, portanto.

A seleção de Islândia não tinha, em 1992, qualquer futebolista que hoje se traga na memória. Lembra-se do Guðmundur Steinsson, esse temível ponta-de-lança do Víkingur? Não? Nós também não. Mas Steinsson seria certamente funcionário público e futebolista nas horas vagas, como o eram quase todos os islandeses que defrontaram a Espanha nessa noite. Nunca antes a Islândia tinha vencido uma seleção de topo europeia. Nunca depois, e por muitos anos e qualificações que viessem, voltou a vencer uma seleção de topo. Aliás, a Islândia, como o Liechtenstein, as Ilhas Faroé, o Chipre e uma mão-cheia de países mais, eram sempre os “bobos da corte” da qualificação e não havia jogo em que não regressavam para casa com uma sacada de golos sofridos às costas.

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Com a crise económica veio também a mudança no futebol. E a mudança começou na base

Estávamos em 2008. A crise económica abateu-se sobre a Europa e sobre o mundo financeiro. Paul Krugman, prémio Nobel da economia nesse ano, considerou a Islândia (e a banca islandesa) como a “zona zero” do crash bancário que se alastrou por toda a parte. Krugman, na sua coluna de opinião no New York Times, escreveu recentemente que “a história da Islândia é uma história com final feliz”, pois conseguiu “ultrapassar a crise devido às suas políticas heterodoxas: a rejeição da dívida, o controlo de capitais e a desvalorização maciça”. A verdade é que a Islândia, que chegou a perder quase oito por cento da sua riqueza só naquele annus horribilis de 2008, deixou cair, no epicentro da crise, e ao contrário das restantes economias europeias, os seus três maiores bancos: o Kaupthing, o Glitnir e o Landsbanki. Essa é uma medida, das tais medidas “heterodoxas”, que Krugman elogia.

O desemprego andou pelos 11,9 por cento. Isto num país com somente 320 mil habitantes (Lisboa tem 547 mil, por exemplo). Hoje, mesmo que ausente da União Europeia (UE) e dos seus estímulos económicos (a Islândia recusou recentemente aderir à UE), o país está a recuperar, como nenhum outro, o tempo perdido. É pelo menos essa a conclusão do último relatório da missão do FMI no país, que prevê uma descida da taxa de desemprego para os 4,1 por cento e um crescimento dos salários em 5,8 por cento – salários esses que já haviam crescido 3,5 por cento em 2014.

O Produto Interno Bruto, e de acordo com as mais recentes declarações do secretário-geral da OCDE, Ángel Gurria, deverá crescer 3,5 por cento em 2015 e 3,2 em 2016. Um crescimento que, prevê a OCDE, se manterá constante até ao final desta década. “A recuperação económica da Islândia foi impressionante. Foi o país que melhor, mais rápido e mais solidamente recuperou da crise”, afirmou Gurría.

Ísland é um vocábulo da língua nórdica antiga que significa “terra do gelo”. Mas apesar de viveram numa terra vulcânica (a erupção do Eyjafjallajökull em 2010 obrigou ao cancelamento de voos nos aeroportos de toda a Europa), gélida, lá está, os islandeses são tudo menos um povo infeliz. Aliás, o índice de felicidade do país é um dos mais elevados da Europa e a taxa de suicídios regista um só caso por ano. Os dias da crise já lá vão, a economia pulula, viçosa, o sistema nacional de saúde, nem de propósito, respira saúde e é igualitário para ricos e pobres — tal como a educação o é. Porquê falar da economia e não só de futebol? É que na Islândia, um e outro são indissociáveis. Quando a economia islandesa tombou, o país reergueu-se desde a base. E foi na base (ou melhor, no futebol de base) que apostou para erguer o desporto no país. Mas já lá vamos.

Euro 2016, aí vamos nós

Primeiro, a caminhada triunfante da Islândia até ao Euro ’16. Tudo começou a 9 de setembro de 2014, com uma vitória (3-0) sobre a Turquia, em Reiquiavique. Ao terceiro jogo, e só com vitórias (também derrotaram por 3-0 a Letónia, em Riga), a Islândia venceu em casa a Holanda, em outubro desse ano, por 2-0. Surpresa? Sim. Sorte? Não. A Islândia venceu e continuaria a vencer dali em diante. A única derrota que teve foi com a República Checa, em Praga, por 2-1. O jogo de 3 de setembro de 2015 provaria que não foi sorte coisa nenhuma a vitória de há um ano. Os islandeses foram defrontar os holandeses a casa deles, a Amesterdão, e venceram por 1-0. Sem espinhas. Só lhes faltava um ponto. Um pontinho só para se apurarem para o França ’16 — curiosamente, os vikings invadiram os franceses há muitos, muitos séculos. A ida ao Cazaquistão, a 6 de setembro, não seria fácil. Mas o pontinho veio mesmo e o empate a zero com os cazaques garantiu-lhes um apuramento inédito.

O segredo do sucesso, qual foi? Investir na formação. Os islandeses, como bom povo nórdico que são, sempre foram mais adeptos (e praticantes) do andebol que do futebol. A base de recrutamento era curta, de apenas 20 mil futebolistas federados, e era preciso mudar esse paradigma se pretendiam ter sucesso. A Federação Islandesa de Futebol investiu no treinamento, construindo uma série de relvados artificiais e cobertos (para resistirem às intempéries do inverno), mas também nos treinadores, que foram estagiar por semanas a fio em alguns dos melhores clubes do mundo, a aprender o que é, hoje, o treino e a preparação de um jogo. A chegada de Lars Lagerbäck, de 67 anos, ao cargo de selecionador em meados de 2012 — ele que já tinha participado nos europeus de 2000, 2004 e 2008 pela Suécia, e nos mundiais de 2002 (também com os suecos) e de 2010 (com a Nigéria) –, foi o acréscimo de traquejo que lhes faltava.

Com a criação de dezenas de novas academias de futebol, os talentos islandeses começaram a despontar e a chegar rapidamente aos campeonatos mais competitivos (nem sempre para jogar em equipas de topo) como o holandês e o francês, mas também às ligas de Inglaterra, Espanha, Itália ou Alemanha. Depois, foi esperar que vingassem. E vingaram. Vingaram Gylfi Sigurdsson, que não se afirmou no Tottenham de André Villas-Boas, mas, regressado ao País de Gales e ao Swansea, é hoje o maior desequilibrador do clube na Premier League. Também vingou o incansável médio todo-o-terreno Aron Gunnarsson, igualmente no País de Galês, no Cardiff, ou os goleadores Kolbeinn Sigþórsson (no Nantes, de França) e Alfred Finnbogason (o melhor marcador da Eredivisie holandesa em 2013/2014, hoje no Olympiakos de Marco Silva). E há, também, o “velhinho” Gudjohnsen, que foi o pioneiro entre os islandeses, útil ao Chelsea de Mourinho e ao Barcelona de Guardiola, e que hoje, com 37 anos, ainda é útil a Lars Lagerbäck — ainda que longe da área e mais recuado no relvado do que no passado.

A festa foi “viking” em Reiquiavique. E direito a um lugar na Playstation, há?

Em 2008, a UEFA decidiu que o Euro ’16 na terra de Michel Platini, o seu presidente, seria alargado. São mais oito as seleções que se vão qualificar em relação às que se qualificaram para o Euro ’12, na Ucrânia e na Polónia. Mas nem desse alargamento a Islândia precisou para se qualificar. É hoje primeira classificada do Grupo A, com os mesmos 19 pontos da República Checa (a Turquia tem 12 e a Holanda 10 pontos), e, se vencer o próximo jogo, em Reiquiavique, contra a Letónia, e os checos perderem pontos na recepção à Turquia, o primeiro lugar está consumado. Se não, ainda há uma visita a Istambul, na derradeira ronda, para, pelo menos, empatar com os turcos e ficar no topo.

Os habitantes de Reiquiavique saíram à rua, em festa, naquele domingo, 6 de setembro. E celebraram como vikings que orgulhosamente são, menos rudes nos modos que os seus antepassados. A única “pilhagem” que se lhes viu foi a da cerveja. Lagerbäck era o herói dos islandeses nessa noite. “Não sou um herói. Heróis de verdade são pessoas como Luther King, Mandela… Dizem-me que isto é um conto de fadas. Não. Isto é resultado do trabalho duro de muitas pessoas. Falam do meu papel — e que me vou candidatar a presidente da Islândia [risos] –, mas isto só foi possível por causa de um grupo de pessoas que trabalhou arduamente, num ótimo ambiente. Temos grandes jogadores e um apoio fantástico, quer seja em casa ou fora”, disse o técnico sueco de 67 anos.

A Federação Islandesa de Futebol, no Twitter, e logo após o empate no Cazaquistão que garantiu o apuramento para o Euro ’16, publicou na rede social a seguinte mensagem: “Não é hora da Islândia finalmente ser uma equipa no FIFA? Se não agora, quando?” Não sabemos se a seleção da Islândia vai ou não ter um lugar (que fez por merecer, é verdade) nos simuladores de futebol da Playstation, algo que seria totalmente inédito, mas uma coisa é certa: 24 anos depois da vitória sobre a toda-poderosa Espanha de Txiki Begiristáin ou Emilio Butragueño, daquela noite fria mas gloriosa, a Islândia voltou a “quebrar o gelo” e a fazer história.