Há uma música da Ala dos Namorados, chamada “A história de Zé Passarinho”, que resume quase na perfeição aquilo que se passou na terça-feira à noite no auditório da Escola Secundária Filipa de Lencastre, em Lisboa. A dada altura, reza a letra:
Numa triste noite ao frio
Cantava-se ao desafio para aquecer as paixões
Quando um estranho se levanta
P’ra mostrar como se canta, faz-se à “Rosa dos limões”
Ai o povo ficou sentido
Com aquele destemido
“Hás de morrer engasgado”
Palavra puxa palavra
Desata tudo à estalada
Com o posto ali ao lado
Bom, não vamos tão longe, porque ninguém desatou à estalada. Mas a tensão foi permanente nas três horas e um quarto que durou a reunião plenária das Associações de Moradores das Avenidas Novas e de Entrecampos, na qual se discutiu o fado das avenidas Fontes Pereira de Melo e da República, bem como das praças de Picoas e Saldanha. Para aquela zona, apelidada de “eixo central da cidade”, a Câmara Municipal de Lisboa tem um ambicioso projeto de requalificação, mas os moradores temem que isso se venha a traduzir num triste fado para a capital.
Já a reunião ia a mais de meio e já muita calorosa discussão tinha havido quando um “estranho” se levantou e fez-se, não à “Rosa dos Limões”, mas antes à defesa do projeto da câmara. Ricardo Ferreira, dirigente da MUBI – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta, disse aos presentes que “a cidade se vive melhor se for feita para as pessoas” e que “não se pode continuar a subsidiar o automóvel”. Foi a primeira voz dissonante num plenário que, até então, só tinha tido moradores e comerciantes das Avenidas Novas preocupados com a significativa redução de lugares de estacionamento prevista nos planos da câmara. Ao comentário de Ricardo, um homem gritou: “Isto é serviço encomendado!”
Com o grito, pretendia ele dar a entender que os elogios à proposta camarária só podiam ter sido comprados. Foi apenas uma das várias coisas que Manuel Salgado teve de ouvir durante a noite. O vereador do Urbanismo esteve na reunião a apresentar as linhas principais do projeto a uma agitada plateia de cerca de 130 pessoas. Logo a abrir a intervenção, anunciou que a Assembleia Municipal de Lisboa, a pedido da câmara, vai promover “um grande debate público” sobre o assunto a 26 de outubro, com vista a “um largo e amplo consenso”.
Segundo Manuel Salgado, as intervenções que a câmara pretende realizar entre o Marquês de Pombal e Entrecampos têm como objetivo dotar a zona de “passeios confortáveis e seguros”, tornar as avenidas “um espaço de estar” e “melhorar o ambiente urbano”. Sabendo de antemão que a questão da perda de lugares de estacionamento seria abordada, assegurou: “Estamos empenhados em encontrar as soluções necessárias para compensar o estacionamento que se perde”.
Dupla ciclovia ou não? Eis a questão
Ainda o vereador não se tinha calado e já o burburinho e os comentários paralelos tinham tomado conta da audiência. Quando, mais de uma hora depois do início da reunião, os moradores puderam falar, o ataque não teve contemplações. “As pessoas são crucificadas por ter carro”; disparou Francisco Teixeira, morador do Arco do Cego prontamente ovacionado, que de seguida acusou a câmara de cometer “erros grosseiros” nesta proposta, ao querer fazer algo que vai “inevitavelmente carregar as vias laterais”. A intervenção nas avenidas da República e Fontes Pereira de Melo vai fazer desaparecer 300 lugares de estacionamento, embora Salgado garanta que há 3.091 espaços para automóveis em parques públicos.
Os números são desmentidos por João Gonçalves Pereira, vereador do CDS, que foi o único eleito da oposição que esteve na Filipa de Lencastre. O centrista disse, como já o fizera há dias, que, pelas contas que fez, em toda a zona se perderão 604 lugares de estacionamento, o que mereceu duas respostas de Salgado. “Desminto completamente”, disse primeiro, para mais tarde repetir: “É falso!”
As interrupções a quem falava foram constantes. Entre outras coisas, o executivo camarário foi acusado de “falta de sensibilidade pelas pessoas reais” e Manuel Salgado chegou mesmo a exaltar-se quando alguém pôs em causa a sua honestidade. “Eu também não digo que o senhor é gatuno!”, irritou-se. Apesar de ter tentado manter os ânimos calmos e de apelar constantemente ao “consenso e equilíbrio”, também o presidente da Associação de Moradores das Avenidas Novas acabou por levantar a voz. “Esta associação não é contra as ciclovias, não é contra os ciclistas, não é contra as bicicletas. Parece que somos o Diabo. Não somos”, afirmou.
O projeto da câmara prevê o alargamento de passeios, a criação de duas ciclovias (uma para cada sentido) e um reordenamento do trânsito. Para compensar a perda de estacionamento na zona, Salgado chegou a sugerir que se abdicasse de ter ciclovia dos dois lados das avenidas, dedicando um ao parqueamento de automóveis. Isto motivou a indignação de alguns dos circunstantes. Luís de Carvalho, diretor-executivo da Universidade de Lisboa, foi um deles. “Vejo com muita preocupação” que se pense em “haver algum sacrifício” das ciclovias, disse, lembrando que a há um projeto de Orçamento Participativo aprovado para a criação de uma rede ciclável entre todas as escolas da universidade.
Há esperança em alterações ao projeto
O pequeno discurso de Luís de Carvalho foi recebido com um coro de apupos e gritos. “Está a insultar os moradores!”, ouviu-se mais do que uma vez, não só em resposta ao professor universitário mas a todos os que procuraram defender a proposta da câmara. Salvo algumas exceções, essas pessoas raramente conseguiram concluir as intervenções sem que um coro de protestos se levantasse.
Eu acho isto fantástico. As pessoas que defendem o uso da bicicleta já conheciam o projeto e nós não”, queixou-se o presidente da Associação de Moradores das Avenidas Novas, José Soares.
À preocupação de falta de estacionamento apresentada pelos moradores, Manuel Salgado respondeu com a garantia de estar “a tentar encontrar soluções” junto dos parques da zona (pertencentes a privados) no sentido de se implementarem “avenças que sejam compatíveis” com o bolso dos residentes. Os participantes no debate, porém, mostraram-se receosos relativamente ao real impacto das obras na zona e queixaram-se de ter havido pouca discussão pública. “Eu não sabia nada disto. Isto é uma vergonha. Não estamos aqui a fazer nada”, afirmou Maria do Carmo, que se apresentou como moradora e comerciante da avenida João Crisóstomo e que acha que agora já não é altura de se discutir nada. Também João Gonçalves Pereira insistiu nesse ponto: “Primeiro lança-se a empreitada, passadas três semanas envia-se o estudo de tráfego, só depois se faz a consulta pública. Isto está tudo ao contrário.” Manuel Salgado não gostou e retorquiu:
“O senhor conhece-me muito mal. Quando eu digo que o projeto ainda é suscetível de sofrer alterações, digo-o convicto.”
No fim da reunião, por volta das 22h30, José Soares disse aos jornalistas que vê na postura de Salgado uma margem para negociar alterações e está convencido de que “será fácil mitigar os efeitos para os moradores”. Nas próximas semanas, mais reuniões entre as associações de moradores e a câmara estão previstas. O tempo dirá se a indignação se vai manter como está. Ou se ainda “desata tudo à estalada”.