Lisboa somava pouco mais de 130 mil habitantes e as suas ruas estreitas e sinuosas eram iluminadas pelos “modernos” candeeiros de azeite à moda de Paris, instalados há pouco mais de uma década. Quase não se viam as pedras de granito vindas do Porto para calçar as vias incipientes da capital e o primeiro transporte público (o omnibus, carruagem puxada por cavalos capaz de transportar até 15 passageiros) ainda demoraria quase quatro décadas até dar o ar de sua graça.

A estrear um novo palco estrategicamente posicionado numa das colinas da cidade, o castrato italiano Domenico Caporalini estrelava a ópera La Ballerina Amante, de Domenico Cimarosa, numa noite partilhada com o corpo de baile que dançava ao som dos acordes de António Leal Moreira uma coreografia criada pelo também italiano Gaetano Gioja. Era 30 de junho de 1793 e o Real Teatro de São Carlos abria as suas portas pela primeira vez, inaugurado com todas as honras pelo Príncipe Regente D. João.

Projetado pelo arquiteto José da Costa e Silva para substituir o Teatro Ópera do Tejo, destruído no terramoto de 1755, o novo palacete de linhas neoclássicas e inspiração setecentista e italiana chegou com a missão de trazer ao país os maiores astros líricos do mundo e colocar Lisboa no mapa erudito europeu. A profecia fez-se realidade.

Ao completar 230 anos neste 30 de junho de 2023, o Teatro Nacional de São Carlos coleciona feitos memoráveis num passado que se confunde com a própria história de Portugal. Viu a iluminação a gás substituir as velas de sebo e o azeite em 1850, para então dar as boas-vindas à eletricidade em 1887. Foi palco de grandes modernizações arquitetónicas e acontecimentos políticos. E protagonizou momentos únicos da realeza portuguesa, frequentadora assídua dos espetáculos da casa.

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Não poderia haver outro cenário para a noite de gala das núpcias da rainha D. Maria II com Fernando de Saxe-Coburgo, em 1836. Em 1852, incomodada com o sucesso da cantora Anaide Castellan, a primeira intérprete da Leonora na ópera II Trovatore em São Carlos, a mesma rainha escreveu uma carta à sua prima Vitória, rainha de Inglaterra, a queixar-se de suas “roulades” intermináveis, e a ressaltar: “Deus me livre de dizer alguma coisa, porque por aqui todos nutrem um entusiasmo delirante por ela”.

Décadas mais tarde, precisamente no dia 1 de março de 1894, D. Luís I estabeleceu outro recorde ao São Carlos: a primeira transmissão em direto para fora do teatro. Impossibilitado de comparecer por motivos de luto à tão aguardada primeira execução da ópera Lauriane, de Augusto Machado, em São Carlos, o rei contou com as modernidades da Anglo-Portuguese Telephone & Company para não perder o aclamado evento . Foi feito uso de uma novíssima tecnologia – o telefone! – para que o monarca pudesse seguir a apresentação na íntegra.

Mas era mesmo no palco que eram escritos os melhores capítulos da história da música erudita em Portugal, por onde passaram verdadeiras lendas italianas, francesas, húngaras e alemãs, entre tantas outras. De Saverio Mercadante, Pietro Antonio Coppolla e Édouard Colonne, no século XIX, a Tullio Serafin, Jordi Savall, Ernest Ansermet, Pierre Monteux e John Eliot Gardiner, no século XX, sem esquecer os génios da Orquestra Filarmónica de Berlim (Arthur Nikisch, Hans Knappertsbusch, Karl Böhm e Clemens Kraus), muitos foram os maestros que deixaram a sua marca no São Carlos.

Grandes compositores também dirigiram as suas próprias peças neste que continua a ser o único teatro do país dedicado à apresentação de ópera e música coral e sinfónica: os italianos Umberto Giordano e Ruggero Leoncavallo, o suíço Arthur Honegger e o alemão Paul Hindemith, para citar apenas alguns. No campo do bailado, a lista de estrelas que fizeram poesia no tablado do São Carlos forma uma constelação da qual fazem parte a russa Anna Pavlova e a norte-americana Martha Graham. Companhias como New York City Ballet, Teatro Bolshoi, Ballet Nacional de Cuba, Ballets Russes e Ballets des Champs-Elysées… todos já pisaram os palcos do Chiado.

Mas quem poderá esquecer aquele 27 de março de 1958, quando uma das maiores sopranos de todos os tempos emprestou a sua voz a Violetta Valéry no São Carlos? A greco-americana Maria Callas passou como um furacão por Lisboa para protagonizar a ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi, assinalando um divisor de águas nos concertos líricos do país – antes dela, a soprano italiana Angelica Catalani, a contralto italiana Marietta Alboni e a soprano espanhola Adelina Patti já haviam feito história; depois, quem a fez foi o tenor espanhol Plácido Domingo.

Este ano, para além das suas 23 décadas de vida, o Teatro Nacional de São Carlos celebra outras duas datas fundamentais da sua história: os 80 anos do Coro, cuja origem remonta a 1943, e os 30 anos da Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), criada em 1993. “É uma grande responsabilidade tocar neste palco”, diz Luís Santos, violino tutti da OSP desde a sua fundação, quando recorda ter havido 17 nacionalidades diferentes entre os músicos. “Há um respeito muito grande por estas tábuas que vemos aqui.”