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Estreado no dia de Natal de 1987, “Império do Sol” foi o primeiro grande fracasso de bilheteira de Steven Spielberg enquanto realizador. Trinta anos depois, continua a ser o filme de Spielberg que menos dinheiro fez nas bilheteiras norte-americanas, à excepção do seu filme de estreia, “Sugarland Express”. Nomeado para seis Óscares da Academia, perdeu-os todos para “O Último Imperador”, de Bernardo Bertolucci. Se o desprezo da Academia já era mais ou menos esperado por Spielberg (dois anos antes, “A Cor Púrpura” – o seu primeiro filme “sério” – tinha tido onze nomeações, incluindo a de Melhor Filme, mas ele não foi nomeado para Melhor Realizador), a indiferença do público surpreendeu-o.
“A Cor Púrpura”, um filme “difícil” por ser a sua primeira incursão em territórios por onde nunca se tinha aventurado, longe de tudo aquilo que fizera dele o realizador mais popular do mundo, arrecadou praticamente 100 milhões de dólares na bilheteira, uma quantia assinalável para a época e para o tipo de filme. Por seu lado, “Império do Sol”, realizado imediatamente após o filme baseado no romance da escritora afro-americana Alice Walker, ficou-se pelos 22 milhões de dólares.
[o trailer de “Império do Sol”:]
Era mais um filme “sério”, mas o cenário (o da II Guerra Mundial) e o ponto de vista (o de uma criança que, na prática, vive “afastada” dos pais) não eram novidade para Spielberg. Além disso, esta era também a história de uma família desfeita, aqui no sentido de uma separação física forçada e não no sentido metafórico do divórcio. Era mais um dos “pequenos grandes filmes” que o realizador queria fazer, filmes cheios dos efeitos especiais e da exuberância visual que eram sua a imagem de marca, mas com uma “pequena história” pessoal no centro da narrativa. Foi o próprio Spielberg que começou a dividir a sua obra entre “filmes grandes” (os filmes de aventuras, “Indiana Jones”, “Tubarão”) e os “filmes pequenos” (“ou tão pequenos quanto consigo fazer”, como o próprio reconheceu).
Vamos precisar de um filme maior
Quando estava a filmar “E.T.”, disse que o filme era “sobre o mundo das crianças visto através dos olhar delas e sobre o que lhes acontece numa vida suburbana actual”, ou seja, acontecimentos extraordinários ancorados em cenários banais e vidas nas quais o espectador facilmente se reconhecia. “Império do Sol” partilhava algumas características importantes com “E.T.”, mas as diferenças eram também significativas. Não só Spielberg estava a trabalhar com matéria-prima que não era particularmente adequada à sua sensibilidade (o romance autobiográfico de J.G. Ballard em que o filme se baseava era demasiado negro para as possibilidades do realizador naquela época) como, longe dos cenários suburbanos que lhe eram mais familiares, não conseguiu captar o espírito do lugar onde a acção maioritariamente decorria, um campo de concentração para os prisioneiros de guerra dos japoneses.
“Império do Sol” conta a história de uma criança inglesa, Jim (na estreia em cinema de Christian Bale, então com doze anos), que vive com a família uma vida de privilégio em Xangai no início dos anos 40. Com a ocupação japonesa da China, Jim é separado da família e enviado para um campo de prisioneiros. O filme acompanha-o durante esse período em que, para sobreviver, se junta a personagens de moralidade duvidosa. Spielberg sempre disse que “Império do Sol” era um filme sobre a “perda da inocência”, mas, ao contrário do que o realizador pensava, isso não significava que o filme fosse denso porque a “perda da inocência” pode ser filmada com candura e espectacularidade. Resumindo: era um filme cinematograficamente inocente sobre a “perda da inocência”. O projecto, por ser projecto, não era inocente e foi descrito assim por John Milius:
“O que a minha geração fez foi trazer de volta uma certa inocência. Ser cínico é fácil. Ser lamechas é que é difícil.”
O realizador considerava que o público não tinha aderido a “Império do Sol” porque, a exemplo dos críticos, já lhe tinha posto um rótulo e não admitia desvios ao que esperava dos seus filmes. Porém, essa ideia era não só desmentida pelo sucesso de “A Cor Púrpura”, como também pela reacções de vários críticos para quem o problema do filme não era ter Spielberg a menos, mas ter Spielberg a mais: “’Império do Sol’ é claramente um filme de Spielberg, repleto de imagens hiperbólicas e do entusiamo juvenil que caracterizam os seus filmes mais populares”, escreveu o crítico do Christian Science Monitor.
Aquando da escolha do elenco de “A Cor Púrpura”, o realizador optou por actores pouco conhecidos porque não queria que os espectadores se distraíssem com a bagagem que todos os actores famosos carregam, um argumento que tinha usado para justificar a escolha de Roy Scheider em detrimento de Charlton Heston em “Tubarão”, o que lhe valeu a crítica de que não queria trabalhar com vedetas para que a única vedeta fosse ele. Só que a sua própria bagagem também já era pesada (se não mais pesada ainda) e ele próprio fazia questão de a levar para os chamados “filmes pequenos”. A história de “Império do Sol” pedia um filme mais pequeno e Spielberg não resistiu a fazer um filme maior. Era preciso um filme maior não para acomodar a pequena história, mas a bagagem do realizador – a sua grandiloquência visual, o excesso de sentimentalismo e a tendência para o melodrama – que tinha resultado anteriormente, ali parecia deslocada.
Por um lado, as personagens não eram muito simpáticas. Jim não era Elliott, e o cenário também não era o dos cómodos, embora ligeiramente opressivos, subúrbios americanos. É natural que Spielberg tenha tentado compensar essa falta de ligação emocional com as personagens através dos seus truques visuais, da banda sonora de John Williams, da pompa emocional de algumas cenas (como a célebre cena da canção de embalar galesa) e do lado aventureiro, mas isso só expõe a artificialidade desses recursos. Se essa dimensão não existe nas relações humanas, a compensação denuncia-se a si mesma. É um filme com demasiado sentimentalismo para tão pouco sentimento: daí que alguns o tenham acusado de ser um filme com o pior do sentimentalismo spielberguiano e outros o tenham acusado de falta de emoção.
Por outro, a prova de que a bagagem de Spielberg não se ajustava à matéria-prima estava na transformação da experiência num campo de concentração numa experiência emocionante (a tal perda da inocência vivida como uma aventura). Algum tempo depois de o filme estrear, Spielberg, ainda magoado com a indiferença do público, disse que não queria fazer filmes sombrios, quando o problema tinha sido identificado de forma precisa pelo crítico da revista People: “Por muito que tente, Spielberg não consegue fazer filmes sombrios.” Não era tanto uma questão de vontade, mas de incapacidade.
Dois em Um
O mundo de Jim, na visão do realizador, é confuso, caótico, frenético, exactamente o oposto da sua vida privilegiada antes da guerra, mas nunca horrível e sombrio. E se é perigoso é quase num sentido lúdico, como na frase “uma aventura cheia de perigos”. Não é perigoso num sentido moral profundo, de ameaça à personalidade em formação de Jim, de confronto com verdades terríveis sobre a natureza humana, de uma real “perda da inocência”. É perigoso como as aventuras são perigosas. Se conseguirmos sair delas ilesos, a vida continua como sempre.
“Império do Sol” foi a última tentativa de Spielberg querer ser levado a sério com filmes sobre temas importantes sem hostilizar o público, massacrando o tema até este trautear a melodia agradável do realizador. Com o fracasso do filme, aprendeu que, de um ponto de vista moral, a força da luz depende do negrume. Se não somos capazes de mostrar o horror, a esperança perde todo o sentido religioso, metafísico, e torna-se apenas uma variante pomposa de um certo optimismo juvenil. O resultado dessa aprendizagem manifestou-se de forma poderosa no preto e branco de “A Lista de Schindler” e no uso pontual, para grande efeito dramático, da cor.
Mais do que a divisão conveniente entre filmes grandes e filmes pequenos, a partir daquele momento, Spielberg percebeu que certos temas pesados não resistem a abordagens leves, visto que a outra lição, a de que um filme de mero entretenimento ganha espessura quando se introduz um tema sério (estamos a pensar na história do USS Indianapolis, contada por Quint, em “Tubarão”, uma sugestão de John Milius; a propósito, a ideia de Spielberg era fazer um Moby Dick sem Melville, um puro série B), já ele a conhecia há muito. Nesse sentido, é curioso constatar como “Parque Jurássico”, um filme de aventuras num parque de diversões, é um filme mais negro, na sua desconfiança em relação à humanidade e aos limites da ciência, do que um filme que se passa durante a guerra num campo de concentração, que, como escreveu um crítico, mais do que um campo de concentração parece uma colónia de férias mal gerida.
“Império do Sol” no universo Spielberguiano
Apesar de ter demonstrado os limites da sintonia aparentemente infalível entre Steven Spielberg e os desejos do público, “Império do Sol” é, não apenas no embrulho, mas também na substância, um filme de Spielberg, em linha com o que ele já tinha feito e abordando os temas que atravessam praticamente toda a sua obra, e que se podem resumir numa ideia que surge num dos ensaios do livro Steven Spielberg and Philosophy: pais ausentes e crianças solitárias (terá sido isto, mais do que qualquer outra coisa, que o atraiu para Império do Sol, que esteve para ser realizado pelo veterano David Lean).
Quando analisada de perto, esta premissa tem outras ramificações: a ausência do pai (ou dos pais) não é apenas fonte de trauma e de conflito, mas também de autonomia e de responsabilidade, o que faz com que, nos seus filmes, muitas vezes as crianças se comportem como adultos e os adultos como crianças; o exercício dos deveres parentais não se cinge à figura do pai; a ideia de masculinidade está quase sempre ligada à ideia de paternidade; a infância é um território complexo e, ao contrário da ideia comum, Spielberg não a simplifica; a infância confunde-se com a ideia de cinema; o tema do crescimento, tão presente nos seus filmes, acompanha o crescimento artístico do próprio criador.
Comecemos por aqui. Em Citizen Spielberg, Lester D. Friedman escreve que os protagonistas dos filmes de Spielberg começam como crianças e passam por experiências de onde devem sair adultos ou, pelo menos, mais maduros (embora em relação a “Império do Sol” alguns críticos tenham dito que Jim cresce, mas não amadurece). Ora, o facto de ter conhecido o sucesso muito cedo na carreira e de ter sido celebrado como o menino-prodígio de Hollywood, impediu um mais rápido amadurecimento de Spielberg. Foi como se tivesse ficado preso na infância, a uma ideia infantilizada das relações humanas (sobretudo amorosas) entre adultos e a uma ideia de cinema enquanto mero entretenimento e espectáculo visual.
Ele demonstrava ter consciência dessas limitações, por exemplo, ao reconhecer que nunca conseguiria fazer um filme tão pessoal e intenso como “Touro Enraivecido”. (Para se ver como a maturidade criativa é muito mais do que uma questão de idade ou domínio do meio em que se trabalha, veja-se como Martin Scorsese, apenas quatro anos mais velho que Spielberg, antes de completar 40 anos tinha realizado “Cavaleiros do Asfalto”, “Taxi Driver, “Alice Já Não Mora Aqui” e “Touro Enraivecido”. Mesmo assim, Scorsese também teve de aprender a lidar com frustração de não alcançar o mesmo sucesso de público de outros companheiros de geração.) O tema da infância transformou-se num dilema estético e filosófico para Spielberg: para atacar o realizador, criou-se uma amálgama entre as suas representações da infância, a infantilização dos espectadores e a presumida menoridade intelectual de Spielberg, como se este fosse pouco mais que um idiot savant, um predestinado a viver exclusivamente da sua intuição e da exploração sentimental mais básica e infantil.
O fracasso de “Império do Sol” obrigou-o a enfrentar esse dilema e Spielberg serviu-se do cinema para o abordar directamente, num filme que é uma reflexão sobre o sonho de uma infância eterna e as responsabilidades da idade adulta, sobre a necessidade de se estabelecer um compromisso entre o divertimento e a seriedade. “Hook” abriu as portas ao desenvolvimento pessoal e artístico de Spielberg enquanto cinéfilo (ou ciné-fils, o verdadeiro filho do cinema), enquanto filho, enquanto pai, enquanto filho que entretanto já era pai, enquanto criador. Mesmo quando assumidamente pouco sabia da vida, Spielberg já sabia muito sobre cinema (“quando chegou a altura de baixar as calças e falar de sexo, éramos novamente uns rapazinhos à procura da mãe para nos proteger. A época dos hippies tinha-me passado ao lado sem que eu desse conta. Estava demasiado ocupado a fazer filmes”, contou Spielberg a Peter Biskind, em Easy Riders, Raging Bulls.)
Daí que as suas reflexões sobre a vida sejam também, ou acima de tudo, reflexões sobre o cinema. De forma semelhante ao trajecto das suas personagens, era chegada a hora de Spielberg fazer uma escolha: o cinema deve ser um prolongamento da infância, mero entretenimento, ou deve servir para abordar assuntos mais sérios? A resposta foi dada dois anos depois de “Hook”, com o lançamento quase simultâneo de “Parque Jurássico” e “A Lista de Schindler”: ambos.
Pais e filhos
As relações problemáticas entre pais e filhos são o tema mais constante na obra de Spielberg. A complexidade das relações entre pais e filhos, seja pela ausência (“E.T”., “Império do Sol”, “Inteligência Artificial”), seja pelas falhas dos progenitores (“A Cor Púrpura”, “Apanha-me se Puderes”, “Relatório Minoritário”, “Indiana Jones e a Grande Cruzada”, “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal”, “Guerra dos Mundos”), permite que se estabeleçam relações alternativas de ligação filial que nos conduzem ao conceito de masculinidade segundo Spielberg.
Já muito se falou sobre a ausência quase total de protagonistas femininas nos filmes do realizador e a abordagem bastante deficitária às relações amorosas entre homens e mulheres. Em parte isto explica-se porque, nos seus filmes, paternidade e masculinidade são quase indissociáveis e ambas estão ligadas à noção de dever e responsabilidade. O verdadeiro pai (mesmo que não seja pai) é aquele que cumpre o dever de protecção da criança e o verdadeiro homem é aquele que se comporta como um verdadeiro pai (mesmo que nem sequer seja um homem, como Jude Law em “Inteligência Artificial”). Aqui, paternidade deve ser entendida como relação em que alguém assume a responsabilidade de proteger o outro. Por isso, Elliott é pai de ET, ET é pai de Elliott (como referem Michel le Gall e Charles Taliaferro no ensaio “The Recovery of Childhood and the Search for the Absent Father”), o Gigolo Joe é pai de David em “Inteligência Artificial”, o capitão Miller é pai do soldado Ryan, Grant é pai das crianças em “Parque Jurássico” e o Dr. Rawlins e Basie, com todas as suas falhas, são pais de Jim, em “Império do Sol”).
A masculinidade destes homens não é definida pelas suas qualidades enquanto amantes, nem pelas suas qualidades profissionais, mas pelo que conseguem ou não ser enquanto pais, enquanto protectores. Para Spielberg, os homens são quase sempre vistos da perspectiva dos filhos, daí que o amor romântico seja tão raro nos seus filmes e o sexo seja ainda mais raro (e se alguém está a pensar na cena de sexo de Munique é porque essa é de facto uma das raras cenas de sexo na obra de Spielberg, embora a personagem de Eric Bana seja avaliada enquanto filho – comparado negativamente ao pai – e enquanto pai, e não tanto enquanto amante).
Lester D. Friedman diz que Hook “explora a forma como os homens se esforçam para estar à altura das expectativas culturais dos papéis que os homens geralmente representam”, mas convém sublinhar que, em Spielberg, esses papéis são quase sempre os de paternidade e protecção, e raras vezes são mais do que isso. (A importância desta questão da paternidade/masculinidade está bem patente na relevância que assume em “Relatório Minoritário” e “Guerra dos Mundos”. Quer no conto de Philip K. Dick, quer no romance de H. G. Wells que inspiraram os filmes, as questões familiares são inexistentes.)
Infância e cinema
Algumas das críticas mais injustas ao cinema de Spielberg são aquelas que confundem representação da infância com infantilização do espectador. Em primeiro lugar, para quem é acusado de promover essa infantilização (ou adolescentização), Spielberg criou logo no início da carreira, quando receava tornar-se um “truck and shark director”, duas figurações arquetípicas do Mal, na sua forma mais pura (irracional e injustificada) e mais cinematográfica, em “Um Assassino pelas Costas” (uma extensão rodoviária da ideia da célebre cena de “Intriga Internacional”, de Hitchcock) e “Tubarão” (a extensão aquática d’”Os Pássaros”).
Mesmo sem negar o sentimentalismo impante de alguns dos seus filmes e o seu optimismo de escuteiro, convém dizer que isso não tem que ver necessariamente com as suas representações da infância. Pelo contrário, essas representações até costumam (ou costumavam) ser mais complexas, com mais gradações, do que as representações e construções de temas adultos.
Por exemplo, o tom de “Inteligência Artificial” é muito mais negro e as suas implicações filosóficas muito mais profundas do que qualquer outro filme de Spielberg, isto apesar de acompanharmos a história do ponto de vista de uma criança, David, o menino-robô. Concordamos com Lester D. Friedman quando diz que o final de “Inteligência Artificial” está longe de ser o empadão sentimental que os seus detractores dizem ser. É quase um tratado sobre a aceitação da finitude da vida, da valorização da sua efemeridade, e uma visão bastante crua da existência e absolutamente céptica quanto à possibilidade de uma vida além da morte ou de qualquer outra forma de redenção. Não há nada, mas ainda assim vale a pena. Neste processo, ao contrário do que acontece com Jim, que cresce mas não amadurece, David amadurece mas, como é um robô, não cresce. Torna-se humano. Sofre uma transformação. Programado para amar, aprende a escolher o amor e a aceitar o fim inevitável.
O que é também inegável é que Spielberg, mais do que filmes para crianças, faz filmes para um espectador que procura no cinema a sensação de encantamento da infância. O cinema é, nesse sentido, o que Javier Marías diz do futebol: a recuperação semanal da infância. Se nos seus filmes as crianças são obrigadas a crescer, já os adultos precisam de se manter na infância, de estar preparados para suspender a descrença a qualquer momento. O exemplo definitivo desta tendência na obra de Spielberg é a personagem de Richard Dreyfus em “Encontros Imediatos do Terceiro Grau”: o homem que abandona a família para ir atrás do lugar onde algo de mágico está a acontecer. Tão maravilhado como Elliott ao ver o ET, como as crianças a verem os dinossauros, como Jim a ver os P-51, “Cadillac of the skies!”
Em “Hook”, dá-se uma inversão da lógica: Peter Banning tem de voltar a ser criança para poder salvar a família. A fada Sininho diz-lhe que tem de voltar a esse lugar “entre o sono e a vigília, o lugar onde ainda nos lembramos dos sonhos.” E o eco dessas palavras da fada Sininho faz-se ouvir nas derradeiras palavras de “Inteligência Artificial”:
“Era esse o momento eterno pelo qual ele esperara. E o momento tinha passado porque Monica já dormia profundamente. Não estava apenas a dormir. Mesmo que ele a abanasse ela nunca acordaria. Por isso, David também adormeceu. E pela primeira vez na vida, foi para o lugar… onde os sonhos nascem.”
Para Spielberg, esse lugar onírico, “entre o sono e a vigília”, é o próprio cinema, o lugar onde os adultos regressam à infância.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor, autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015, e de “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”.