Mário Moniz Pereira
Um dos primeiros amigos de infância foi Mário Moniz Pereira (1921-2016), que o tratava por Gigi, alcunha posta pelo pai, João Soares, e que durou até aos 11 anos. O treinador de Carlos Lopes e Fernando Mamede lembrava-se de que o vizinho de cima, três anos mais novo, assistia – sem participar – às brincadeiras desportivas organizadas nas traseiras do prédio onde moravam, na rua Gomes Freire, em Lisboa.
Álvaro Cunhal
No Colégio Moderno, o adolescente Mário Soares conheceu Álvaro Cunhal (1913-2005), um dos seus mentores, juntamente com o filósofo Agostinho da Silva (1906-1994) e o ensaísta e crítico literário Álvaro Salema (1914-1991). Apesar disso, não foi o jovem dirigente comunista, prefeito (regente de estudos) no colégio, quem recrutou Soares para o PCP, em 1942. Mas foi uma conversa posterior com Cunhal que levou Mário a fazer uma escolha decisiva para a sua vida pessoal e política. O pai já o tinha inscrito em Lausana para prosseguir os estudos na Suíça, depois de concluir a licenciatura na Faculdade de Letras. No entanto, após um encontro com Cunhal em Buarcos, Soares sentiu-se “galvanizado” pelas palavras do líder e decidiu ficar em Portugal. Voltaram a encontrar-se durante o julgamento de Cunhal, em 1950, quando Soares, que ainda não era advogado, vestiu uma toga para poder entrar no Tribunal Plenário (que julgava os crimes políticos) e foi cumprimentá-lo.
Quando se afastou do PCP, em finais de 1950, o partido informou, numa circular, que “Fontes” (o nome de código de Soares) já não era camarada: tinha sido expulso por sabotar reuniões, indisciplina, derrotismo e por se ter apropriado de bens do partido. Esta última acusação – de roubo (tanto podia ser uma máquina de escrever como dinheiro das quotas) – era praticamente uma pena acessória aplicada aos dissidentes: outros ex-militantes do PCP (caso de Francisco Martins Rodrigues, participante na célebre fuga de Peniche e que viria a fundar a primeira organização maoista portuguesa), viram o rol das suas faltas ideológicas engrossado pela oportuna “apropriação de bens do partido”. Em fevereiro de 1951, o “Avante!” incluiu o nome de Soares num artigo em que apelava à “luta contra os oportunistas”.
Reencontraram-se em 1964, em Praga. Cunhal passara dez anos na cadeia, protagonizara uma fuga rocambolesca do forte de Peniche e tornara-se secretário-geral do PCP. Soares era uma estrela ascendente da oposição não comunista e liderava a Ação Socialista Portuguesa (ASP). Soares estranhou a frieza de Cunhal, que insistiu em tratá-lo por “senhor doutor” e se recusou a falar de qualquer assunto que não fosse política. Nem mesmo do próprio pai, o advogado Avelino Cunhal, que Soares, para quebrar o gelo, tentou meter na conversa. Estavam marcadas as distâncias entre os dois.
Voltaram a cruzar-se em Paris, durante o último exílio de Soares. Tiveram duas reuniões formais, como líderes dos respetivos partidos. A última, lembra Soares na sua autobiografia Um Político Assume-se (Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2011), foi pouco antes do 25 de Abril (março de 1974).
Depois da revolução houve um fugaz momento de aproximação. Soares chegou a acalentar a ilusão de reproduzir em Portugal o “Programa Comum” que uniu PS e PC em França durante algum tempo. Os dois líderes discursaram no “primeiro 1º de Maio” – e daí em diante seguiram em rota de colisão até ao “processo revolucionário em curso” (PREC) e ao ajuste de contas, a 25 de novembro de 1975. Momentos altos desse longo duelo: a vitória socialista nas eleições para a Assembleia Constituinte, a 25 de abril de 1975; Soares insultado e barrado à entrada do estádio onde decorriam as comemorações do 1.º de Maio de 1975; o “Caso República”; a manifestação da Alameda, em julho; o debate televisivo de 6 de novembro – uma maratona de três horas e meia que Soares venceu por KO mas cuja frase que ficou para a história foi dita por Cunhal: “Olhe que não, doutor, olhe que não…”
O afastamento entre os dois durou mais dez anos. Pelo meio, o PC de Cunhal ajudou a derrubar no Parlamento o primeiro governo de Soares, fez-lhe a vida negra de todas as vezes que voltou ao poder “aliado de facto à direita” e culpou-o pela liquidação da reforma agrária, pelos salários em atraso e pela fome em Setúbal em 1983-85.
Depois vieram as Presidenciais de 1986: Freitas do Amaral ganhou a primeira volta e Cunhal engoliu o sapo – obrigando os eleitores comunistas a engoli-lo também e a eleger Soares Presidente da República. A vida deu muitas voltas, o muro de Berlim foi abaixo, o Bloco de Leste desfez-se, a URSS acabou e, quando Cunhal fez 90 anos, Soares dedicou-lhe um rasgado elogio.
Jorge Borges de Macedo
Já universitário, Mário Soares conheceu, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o seu primeiro controleiro enquanto militante comunista clandestino: o futuro historiador Jorge Borges de Macedo (1921-1996), pai do antigo ministro das Finanças Braga de Macedo.
Fernando Piteira Santos
O controleiro seguinte foi Fernando Piteira Santos (1918-1992), seu companheiro de militância e dissidência. Estiveram juntos em muitas atividades de resistência contra o regime de Salazar. Piteira Santos esteve envolvido no “Golpe de Beja”, no fim de 1961, e fez parte do “grupo de Argel”. Depois do 25 de Abril foi diretor do “Diário de Lisboa” e professor da Faculdade de Letras, deixando vasta obra como historiador.
Joaquim Barradas de Carvalho
Outro historiador que se tornou amigo para a vida – apesar de se ter mantido sempre militante comunista – foi Joaquim Barradas de Carvalho (1920-1980), pai do antigo secretário de Estado Alberto Arons de Carvalho. Padrinho de casamento de Maria Barroso, foi em casa dele que Soares se refugiou, com um sobretudo vestido por cima do pijama, quando a PIDE lhe bateu à porta para o prender, em 1949.
José Fernandes Fafe
Amigo para sempre, desde os tempos da universidade, ficou também o escritor e diplomata José Fernandes Fafe (n. 1927), companheiro da resistência antifascista e grande conhecedor da história e da cultura da América Latina. Depois do 25 de Abril foi o primeiro embaixador de Portugal em Cuba, país que visitara com Soares em 1964. Nessa viagem, recordou ao jornalista Joaquim Vieira, autor da biografia Mário Soares. Uma Vida, o futuro Presidente português disse-lhe uma frase profética: “Nunca mais vai haver eleições. Francamente, isto vai ser uma ditadura”.
Mário Ruivo
As tarefas políticas do jovem militante levaram Soares a travar amizade com estudantes de outras áreas. Foi o caso do biólogo Mário Ruivo (n. 1927), cientista de prestígio internacional no domínio da oceanografia, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros do V governo provisório, no “Verão Quente” de 1975, no auge do gonçalvismo combatido por Soares – um exemplo de que nem sempre as divergências políticas puseram em causa a amizade pessoal.
Júlio Pomar
Outro grande amigo desse tempo foi o pintor Júlio Pomar (n. 1926). Conheceram-se na Comissão Central do MUD Juvenil, era Pomar representante dos estudantes de Belas Artes do Porto. A amizade cimentou-se na cadeia de Caxias, onde ambos estiveram presos em 1947. Um dia, puseram-se a especular sobre o que seriam no futuro. Soares não hesitou: “Pomar? O maior pintor português.” Este retribuiu: “Tu vais ser Presidente da República”. Júlio Pomar foi o autor do retrato oficial de Mário Soares, patente na galeria dos antigos chefes de Estado, no Museu da Presidência do Palácio de Belém.
Norton de Matos
Foi Mário Soares quem convenceu o candidato da oposição às eleições presidenciais de 1949, o general Norton de Matos (1867-1955), a deixar-se retratar pelo jovem pintor Pomar. Antigo governador-geral de Angola (fundou Nova Lisboa, hoje Huambo), ministro da Guerra (foi responsável pelo “milagre de Tancos”, a preparação do Corpo Expedicionário Português que combateu na I Guerra Mundial), ministro das Colónias, grão-mestre da Maçonaria – o veterano militar, já octogenário, apresentou-se contra o peão de Salazar, Óscar Carmona. O jovem ativista Mário Soares foi secretário da direção da candidatura, tornando-se próximo do general, que depositava nele a maior confiança. Norton de Matos sabia que Soares tinha sido membro da Comissão Central do Movimento de Unidade Democrática (MUD), entretanto banido pelo governo, e que era dirigente do MUD Juvenil. Mas o velho general ignorava que o secretário executivo da sua candidatura era, também, militante clandestino do Partido Comunista.
E continuaria nessa ignorância, se Mário Soares não tivesse recebido a ordem direta – dada por um elemento do Secretariado, a cúpula do PCP – para se apresentar como tal a Norton de Matos. Soares obedeceu contrafeito. Quando voltou a ir a despacho com o general, comunicou-lhe que aderira ao PCP e que o partido o nomeara seu representante na candidatura. Em Um Político Assume-se, Soares recorda esse encontro há quase sete décadas: “[Norton de Matos] fixou-me com um olhar frio, impenetrável. Ao fim de um silêncio – que me pareceu uma eternidade – disse-me, secamente: ‘Muito bem.’ E continuou calado.” O general nunca mais quis voltar a vê-lo e proibiu-o de ir aos seus comícios.
Octávio Pato
Na direção do MUD Juvenil, Soares tornou-se próximo de um jovem caixeiro que iniciava então uma longa carreira que o levaria aos mais altos cargos dirigentes do PCP: Octávio Pato (1925-1999), principal responsável do partido no interior do país antes do 25 de Abril e candidato à Presidência da República em 1976 (teve 7,59% dos votos). Foi com ele e com um terceiro camarada (Gilberto Oliveira) que Soares deu cumprimento à regra conspirativa que obrigava os militantes a escolherem um pseudónimo ou nome de código para serem designados nas reuniões e documentos partidários, de forma a não poderem ser identificados pela polícia. Como a reunião decorria na Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, não perderam muito tempo a pensar: Soares ficou “Fontes”, Oliveira “Pereira” e Pato “Melo”.
Octávio Pato viveu uma temporada clandestino em casa de Soares, com a “cobertura” de ser aluno interno do Colégio Moderno. No livro Mário Soares — O Animal Político, o futuro chefe do Estado conta que, num momento de maior intimidade, Pato lhe revelou a falta que sentia do contacto feminino e perguntou-lhe se ir às prostitutas era contrário à moral comunista. O camarada respondeu-lhe sem hesitar: “Eu acho que sim, mas se estiveres muito aflito, vai.”
Francisco Salgado Zenha
Em 1946, sempre em virtude das lides político-académicas, Soares conheceu aquele que seria o seu maior amigo durante quarenta anos. Francisco Salgado Zenha (1923-1993) fora o primeiro presidente eleito da Associação Académica de Coimbra (1945) e fazia parte, tal como Soares, do Movimento Académico de Unidade Democrática (MAUD), braço estudantil do MUD, organização frentista impulsionada pelo PCP, a que ambos pertenciam (Zenha negou sempre ter sido militante comunista, mas Soares confirmou-o). Foram os dois dirigentes do MUD Juvenil e partilharam a militância em sucessivas organizações políticas, designadamente a Resistência Republicana (RR, 1955), depois Resistência Republicana e Socialista (RRS, 1962) e a Ação Socialista Portuguesa (ASP, 1964) ao longo de três décadas, até fundarem o PS, em 1973. Zenha não esteve presente no congresso da fundação, em Bad Münstereifel, na então Alemanha Ocidental, tendo votado por procuração (foi representado por Maria Barroso) contra a passagem da ASP a partido.
Soares e Zenha estiveram juntos nas candidaturas oposicionistas dos generais Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958), subscreveram o Programa para a Democratização da República (1961) e foram os principais dinamizadores da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), que foi a votos nas legislativas de 1969 contra a União Nacional (partido único do regime) e contra a Comissão Democrática Eleitoral (CDE), a frente unitária controlada pelo PCP.
A amizade entre os dois tornou-se íntima: Zenha foi padrinho de batismo da filha de Soares, Isabel (n. 1951). Uma pequena diferença entre ambos: enquanto Soares fez da política o centro quase exclusivo da sua vida, Zenha construiu uma carreira profissional que o transformou num dos mais prestigiados advogados portugueses. Ganhou fama em alguns dos processos mais importantes que passaram pelos tribunais, tendo, por exemplo, representado o industrial António Champalimaud no célebre “caso da herança Sommer”, ganhando a causa.
Depois do 25 de Abril, os dois formaram um tandem imortalizado por um slogan gritado por socialistas e não só durante o PREC: “Soares e Zenha, não há quem os detenha!”
Enquanto o líder do PS passava grande parte do tempo no estrangeiro, no desempenho das funções de ministro dos Negócios Estrangeiros dos três primeiros governos provisórios, Zenha, responsável pela pasta da Justiça do I ao IV governo, tornou-se conhecido como o “número dois” dos socialistas. Negociou a revisão da Concordata com a Santa Sé, que permitiu o divórcio das pessoas casadas pela Igreja Católica, e assumiu o protagonismo em alguns dos momentos mais duros do confronto político contra o primeiro-ministro pró-comunista Vasco Gonçalves e a ala gonçalvista do MFA.
Foi o caso da luta contra a unicidade sindical, quando os militares tentaram impor, com força de lei, a adesão de todos os trabalhadores a uma central sindical única, no caso a Intersindical (atual CGTP), em janeiro de 1975. Salgado Zenha escreveu um artigo explosivo no Diário de Notícias, deu entrevistas às rádios e à televisão, incendiou comícios – transfigurou-se no paladino da liberdade e o povo reconheceu-o como o tribuno temível que se confirmaria mais tarde no hemiciclo de S. Bento. Foi ele quem, pela primeira vez, acusou a Intersindical de ser uma “correia de transmissão do Partido Comunista”.
Mas a vida dá muitas voltas. Passada uma década, a amizade “indestrutível” entre Soares e Zenha foi destruída. Já ficara abalada pelo apoio à reeleição do general Ramalho Eanes, defendido por Zenha e recusado por Soares, em 1980. Não resistiu quando o eterno número dois socialista se apresentou contra o seu camarada e compadre às eleições presidenciais de 1986. Ironia: um dos principais apoios de Zenha foi o PCP.
A campanha da primeira volta foi feia e nem sequer faltaram momentos fratricidas no debate televisivo entre os dois. Soares começou por dizer que ambos vinham da mesma família política – mas Zenha cortou cerce a tentativa de derreter o gelo: “Eu não sou da sua família!” Minutos depois, Soares desferiu uma punhalada florentina sobre o irmão-inimigo, deixando cair que não era ele quem andava no psiquiatra.
Nessa eleição, Soares venceu o que ele próprio chamou as “primárias da esquerda”, passando à segunda volta, e acabou por ser eleito Presidente da República. Em 1990 condecorou Zenha com a grã-cruz da Ordem da Liberdade. Apesar da insistência de amigos comuns e da afilhada Isabel Soares, Zenha nunca aceitou reconciliar-se com o ex-amigo.
Manuel Mendes
Dos tempos do MUD ficou ainda a amizade com o escritor Manuel Mendes (1906-1969), seu padrinho de casamento, e com o economista Francisco Ramos da Costa (1913-1982).
Manuel Tito de Morais
Também no MUD conheceu Manuel Tito de Morais (1910-1999), engenheiro eletrotécnico, resistente antifascista e protagonista de mil e uma conspirações ao lado de Soares. Estiveram juntos na RR, na RRS, na ASP e na fundação do PS. Tito de Morais foi deputado à Assembleia Constituinte, em 1975; secretário de Estado do Emprego no VI governo provisório (1975-76); secretário de Estado da População e do Emprego no I governo constitucional (1976-78); e presidente da Assembleia da República (1983-85). Em 1986 foi eleito presidente do PS.
Gustavo Soromenho
Quando acabou o curso de Direito, em 1957, Soares foi trabalhar para o escritório do advogado Gustavo Soromenho (1907-2001), que conhecera na campanha de Norton de Matos e fazia parte da União Socialista. Em 1973, Soromenho tornou-se administrador do jornal “República” e, nessa qualidade, foi um dos protagonistas do “caso República”, um dos principais cavalos de batalha de Soares durante o PREC.
Vasco da Gama Fernandes
No mesmo escritório trabalhou também Vasco da Gama Fernandes (1908-1991), primeiro presidente da Assembleia da República (1976-1978).
Catanho de Menezes
Outro advogado de quem ficou grande amigo foi Catanho de Menezes (1926-1985), futuro companheiro na ASP, na CEUD e fundador do PS.
Humberto Delgado
Em 1958, a candidatura de Humberto Delgado (1906-1965) à Presidência da República fez tremer Salazar. Mário Soares não se mostrou entusiasmado com o general que até pouco tempo antes era um apoiante incondicional do regime – e que não primava pela coerência. Mas o apoio popular e a decisão unânime de todas as forças oposicionistas de se juntarem ao homem que teve a coragem de dizer em público que, se fosse eleito, “obviamente demitia” o ditador, determinaram a aproximação. Soares esteve ao lado de Delgado na manifestação de 5 de outubro de 1958, reprimida com gases lacrimogéneos e carga policial, e cedeu o escritório para uma reunião do Movimento Nacional Independente, criado pelo general.
Os dois voltaram a encontrar-se em Praga, em 1964, depois de Delgado ter sido operado na capital checoslovaca, graças aos bons ofícios do PCP. Soares atribuiu o convite para a visita ao facto de os comunistas quererem fazer dele testemunha de que Delgado estava a ser bem tratado. No Natal de 1964, Soares encontrou-se com Delgado em Paris. Foi a última vez.
O general foi assassinado pela PIDE em Espanha, em fevereiro de 1965, e Mário Soares foi o advogado da família. No âmbito do processo deslocou-se a Madrid, onde conheceu o professor de Direito Tierno Galván (1918-1986), futuro líder do Partido Socialista Popular (rival do PSOE de Felipe González), de quem se tornou amigo, bem como dos seus correligionários Raul Morodo (n. 1935), futuro embaixador de Espanha em Lisboa, e Fernando Morán (n. 1926), futuro ministro dos Negócios Estrangeiros.
Raul Rego
A fundação da Ação Socialista Popular (ASP), com Tito de Morais e Ramos da Costa, em Genebra, em 1964, deu um novo fôlego à carreira política de Mário Soares. E também às suas amizades. Além dos velhos companheiros de jornada – aos quais se veio juntar o jornalista Raul Rego (1913-2002), que fora diretor dos serviços de imprensa das campanhas de Norton de Matos e Humberto Delgado e mais tarde seria diretor dos jornais pró-socialistas “República” (1971-1975) e “A Luta” (1976), além de ministro da Comunicação Social do I governo provisório, em 1974 – atraiu “sangue novo” para a área socialista, sobretudo jovens quadros forjados na crise académica de 1962.
Soares “namorou” – inicialmente sem resultado – Jorge Sampaio (n. 1939) e Medeiros Ferreira (1942-2014). Teve mais sorte com os jornalistas Jaime Gama (n. 1947, ministro da Administração Interna, dos Negócios Estrangeiros e da Defesa em sucessivos governos, além de presidente da Assembleia da República) e Arons de Carvalho (n. 1949, secretário de Estado da Comunicação Social em governos socialistas); o médico António Arnaut (n. 1936, ministro dos Assuntos Sociais do II governo constitucional e “pai” do Serviço Nacional de Saúde); ou o engenheiro agrónomo António Campos (n. 1938, futuro ministro da Agricultura).
Alfredo Barroso
Um caso à parte foi o do seu sobrinho por afinidade Alfredo Barroso (n. 1945), filho de um irmão de Maria Barroso, que se iniciou nas lides políticas na ASP. Jornalista nos diários “A Capital” e “O Século”, fez parte da direção da CEUD nas eleições legislativas de 1969 (mas não foi candidato) e foi um dos fundadores do PS, em 1973. Quando se tornou ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1974, Soares convidou-o para assessor de imprensa.
A colaboração política entre tio e sobrinho tornou-se ainda mais estreita no I governo constitucional, em 1976, com Barroso a desempenhar as funções de chefe de gabinete do primeiro-ministro. Em 1983 foi secretário de Estado da Presidência do Conselho, no governo do “bloco central”. Com a chegada de Soares a Belém, em 1986, Barroso assumiu o cargo de chefe da Casa Civil da Presidência da República.
A relação entre ambos viria a esfriar anos depois, quando Alfredo Barroso, crítico de Sócrates, começou a afastar-se do PS. A campanha presidencial de 2006, que Barroso dirigiu, cavou ainda mais a distância entre tio e sobrinho. A gota de água, segundo uma entrevista de Barroso ao jornal “i”, foi a autobiografia de Soares (Um Político Assume-se), livro “em que eu não existo” — “Achei que era de mais.” Desiludido com a liderança de António Costa, Alfredo Barroso saiu do partido que ajudara a fundar. Nas eleições de 2015, apoiou o Bloco de Esquerda. Reconciliou-se com o tio quando este festejou os 90 anos.
Olof Palme
Foi também a ASP que deu visibilidade internacional a Mário Soares, graças aos contactos estabelecidos com a Internacional Socialista (IS), organização que, ao tempo, reunia os partidos social-democratas, socialistas e trabalhistas europeus. Numa visita à Suécia, foi convidado por Olof Palme (1927-1986) – antes de este se tornar líder partidário e primeiro-ministro; o seu assassínio continua por esclarecer – para um almoço em Estocolmo e uma ida à sauna.
Rui Mateus
Em 1969, Soares falou pela primeira vez num congresso da IS, em Eastbourne, na Inglaterra. Nesse ano conheceu Rui Mateus (n. 1944), que viria a ser um dos fundadores do PS e considerado o mais fiel dos fiéis soaristas, antes de cair em desgraça. Mateus tornou-se membro da ASP em Londres, onde se exilara para não ir combater na guerra colonial. Mais tarde estabeleceu-se na Suécia, onde foi um destacado ativista da organização e, em 1973, participou no congresso de fundação do PS, em Bad Münstereifel.
Depois do 25 de Abril foi durante anos a “sombra” do chefe à frente do departamento de Relações Internacionais do PS, o que lhe permitiu contactar com alguns dos mais conhecidos líderes sociais-democratas europeus. Apesar de toda a sua dedicação, Soares nunca lhe satisfez a ambição de chegar a ministro ou sequer secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Em contrapartida foi administrador da Emaudio, a empresa de comunicação social criada por socialistas próximos de Soares, e o seu nome apareceu envolvido nos escândalos da TDM e do “fax de Macau”, que ditaram o rompimento com o então Presidente da República.
Na sequência do seu afastamento da vida política e do fim da sua amizade pessoal com Soares, Mateus escreveu o livro Contos Proibidos. Memórias de um PS Desconhecido (Publicações Dom Quixote, 1996) – que, segundo o jornalista Joaquim Vieira, autor de Mário Soares. Uma Vida (Esfera dos Livros, 2013), mereceu ao seu biografado “impropérios irreproduzíveis”. Na autobiografia Um Político Assume-se, o próprio Mário Soares classifica a polémica suscitada pelo livro como uma “ofensiva que fizeram contra mim, vinda da direita extrema”, em cuja origem esteve “um fundador do Partido Socialista, de poucas letras mas que falava bem o inglês, que conheci em Londres, onde era empregado num restaurante (…) A ambição cegou-o.”
Hermínio da Palma Inácio
Em 1969, Mário Soares foi procurado em casa por Hermínio da Palma Inácio (1922-2009), que até então só conhecia de nome. Mas que nome! Palma Inácio era o revolucionário romântico, o guerrilheiro especialista em ações armadas espetaculares e que por mais de uma vez humilhara Salazar, chamando a atenção da comunicação social internacional para mostrar ao mundo que em Portugal havia quem combatesse a ditadura. Comandou a “Operação Vagô”, em 1961, o primeiro desvio de um avião comercial por motivos políticos. À frente de um grupo armado, tomou de assalto um avião da TAP que fazia a ligação entre Casablanca e Lisboa e, voando a baixa altitude, lançou panfletos contra o regime salazarista sobre a capital e várias cidades do sul do país.
Tão ou mais espetacular foi o assalto à filial do Banco de Portugal na Figueira da Foz, em 1967, onde um comando revolucionário encabeçado por Palma Inácio se apoderou de quase 30 mil contos (150 mil euros). À aura lendária do guerrilheiro acrescia o pormenor de todos os golpes terem sido executados sem causar vítimas. Mas a operação seguinte não acabou bem: Palma Inácio e companheiros, que entretanto tinham assumido serem membros de uma organização política antifascista, a Liga de Unidade e Ação Revolucionária (LUAR), planearam ocupar a Covilhã – mas foram capturados quando se dirigiam ao objetivo. O líder foi levado para as instalações da PIDE, no Porto, onde foi torturado. Palma Inácio não desistiu: obteve do exterior uma serra com a qual serrou as grades da cela – e evadiu-se. Três dias depois chegou a Lisboa e foi pedir ajuda ao mais destacado dirigente da oposição não comunista.
Maria Barroso deu-lhe roupas do marido. Soares levou-o de carro a casa do seu amigo José Fernandes Fafe, em Cascais, que o acolheu em segurança até que pôde sair para fora do país. Ficaram amigos. Depois da dissolução da LUAR, em 1976, Palma Inácio aderiu ao PS. Nunca quis ser mais do que militante de base, no núcleo da Avenida Almirante Reis.
Alain Oulmann
Em 1970, no rescaldo da sua derrota pessoal nas eleições de 1969 – em Lisboa, onde era cabeça de lista, a CEUD ficou atrás da CDE, ao contrário do que sucedeu nos outros distritos em que a oposição concorreu dividida – Soares fez uma longa viagem pelos EUA e pela América do Sul. Voltou por Paris, onde combinou com Alain Oulmann (1928-1990), autor de alguns dos melhores fados de Amália Rodrigues e que era então sócio da editora Calmann-Lévy, a edição de um livro sobre a luta contra a ditadura: seria a versão francesa de Portugal Amordaçado. Chegou a passar uma temporada em casa do seu amigo Mário Ruivo, nos arredores de Roma, a escrever o livro.
António Coimbra Martins
Ainda no mesmo ano, Soares voltou a Paris, agora na condição de exilado, imposta pela PIDE, às ordens de Marcello Caetano, como lhe foi comunicado a seguir ao funeral do pai, em julho de 1970. O seu grande apoio na capital francesa foi António Coimbra Martins (n. 1927), antigo colega da Faculdade de Letras e responsável pelo Centro Cultural Português, da Fundação Gulbenkian, em Paris. Soares, entretanto iniciado na Maçonaria, na loja Les Compagnons Ardents, da Grande Loja de França, levou o amigo para a associação.
Coimbra Martins, por seu lado, ajudou-o a enfrentar os estudantes contestatários na Universidade de Vincennes (vivia-se a ressaca do Maio de 68) e tornou-se “companheiro das aventuras galantes” de Soares em Paris: “Ainda me lembro de todos os nomes e situações”, disse a Joaquim Vieira (Mário Soares. Uma Vida). Quando se tornou ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1974, um dos primeiros atos de Soares foi nomear Coimbra Martins embaixador em Paris. Em 1983 entregou-lhe o Ministério da Cultura, no governo do “bloco central”.
Carlos Monjardino
Contratado pelo grande empresário Manuel Bulhosa (1995-2000), que lhe deu uma avença no seu banco em Paris, Banque Franco-Portugaise, Soares fez amizade com Carlos Monjardino (n. 1942), então gerente daquele banco e futuro homem forte da administração de Macau, depois presidente da Fundação Oriente.
François Mitterrand
Em junho de 1971, Mário Soares assistiu “como convidado, na primeira fila”, ao congresso socialista de Épinay, onde a velha SFIO (Secção Francesa da Internacional Operária), fundada em 1905 por Jean Jaurès, deu lugar ao PS francês. Aí conheceu pessoalmente François Mitterrand (1916-1996): “Tornámo-nos amigos.” Depois do 25 de Abril ficou famosa em Portugal a frase com que Soares se referia ao futuro presidente francês, dita com a sua pronúncia muito característica: “Mon ami Mitterrand…”
Jean Daniel
A adesão formal da ASP à IS, no 12.º Congresso, em Viena, em 1972, facilitou-lhe ainda mais a rede de contactos. Ao mesmo tempo, a publicação de Le Portugal Bailloné (depois editado em Portugal com o título Portugal Amordaçado) fez de Soares uma figura conhecida na imprensa e nos meios culturais franceses. Tornou-se amigo do jornalista Jean Daniel (n. 1920), fundador e editorialista da revista “Nouvel Observateur”.
Willy Brandt
Por indicação do chanceler social-democrata da Alemanha Ocidental Willy Brandt (1913-1992), foi à América Latina encontrar-se, em nome da IS, com destacados sociais-democratas locais. Fez amizade com os futuros presidentes Fernando Henrique Cardoso (n. 1931), do Brasil, e Carlos Andrés Perez (1922-20210), da Venezuela. Conheceu o presidente chileno Salvador Allende (1908-1973) em fevereiro de 1973, sete meses antes de ser abatido no golpe de Pinochet.
Mário Ruivo
Durante a visita ao Equador, Soares enviou um postal das ilhas Galápagos ao amigo biólogo, o comunista Mário Ruivo (n. 1927), futuro ministro dos Negócios Estrangeiros do V governo provisório de Vasco Gonçalves.
Fernando Vale
A 19 de abril de 1973, a maioria dos delegados ao congresso da ASP, na pequena cidade alemã de Bad Münstereifel, votou a favor da transformação da associação em partido. Contra a fundação do PS pronunciou-se o jornalista Mário Mesquita (n. 1950), futuro diretor do “Diário de Notícias”, apoiado por Maria Barroso. Soares não gostou mesmo nada. Talvez devido à profusão de maçons entre os congressistas, o médico Fernando Vale (1900-2004), que presidia aos trabalhos, dirigiu-se aos presentes tratando-os por “meus irmãos…”
James Callaghan
A visita de Marcello Caetano a Londres, em julho de 1973, voltou a pôr Mário Soares nas páginas da imprensa internacional. O líder socialista participou nas manifestações contestando a presença do chefe do Governo. Enquanto Caetano era recebido pelo primeiro-ministro conservador Edward Heath, Soares era tratado ao mesmo nível pelo líder da oposição trabalhista, Harold Wilson (1916-1995), ex e futuro primeiro-ministro. Data dessa altura a amizade com o então ministro-sombra James Callaghan (1912-2005), em breve responsável pelo Foreign Office e futuro primeiro-ministro, que lhe disse sem papas na língua: “Tens de aprender inglês.”
Os amigos querem-se para as ocasiões e no período mais escaldante do PREC, em vésperas do 25 de novembro de 1975, os laços pessoais com James Callaghan revelaram-se valiosos. Soares obteve do ministro dos Negócios Estrangeiros britânico a garantia de que, em caso de necessidade, um petroleiro britânico forneceria combustível aos aviões da Força Aérea concentrados na base de Cortegaça e que a própria RAF poderia intervir a favor das forças democráticas encabeçadas, politicamente, pelos socialistas portugueses.
Manuel Alegre
Com a mudança de regime proporcionada pela “revolução dos cravos”, os amigos vão desempenhar um papel renovado na vida de Mário Soares. O PS, na altura pouco mais do que o núcleo fundador, transformou-se num partido de massas e Soares num líder popular. Para isso foi decisiva a vitória sobre os “submarinos” pró-comunistas no 1.º congresso, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, em dezembro de 1974. Aí Soares contou com um apoiante entusiástico: Manuel Alegre (n. 1936).
O poeta e veterano resistente à ditadura fora um dos dirigentes da Frente Patriótica de Libertação Nacional, também conhecida como “grupo de Argel”, onde emprestou o seu timbre inconfundível à Rádio Voz da Liberdade, entre 1964 e 1974. Já afastado do PCP quando regressou do exílio, aderiu ao PS no 1.º congresso. O seu discurso empolgado foi fundamental para “virar” o congresso e garantir a vitória da lista de Mário Soares sobre a de Manuel Serra, defensor da aproximação ao PCP e apoiado pela ala gonçalvista do MFA, que não escondia a vontade de patrocinar o aparecimento de um “partido verdadeiramente socialista”.
Foi o início de uma bela amizade que durou mais de 30 anos, até ao confronto nas eleições presidenciais de 2006. Apesar de ser o candidato oficial do PS, Soares não foi além dos 14,31%. Alegre, apoiado pela esquerda radical, conseguiu 20,74% e ficou em segundo lugar, atrás de Cavaco Silva. Soares não perdoou o que considerou uma afronta e rompeu com Alegre. Anos mais tarde fizeram as pazes.
Vasco Vieira de Almeida
No I governo provisório, Soares reencontrou o advogado Vasco Vieira de Almeida (n. 1932), filho de um seu antigo professor da Faculdade de Letras e oposicionista de longa data. Ao contrário do secretário-geral socialista, o ministro da Coordenação Económica saiu do executivo solidário com o primeiro-ministro Palma Carlos. Vieira de Almeida participou depois, como representante de Portugal, no governo de transição de Angola, em 1975. Em 1976 fundou o escritório de advogados que é hoje um dos mais importantes do país. Independente do ponto de vista partidário, Vieira de Almeida manteve-se sempre politicamente próximo de Soares, cujas candidaturas presidenciais apoiou.
António Almeida Santos
Já depois do 25 de Abril deu-se também a aproximação de Soares a António Almeida Santos (1926-2016). O advogado beirão formado em Coimbra estabelecera-se em Lourenço Marques. Conhecido pelas suas convicções oposicionistas, dinamizou o grupo dos Democratas de Moçambique e distinguiu-se na defesa de presos políticos anticolonialistas. Convidado por Spínola para integrar o I governo provisório como ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida Santos manifestou desde cedo posições convergentes com as dos socialistas, embora mantendo a condição de independente. Só aderiu ao PS em 1976, ano em que se tornou ministro da Justiça no I governo constitucional. Marcou presença em todos os governos chefiados por Mário Soares, chegando a ser ministro de Estado.
Em 1985, Almeida Santos foi o rosto de uma derrota histórica do PS. No auge da impopularidade dos socialistas, que sofriam as consequências da austeridade imposta pelo “bloco central”, Almeida Santos foi apresentado como o candidato do partido a primeiro-ministro, enquanto Mário Soares se resguardava para preparar a corrida a Belém. Os cartazes com a sua foto pediam 43% dos votos, para a maioria absoluta de deputados. O resultado foi 20,8%, o pior de sempre para os socialistas.
Negociador de méritos reconhecidos, figura indispensável para a construção de consensos difíceis – por exemplo, as revisões constitucionais –, Almeida Santos foi ainda presidente da Assembleia da República, conselheiro de Estado e presidente do PS.
Frank Carlucci
No início de 1975 chegou a Portugal um novo embaixador dos EUA, Frank Carlucci (n. 1930). A “química” entre ele e Soares foi instantânea e o líder socialista tornou-se frequentador assíduo do último piso da residência do embaixador, à prova de escutas, na Rua do Sacramento à Lapa. Soares convenceu Carlucci de que Portugal conseguiria resistir à derrapagem radical e de que os portugueses nunca admitiriam uma ditadura comunista.
Henry Kissinger
De tal forma conseguiu ser convincente que o embaixador se tornou no seu principal aliado junto do governo americano – contra a opinião do secretário de Estado, Henry Kissinger (n. 1923), que já dera o país como uma causa perdida. A única utilidade de Portugal, segundo o braço direito do presidente Gerald Ford (Nixon tinha renunciado em agosto de 1974, atolado no escândalo Watergate), era “servir de vacina” aos países da Europa ocidental. Quanto a Soares, Kissinger disse-lhe na cara que iria ser o “Kerensky português”, comparando-o ao líder socialista moderado que governara a Rússia a seguir à revolução democrática de fevereiro de 1917 e fora derrubado pelos bolcheviques em outubro do mesmo ano.
Soares encaixou. Mas, com o apoio político, diplomático e financeiro de Carlucci, o contragolpe de 25 de novembro de 1975 afastou o perigo da tomada do poder pelos comunistas – e Soares puxou dos galões: “Sou o primeiro menchevique a vencer um bolchevique.” Kissinger acabou por dar o braço a torcer, num encontro em Washington, em janeiro de 1976.
Felipe González
Mas nem só o “amigo americano” valeu a Soares nos tempos difíceis da consolidação do regime democrático. Os camaradas da IS foram preciosos, quer para o auxílio financeiro ao Estado português quer para o indispensável balão de oxigénio ao PS. Exemplo disso foi um comício da campanha para as primeiras legislativas, de abril de 1976, que ficou conhecido como o “comício da Europa connosco” – a palavra de ordem dos cartazes socialistas para essas eleições. A mesa incluía antigos, presentes e futuros chefes de Estado e de Governo, a fina-flor da social-democracia europeia. Além de François Mitterrand, Olof Palme e Willy Brandt, também marcaram presença o chanceler austríaco Bruno Kreisky (1911-1990), o primeiro-ministro holandês Joop den Uyl (1919-1987) e a estrela ascendente da oposição espanhola, Felipe González (n. 1942).
Soares conhecia González desde os tempos do exílio parisiense mas não simpatizava por aí além com o jovem líder do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), preferindo-lhe o rival do Partido Socialista Popular (PSP), Tierno Galván. O relacionamento entre os chefes socialistas ibéricos tinha ficado afetado por um incidente ocorrido no congresso da Aula Magna, em dezembro de 1974. Nessa altura, Soares impedira González de falar para não tirar o brilho à intervenção de outro convidado espanhol, Santiago Carrillo. O secretário-geral do PCE era então um destacado defensor da corrente eurocomunista, que advogava a independência dos partidos comunistas ocidentais em relação a Moscovo – e o facto de aparecer ao lado dos socialistas portugueses era um golpe duro para Cunhal. Por isso Soares estendeu-lhe a passadeira vermelha. Por isso Felipe González abandonou o congresso, furioso, mas não sem antes dizer a Soares: “Pois é, Mário, os comunistas dos outros são sempre melhores do que os nossos.”
Vaclav Havel
A queda do muro de Berlim, em 1989, e o fim do Bloco de Leste permitiram a Soares ganhar um novo amigo: o dramaturgo Vaclav Havel (1936-2011), último presidente da Checoslováquia, eleito na sequência da “revolução de veludo”. Na presença de Soares, Havel foi tomar posse num Renault com matrícula portuguesa, levado de um stand do Porto para Praga graças aos bons ofícios do chefe do Estado português, como o próprio contou em Um Político Assume-se. Quando o responsável da marca lhe telefonou a pedir que pagasse o carro, Soares perguntou: “E a publicidade mundial que fizemos à Renault, não tem preço?” De seguida, telefonou para o n.º 1 da Renault em Paris. “Quando lhe falei no caso, compreendeu, imediatamente, que não havia nada a pagar…”
Carlos Melancia
Os amigos também trouxeram problemas a Mário Soares. Prova disso foi a empresa Emaudio, que pretendia fazer negócios na área da comunicação, chegando a ter conversações com grandes “tubarões” do ramo a nível mundial, como Rupert Murdoch (dono da Fox e da News Corporation) e o já falecido Robert Maxwell (1923-1991). Dirigida por socialistas próximos de Mário Soares, como o já referido Rui Mateus, além de Bernardino Gomes, Menano do Amaral ou João Tito de Morais, a Emaudio teve os seus dias de ascensão e queda durante o mandato de Carlos Melancia (n. 1927) como governador de Macau. Militante socialista, o engenheiro mecânico foi ministro da Indústria e Tecnologia do II governo constitucional (PS-CDS), em 1978, voltando a ser convidado por Mário Soares para o IX governo (“bloco central”), em que foi sucessivamente ministro do Mar (1983-85) e do Equipamento Social (1985). Já em Belém, Soares nomeou-o governador de Macau (1987-1991), cuja tutela era pelouro exclusivo do Presidente da República.
Logo no ano seguinte, em 1988, a administração do território foi abalada pelo “caso TDM”, um escândalo de corrupção com pressões sobre magistrados à mistura, que acabou por levar à extinção da empresa pública Companhia de Televisão e Radiodifusão de Macau, substituída pela Teledifusão de Macau (TDM).
No início de 1990, o semanário “O Independente” publicou um fax enviado pela empresa alemã Weidleplan a Melancia, pedindo a devolução de 50 mil contos (cerca de 250 mil euros, na moeda atual) doados à empresa portuguesa Emaudio pela mesma Weidleplan, preterida no concurso para o projeto de construção do aeroporto de Macau.
A manchete de “O Independente” fez rebentar o escândalo que ficou conhecido pelo “caso do fax de Macau”. Carlos Melancia acabou por apresentar a demissão em 1991. O caso foi julgado no Tribunal da Boa Hora, em Lisboa, em dois processos separados. Os resultados, contraditórios, deixaram muita gente perplexa: num dos processos, os administradores da Emaudio foram condenados pelo crime de corrupção ativa – embora nunca chegassem a cumprir pena por terem beneficiado de amnistia; no outro, Carlos Melancia foi absolvido do crime de corrupção passiva, de que era acusado, com o voto de vencido do juiz presidente do tribunal coletivo.
Mário Soares distanciou-se do caso, afirmando só saber dele o que leu nos jornais, mas foi confrontado sobre o tema pelo seu adversário Basílio Horta, num debate televisivo durante a campanha para as eleições presidenciais de 1991. O escândalo pôs ponto final à carreira política de Carlos Melancia, que se dedicou a partir de então à atividade empresarial. Um dos seus projetos mais mediáticos foi um complexo turístico em Castelo de Vide, incluindo um hotel, cuja insolvência, por dívidas, foi declarada pelo tribunal em 2006.
Yasser Arafat
Mário Soares ficou conhecido por nunca renegar os amigos. Prova disso foi a visita a Yasser Arafat (1929-2004) em Beirute, quando o dirigente palestiniano era alvo de repetidos bombardeamentos israelitas, em 1982. A aproximação com Arafat facilitou o envio do então seu braço direito, o médico Issam Sartawi (1935-1983), ao congresso da IS em Albufeira, em 1983, onde devia iniciar conversações com o líder trabalhista israelita Shimon Peres, também presente. A conversa nem chegou a começar: Sartawi foi abatido a tiro por um terrorista do grupo radical Abu Nidal, à entrada da sessão de abertura do congresso algarvio.
O último encontro de Soares com Arafat foi já na Cisjordânia: o líder palestiniano deu-lhe em primeira mão a notícia do assassínio do primeiro-ministro israelita Yitzhak Rabin (1922-1995), com quem o presidente português tinha estado horas antes, em Telavive.
Bettino Craxi
Politicamente incorreto foi o encontro que Soares insistiu em manter com o ex-líder socialista italiano Bettino Craxi (1934-2000), primeiro-ministro entre 1983 e 1987. Conheciam-se desde 1976, quando Craxi alcançou a chefia do PSI e ambos foram eleitos vice-presidentes da IS. Condenado a uma pesada pena de prisão por corrupção e financiamento ilegal do seu partido no processo “Mãos Limpas”, o escândalo que abalou o sistema político italiano em meados dos anos 1990, Craxi fugiu para a Tunísia, onde veio a morrer. Em 1995, durante uma visita oficial, Soares fez questão de receber o amigo na embaixada portuguesa em Tunis.
José Sócrates
Já no século XXI, Mário Soares aproximou-se do secretário-geral socialista e primeiro-ministro (2005-2011) José Sócrates (n. 1957), que levou o partido a apoiar a sua última candidatura presidencial, em 2006. Quando Sócrates, arguido num processo por corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais, esteve preso preventivamente na cadeia de Évora, Mário Soares visitou-o repetidamente e declarou com insistência a convicção na sua inocência.
Vítor Ramalho
Entre o vai e vem da política, Mário Soares manteve até ao fim um grupo de amigos do peito, visitas frequentes de sua casa. Deste núcleo-duro faziam parte os velhos companheiros Mário Ruivo, José Fernandes Fafe, Vasco Vieira de Almeida ou Carlos Monjardino, e também o antigo assessor cultural em Belém José Manuel dos Santos (n. 1955), o jornalista António Valdemar (n. 1936) ou o advogado e seu antigo secretário de estado do Trabalho (no “bloco central”) Vítor Ramalho (n. 1948).