No verão de 1569, há 450 anos, uma população de ratos infetada com a pulga Xenopsylla cheopis invadiu a capital portuguesa após ter viajado do oriente para Portugal num barco com mercadorias. Misturou-se com os ratos da cidade, já contaminados com outra pulga, a Pulex irritans. E foi o princípio de algo que viria a tornar-se muito grave. Primeiro, a Xenopsylla cheopis picou um humano e infetou-o com uma bactéria. Depois, a mesma pessoa voltou a ser picada pela Pulex irritans e também ficou infetada pela bactéria.
Era o primeiro passo para uma onda de mortes que vitimou 60 mil pessoas em oito meses. A bactéria chamava-se Yersina pestis. A mesma que, dois séculos antes, tinha matado até 200 milhões de pessoas em todo o mundo, a temida Peste Negra.
Não era a primeira vez que Portugal batalhava contra a peste. O primeiro surto desta doença no país, em 1348, matou um terço da população portuguesa, explicou ao Observador Jaime Nina, médico no Hospital Egas Moniz e professor no Instituto de Higiene e Medicina Tropical. E opôs dois monarcas: “Quando a peste começou a assolar a cidade, Pedro I quis esconder-se em Sintra porque pensava que assim é que se protegeria a família real e a Coroa. Mas D. Afonso IV achava que o lugar de um rei era ao pé do povo”, conta Jaime Nina. Pedro foi para Sintra com Inês de Castro (um relacionamento muito contestado). Afonso IV ficou em Lisboa. E pouco depois explodiu o conflito familiar que começou com o assassínio de D. Inês, passou pelo Interregno no trono (sem rei no poder) e uma guerra civil no país (a crise de 1383-1385).
Desde esse ano até à Grande Peste de Lisboa houve mais 16 surtos no país, um dos quais, o de 1384, atacou o acampamento do exército de D. João de Castela no cerco de Lisboa, em plena crise dinástica. Nos anos seguintes, condenou à morte a rainha D. Filipa de Lencastre, o rei D. Duarte e os judeus expulsos de Ceuta acabados de se fixar em Portugal, que eram aliás acusados de espalhar a doença pela população.
Mas o pior surto que a capital portuguesa sofreu desde os tempos da Peste Negra foi a Grande Peste de Lisboa, em 1569. Há precisamente 450 anos, desde antes do verão até ao fim do inverno. A culpa, indica Teresa Novo, professora o Instituto de Higiene e Medicina Tropical, foi da falta de higiene nas ruas, da constante movimentação de bens e pessoas para dentro e fora da cidade pelo porto. E da facilidade com que esta bactéria se propaga.
Quatrocentos e cinquenta anos depois, a ameaça da peste ainda não terminou. Na quarta-feira, as autoridades chinesas confirmam que duas pessoas estão a ser tratadas por peste pneumónica no país. É a segunda vez que a doença é detetada em território chinês este ano, depois de um casal ter morrido de peste bubónica após ter consumido o rim cru de uma marmota. Em 2014, uma zona da China foi posta em quarentena depois de uma pessoa ter morrido de peste. E décadas depois da II Guerra Mundial, há países a desenvolver armas biológicas com base na bactéria da peste.
Detetados dois casos de peste pneumónica na China, a forma mais perigosa da doença
Pulgas esfomeadas e uma bactéria teimosa. A ciência da Grande Peste de Lisboa
Segundo a especialista em parasitologia, “a pulga tem a bactéria no tubo digestivo”: “No tubo digestivo das pulgas há uma estrutura chamada pró-ventrículo que funciona como uma bomba que ajuda a sugar o sangue e a expelir a saliva quando elas picam os mamíferos. Nas colónias de pulgas há uma estrutura que parece uma goma e que prejudica o funcionamento do pró-ventrículo. Isso é uma coisa boa para a bactéria porque faz com que a pulga não se consiga alimentar tão rapidamente e faça mais picadas, o que aumenta a probabilidade de a bactéria ser passada para outros mamíferos”, descreve Teresa Novo.
A pulga que melhor cumpre estas características é a Xenopsylla cheopis: “É uma espécie originalmente oriental que se tornou cosmopolita. Costumava infetar apenas os ratos orientais, mas entretanto já pode aparecer em qualquer espécie. Há espécies de pulgas que são bastantes específicas de um hospedeiro — só picam uma espécie de mamífero em particular. Mas esta não. Pica ratos, mas também pica humanos. E isso contribui para a facilidade na disseminação da bactéria da peste“, justifica a professora catedrática.
Esse ecletismo é que pode ter estado na origem da Grande Peste de Lisboa, conclui Teresa Novo: “Provavelmente chegaram ratos infetados com as suas próprias pulgas. E também havia populações de outras pulgas na cidade. Quando começou a haver pulgas da cidade infetadas, a transmissão passou a ser muito mais rápida e fácil entre humanos“.
Tudo começa quando a pulga pica o humano: “A pulga precisa de se alimentar e, para isso, ingere sangue. Espeta um pequeno estilete no mamífero e suga o sangue como se fosse uma palhinha. Ao mesmo tempo, injeta saliva. A bactéria da peste segue à boleia dessa saliva e infeta o organismo dos mamíferos“, conta Teresa Novo. Há outras formas de transmissão, ressalva a professora, como quando alguém que tenha uma ferida mexe em peças de caça infetadas com a bactéria. Mas esses casos são mais raros.
Quando a bactéria entra no organismo humano, ela vai instalar-se no gânglio linfático mais próximo do local da picada — que normalmente são os inguinais, nas virilhas, quando as pulgas picam nos pés ou nas pernas; ou os axilares, debaixo dos braços, se a picada acontecer nos membros superiores. Começa aí a primeira fase da evolução da doença: a peste bubónica. “Os gânglios ficam muito inchados e formam bubões porque as bactérias começam a reproduzir-se no interior”, descreve o médico Jaime Nina. Quando deixa de ter espaço, a bactéria passa da corrente linfática para a corrente sanguínea e começa a circular pelo organismo inteiro. É a peste septicémica.
A terceira fase de evolução da doença, e a mais preocupante de todas, é a peste pneumónica, que ocorre quando a bactéria se instala nos pulmões. É a fase mais perigosa por dois motivos: os antibióticos podem não ser suficientes para a combater. Mas sobretudo porque, quando ela surge, aparece também uma nova forma de transmissão da doença. “Quando alguém tem peste pneumónica já pode passar a bactéria para outras pessoas através dos espirros e da tosse, que é uma forma de transmissão muito fácil e rápida”, justifica Jaime Nina.
De acordo com o médico, um paciente com peste bubónica tem 95% de probabilidade de sobreviver caso seja tratado desde muito cedo com antibióticos. Há 450 anos, quando os antibióticos ainda não tinham sido descobertos, essa probabilidade era de 50%. Na fase de peste septicémica, 30% dos doentes morre mesmo que receba antibióticos — um aumento de 60 pontos percentuais em relação ao século XVI. E nos casos de peste pneumónica, 30% a 40% dos doentes sucumbem à doença, mesmo com tratamento.
É, ainda assim, um avanço descomunal quando comparado com o cenário verificado durante a Grande Peste de Lisboa, quando praticamente todos os doentes morriam. “Na altura”, conta Teresa Novo, “o problema é que as pestes evoluíam quase sempre para pneumónica porque a única solução é tratar os doentes com antibióticos e eles não existiam”.
Alguns truques pareciam ajudar a retardar (ou mesmo estagnar) a progressão da doença. Abrir cortes nos bubões para soltar o líquido repleto de bactérias podia ser uma solução, mas caso o pessoal médico ficasse infetado — o que era altamente provável –, o problema prosseguia. As máscaras com bicos semelhantes aos dos pássaros usadas da altura também tinham um certo nível de eficácia porque filtravam o ar, mas quando a doença se tornava pandémica, de nada serviam. Os médicos começaram a recusar pedidos de ajuda de doentes porque não havia conhecimentos suficientes à época para ajudar fosse quem fosse.
Lisboa parecia entregue à sorte, mas afinal estava na verdade entregue ao tempo. A peste que entrou em Lisboa no verão de 1569 havia de desvanecer na primavera seguinte quando as pulgas que transmitiam as doenças morreram por causa do frio do inverno. “A peste, tal como outras infeções transmitidas por insetos e carraças, são doenças de verão. Os artrópodes dão-se muito mal com o frio e tendem a desaparecer no inverno, voltando, ou não, no verão seguinte”, explica Jaime Nina. Foi assim que a natureza travou a Grande Peste de Lisboa.
Há armas biológicas capazes de repetir a Peste Negra
A primeira vez que a bactéria da peste negra entrou na Europa, vinda da costa este da China e transportada pelas rotas comerciais, pode ter sido em Caffa, o nome que os colonos genoveses davam à atual Teodósia, na Crimeia. Durante o cerco de Caffa em 1347, o exército tártaro, sob o comando de Jani Beg, foi atingido pela Peste Negra e começou a sucumbir. Um desastre que condenou milhares de homens à morte, mas não só: a peste era uma oportunidade, acreditava Jani Beg. Em vez de tentar invadir Caffa, como até ali parecia ser a estratégia, ordenou que se catapultassem os cadáveres dos infetados com a peste por cima das muralhas, para o interior da cidade.
Julga-se que esta terá sido a primeira guerra biológica da humanidade. Mas não foi a última que usou como arma a bactéria Yersina pestis: “Durante a II Guerra Mundial, o Japão lançou uns recipientes de loiça selados e cheios de pulgas portadoras da bactéria da peste numa cidade chinesa. Isso passou despercebido. Perante todo o caos que a guerra tinha trazido ao mundo, quem é que se ia importar com uns pedaços de loiça partida no chão?”, conta Jaime Nina.
A estratégia foi repetida tantas vezes ao longo da II Guerra Mundial que 200 mil a 500 mil pessoas adoeceram com peste. O primeiro ataque foi a 4 de outubro de 1940 em Quzhou, onde duas mil pessoas morreram. Um ano mais tarde, um habitante de Quzhou levou a peste para Yiwu, onde houve mais mil vítimas. Em 1942, o ataque foi repetido em Jinhua e vitimou três mil pessoas. Foi assim até agosto de 1945, quando os russos invadiram a Manchúria e os chineses reduziram a cinzas a Unidade 731, onde estas bombas de louça eram produzidas. O rasto de morte ficou e pode repetir-se.
A hipótese de algo semelhante voltar a acontecer está em cima da mesa, alerta Jaime Nina. “Há confirmação de programas ativos de investigação militar com a Yersina pestis nos Estados Unidos, China e Rússia. Todos os países confirmam, aliás, que mantêm essa armas — ainda que apenas para fins defensivos. Também há a suspeita de desenvolvimento de armas biológicas com a bactéria da peste na Coreia do Norte, no Irão e em Israel”, indica o médico. Ou seja, algumas das maiores potências mundiais estão preparadas para um conflito bioterrorista. E o ataque — ou defesa — pode ser recomeçar um surto desta peste mortífera.
A bactéria da peste está a tornar-se resistente a antibióticos
De resto, mesmo sem intervenção humana direta, e passados setecentos anos desde que a pandemia da Peste Negra terminou, em 1553, a Yersina pestis continua a ser ameaçadora para algumas regiões do planeta, alerta Jaime Nina. Em Madagáscar, por exemplo, houve dois surtos de peste já no século XXI: uma em 2014 que vitimou 40 pessoas; e outra em 2017, que matou 221 pessoas. E há dois detalhes que tornam esses surtos ainda mais temíveis: se sair de Madagáscar, a bactéria pode chegar facilmente a países como África do Sul, Moçambique, Tanzânia, Quénia ou Etiópia. E daí pode espalhar-se para a Europa.
Na verdade, esse problema já se tornou real. A Organização Mundial de Saúde contabilizou mais de 3.250 casos de peste por todo o mundo entre 2010 e 2015. Quinhentas e oitenta e quatro pessoas morreram. Mais: nos últimos 20 anos, quase 50 mil pessoas foram infetadas pelo vírus da peste, obrigando a OMS a lançar o alerta: após anos de dormência, a peste é agora uma doença reemergente.
Porquê? Os estudos mais recentes indicam que algumas dessas bactérias tornaram-se multirresistentes aos antibióticos. Ou seja, é possível que, em alguns casos, não se conheça qualquer remédio para a peste. Aconteceu em Ambalavao, onde uma idosa que trabalhava no campo foi ao posto sanitário local porque se estava a sentir mal, cheia de febre e com o que parecia um abcesso numa das regiões inguinais. “O agente sanitário, com formação mínima, com uma agulha e seringa picou o dito abcesso, aspirou uma amostra para um tubo, selou-o e enviou-o para a capital para diagnóstico. E deu à senhora o único antibiótico que tinha”, conta Jaime Nina.
Em Antanarivo, os cientistas “apanharam um susto”, prossegue o médico: a amostra foi identificada como a Yersinia pestis, o agente etiológico da peste. E não parou por aí: “A amostra foi enviada, com todos os cuidados, para o Instituto Pasteur de Madagáscar, ali ao lado, onde foi confirmado o diagnóstico, testada a sensibilidade ou resistência aos antibióticos. E o resultado foi o segundo susto. A estirpe era resistente à quase totalidade dos antibióticos testados“, recorda o médico do Egas Moniz.
O assunto é tão grave que a sede do Instituto Pasteur, considerado um dos melhores centros laboratoriais do mundo em matéria de doenças infecciosas, enviou para Madagáscar uma equipa de cientistas. “Vão todos à procura da senhora. O agente sanitário que a acudiu explicou que ela já estava bem e que até devia estar a trabalhar no campo naquele momento”, prossegue Jaime Nina. Quando chegam ao terreno da mulher, os relatos do agente sanitário confirmam-se: “Estava a trabalhar no campo, aparentemente recuperada totalmente”.
Quando a equipe faz a revisão do caso, constatou que o antibiótico que o agente sanitário dera à senhora fora cloranfenicol, um antibiótico antigo, muito barato, raramente utilizado pelas equipas médicos. “Era o único que tinha”, explica o agente. O cloranfenicol estava tão esquecido entre as equipas mais especializadas que ninguém testou a sensibilidade da bactéria a esse antibiótico, nem em Madagáscar, nem em França. Mas, de facto, era um dos poucos à qual aquela estirpe de Yersinia pestis era sensível. Felizmente, uma boa notícia.
Como combater um surto de peste
O último surto registado em Portugal foi em 1899 no Porto, quando a bactéria chegou numa comunidade de ratos e pulgas vinda de Macau. Luís da Câmara Pestana, um dos pioneiros da bacteriologia, era médico do Hospital de São José quando foi chamado a integrar comissão de serviço público para estudar o surto de peste no Porto. Enquanto fazia trabalho de laboratório, Câmara Pestana conseguiu isolar a bactéria mas acabou infetado por ela, tendo regressado já doente para Lisboa. Foi isolado no Hospital de Arroios, onde veio a morrer. Entretanto, Ricardo Jorge conseguiu controlar a doença. E o surto desvaneceu-se.
Como? Em primeiro lugar, conhecendo a bactéria. A Yersina pestis não resiste perante cinco situações: se exposta a uma temperatura de 56ºC durante mais de 15 minutos; quando exposta à luz solar, ou simplesmente a um raio de luz ultravioleta, por quatro horas; se colocada num processo de secagem à temperatura ambiente; se passar meses ou anos num ambiente muito frio em tocas de roedores; e se colocada em álcool, iodo ou peróxido de hidrogénio.
São as pulgas portadoras desta bactéria (e nãos aos ratos infetados) que se deve atacar primeiro na hora de exterminar um surto, alerta Jaime Nina: “Devem usar-se inseticidas para matar as pulgas. Só quando elas estiverem todas mortas é que se atacam os ratos. Se fizermos ao contrário, as pulgas vão deixar as populações de ratos e atacarão diretamente os humanos ou outros mamíferos. E o problema prossegue”, explica. Entretanto, há que isolar os casos confirmados e suspeitos de peste, em qualquer das fases da doença.
E vacina, existe? Sim, mas não é a arma mais eficaz contra a doença. “Essa solução passa por injetar a bactéria inativada no organismo das pessoas em risco. Mas é uma vacina com várias doses, de efeito fugaz — o que exige reforços frequentes — e que oferece uma proteção apenas parcial e só contra a peste bubónica”, termina Jaime Nina.
450 anos depois, a história ainda não passou à história.