A circunstância de a Europa estar envolvida com a preocupação com a Covid-19 não devia impedi-la de celebrar com maior visibilidade a importante data que hoje passa: 70 anos sobre a Declaração Schuman, também conhecida por Plano Schuman. Em bom rigor, foi essa a primeira pedra da integração europeia, foi a 9 de Maio de 1950 que a integração europeia começou.
O Plano Marshall começara a produzir visíveis efeitos positivos na recuperação económica dos estados europeus mais destroçados com a Segunda Grande Guerra. A OTAN, criada em Abril de 1949, assegurava aos estados que a tinham fundado a cooperação militar necessária para garantir a sua segurança perante o bloco soviético que se ia formando. Nesse ano de 1949, a Lei Fundamental de Bona (hoje, a Constituição da Alemanha) viera instituir um sistema de governo que se revelaria muito equilibrado, ao contrário da Constituição de Weimar, de 1911, e, ao mesmo tempo, viria definir um, para a época, muito ambicioso sistema de proteção de direitos fundamentais para fazer esquecer o desprezo a que esses mesmos direitos haviam sido votados durante a Guerra em solo alemão.
Também em 1949 havia sido criado, num quadro ainda intergovernamental, o Conselho da Europa, que, por um lado, apareceu como uma organização internacional de âmbito europeu votada para a consolidação da Democracia no continente, mas, por outro, nasceu de uma iniciativa britânica visando evitar na gestão da paz e do progresso na Europa um quadro supranacional tal como Churchill havia proposto quando na Universidade de Zurique defendeu, em 1946, a criação dos “Estados Unidos da Europa”.
Foi nesse contexto histórico que a França, pela boca do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Robert Schuman, faz hoje 70 anos, desafiava a Alemanha, a Itália e os três estados do Benelux (a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo) a porem em prática um projeto de paz e de desenvolvimento. De paz: “foi porque a união da Europa não foi antes alcançada que tivemos a Guerra”, disse Schuman. De “solidariedade e desenvolvimento”, acrescentou ele: da execução do Plano resultaria uma Europa “assente na paz, na solidariedade europeia e no progresso económico e social”. E para tudo isso propunha um quadro supranacional, ou seja, sugeria que esse esforço em conjunto assentasse na limitação da soberania dos Estados a favor de uma “Alta Autoridade”. Os propósitos não enganavam: o Plano dava “os primeiros passos concretos para uma federação europeia indispensável à preservação da Paz”, embora não se explicasse o que se entendia aí por “federação”.
O que já foi feito
É sabido que do Plano Schuman nasceu a primeira comunidade, a CECA. Logo a seguir os 6 tentaram criar uma Comunidade Europeia para a Defesa (CED) que, se tivesse resultado, teria porventura permitido à Europa ter há 70 anos o que ela não conseguiu criar até hoje: uma defesa própria. Mas o Parlamento francês não aprovou para ratificação o tratado que criaria essa CED e esse projecto ficou na gaveta. Por conseguinte, foi esquecido o projecto de um ambicioso tratado de uma Comunidade Política Europeia, que tinha como pressuposto a entrada em vigor da CED. Tudo isso fez os 6 voltar atrás e contentarem-se em ficar pela Economia, somando à CECA a CEE e a CEEA ou Eurátomo, criadas por dois tratados assinados em Roma a 25 de março de 1957.
Sabe-se qual foi o caminho seguido pela Europa desde então. Lenta mas progressivamente, a Europa, depois de muitos séculos de duros conflitos, tornou-se num continente de paz e o espectro de uma terceira guerra mundial ficou para sempre afastado da Europa, que se manteve distante da Guerra da Coreia que semanas depois do Plano Schuman eclodia no Pacífico. No que toca ao desenvolvimento económico e social, a União Europeia (fórmula atual para designar as então Comunidades) tornou-se há muito na primeira potência comercial do mundo e os seus estados membros alcançaram um nível de progresso e de bem-estar invejável se o compararmos com os estados europeus que ficaram dentro do império soviético ou sob a sua órbita ou com os Estados da África, da Ásia e da América Latina.
Até ao Tratado de Maastricht a integração tinha sido predominantemente económica. Mas com esse Tratado a integração alargou-se a matérias sociais, culturais e políticas. Foi instituída a cidadania europeia que, é verdade, não consistia numa dual citizenship, como acontece nalguns estados federais, mas que passou a ser um importante complemento da cidadania nacional dos Estados membros. Ela trouxe aos cidadãos dos estados membros um sentimento de pertença política à União, pelo vasto conjunto de direitos que lhes atribuiu, designadamente, a livre circulação para eles e para as suas famílias, e, de modo cruzado, direitos políticos aos cidadãos em função do local da sua residência.
Tem sido assim possível a muitos portugueses ocuparem, por eleição das populações locais, lugares de gestão nas autarquias locais na França, no Luxemburgo ou na Alemanha, incluindo presidências de câmaras em municípios muito importantes. Outro direito que merece destaque dentro da cidadania é o da proteção diplomática e consular assegurada aos cidadãos de um estado por representações diplomáticas ou consulares de qualquer outro Estado membro em qualquer parte do mundo. Os cidadãos portugueses têm sido muito beneficiados por esse direito, devido ao não grande número de embaixadas e consulados portugueses, mesmo honorários, pelo mundo fora. E instituiu-se a possibilidade da criação de partidos políticos a nível europeu como forma de eles exprimirem uma “consciência politica europeia” (artigos 10º, nº 4, do Tratado da União Europeia – TUE — e 224º do Tratado de Funcionamento da União Europeia — TFUE).
As Comunidades tornaram-se cedo num modelo de Liberdade e Progresso para os estados situados para além da antiga Cortina de Ferro, pelo que tiveram uma influência muito grande na libertação e democratização de todo o Leste europeu e, a começar, na queda do Muro de Berlim e na consequente reunificação da Alemanha e, por via disso, no fim da guerra-fria. Com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, a União passou a assegurar aos seus cidadãos um “espaço de liberdade, segurança e justiça”, dotado de meios adequados à prevenção e repressão do crime à escala da União.
Entretanto, a União tornou-se num importante ator global, tendo hoje assento em todos os Centros políticos em que se discute o futuro da Humanidade. E foi sempre beneficiando muito do facto de dois dos seus Estados membros, hoje um, serem membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A partir de 1999-2002, passou a possuir uma moeda única que rivaliza com o dólar como primeira moeda para o comércio e o investimento à escala mundial. Ou seja, o processo de integração avançou de uma mera zona de comércio livre, atingida em 1970, para um Mercado Único ou Interno, obtido em 1993, embora ainda não acabado, e, para alguns Estados, para uma União Económica e Monetária, com, como se disse, uma moeda única federal embora enquadrada num modelo institucional e político muito longe do modelo financeiro e monetário federal do tipo alemão ou norte-americano.
Por seu lado, as iniciais três Comunidades evoluíram para uma única União supranacional (curiosamente, com o dedo de Portugal através do Tratado de Lisboa), com muitos traços federais, embora o caráter intergovernamental da Política Externa e de Segurança Comum obrigue esta a manter-se longe do Tratado supranacional (o TFUE) e a conter-se dentro dos limites de um Tratado intergovernamental (o TUE). Foi isso que conduziu a União à situação desprestigiante de não ter conseguido condenar a Rússia pela maior violação do Direito Internacional na Europa depois do termo da Guerra-fria, ainda por cima junto às suas fronteiras: a ocupação da Crimeia.
Todavia, o projeto de integração continua a merecer a adesão de um número crescente de estados. De 6 nos anos 50 passaram a 28 em 2013, com a peculiariedade de entre 2004 a 2007 terem entrado de um jacto 12 estados, dos quais 10 poucos anos antes pertenciam ao Império Soviético ou ao não menos feroz estado autocrático jugoslavo. Ainda hoje há quem atribua as dificuldades que a União atualmente enfrenta a esse maciço e súbito alargamento, ainda por cima a Estados cujas estruturas políticas e económicas nem sempre se mostravam aptas a adaptarem-se ao ritmo e ao avanço da integração dos demais. Mas sem razão.
A entrada desses Estados para a União, na altura em que ela ocorreu e não mais tarde, constituía uma imperiosa necessidade para a consolidação da Democracia nesses Estados. As razões que levaram as Comunidades a aceitarem a adesão de Portugal e da Espanha em 1986 (a consolidação da democracia dos dois estados pouco depois de se terem libertado de regimes autoritários de direita, embora ambos não estivessem preparados para a adesão) eram as mesmas que levavam a que em 2004, 2007 e 2013 a União tivesse que aceitar 11 estados que cerca de 20 anos antes se haviam libertado de regimes ditatoriais comunistas.
O Brexit em nada alterou este estado de coisas. É certo que ele deixará mossas tanto no Reino Unido como na Europa mas nem ele provocou o efeito de dominó que era dado como certo e desejado por alguns profetas da desgraça nem a já sensível perceção da parte dos britânicos de que, num mundo cada vez mais global, vão ficar cada vez mais isolados e, com isso, vão perder influência na geo-estratégia mundial, leva a excluir que, talvez mais cedo do que muitos pensam, eles tentarão uma nova e estreita aproximação à União Europeia, em moldes que, todavia, muito dificilmente serão idênticos aos anteriores.
Portugal é um caso de laboratório de sucesso do projecto europeu. Aderiu às Comunidades depois de um muito difícil processo de adesão, ainda mais dificultado com a simultaneidade do processo de adesão da Espanha. Começou a receber volumosas ajudas de pré-adesão muito antes da assinatura do Tratado de adesão de modo a adaptar no mínimo as suas então arcaicas estruturas económicas e sociais ao adquirido comunitário. Mesmo assim beneficiou de muito longos períodos de transição.
De facto, quando aderiu em 1986, o país encontrava-se numa situação de grande pobreza, tinha sofrido dois resgates, em 1978 e 1983, e vivia um clima de grande instabilidade política, com governos que, desde 1976 até 1987, nenhum deles acabou a legislatura e, alguns deles, duraram poucos meses. Mas com a adesão o país sofreu um enorme impulso no seu desenvolvimento económico, social e cultural, na sua abertura ao mundo industrializado, no reforço das suas relações com os estados e povos de expressão portuguesa, na disponibilidade de meios para o progresso na ciência, na investigação e na tecnologia, no incremento das suas exportações, no acesso dos seus jovens a grandes centros universitários ou de investigação através dos programas Erasmus e outros, e, sobretudo, viu consolidada a sua democracia, reganhada com a Constituição de 1976.
Aquelas Comunidades que nasceram em 1951 e 1958 com 6 estados cresceram, portanto, para os atuais 27, estando mais 4 a negociar atualmente a sua adesão.
A União Europeia tem desde o início das Comunidades um sistema jurídico-político original, que tem evoluído com o tempo mas que, no essencial, lhe tem permitido obter um equilíbrio entre a intergovernamentalidade, baseada nas parcelas da soberania que os estados ainda conservam, e das quais não abdicam, e a integração, que tem vindo a aprofundar-se em cada revisão dos Tratados, com cada vez mais laivos de um federalismo cooperativo e descentralizado, à imagem confessada do federalismo alemão, criado, com tanto sucesso, pela referida Lei Fundamental de Bona, como explica vasta e muito rica doutrina jurídica. Esse equilíbrio tem agradado a gregos e a troianos. A intergovernamentabilidade encontra tradução sobretudo no facto de os estados continuarem a ser (para usarmos uma expressão que entrou para o jargão jurídico da União), “os donos dos Tratados”, querendo-se com isso significar que são eles que criam os Tratados, os revêm e os ratificam, tudo isso por unanimidade, e no facto de as decisões políticas mais importantes para a União continuarem a ser tomadas por unanimidade dos Estados.
Por sua vez, a integração, que, como se disse, se tem vindo a aprofundar com cada revisão dos Tratados (e, portanto, com a aquiescência unânime dos estados), concretiza-se na passagem progressiva de atribuições dos estados para a União, algumas das quais, muito poucas, embora importantes, são já da competência exclusiva da União e estão elencadas nas cinco alíneas do artigo 3º do TFUE. Todas as outras atribuições cometidas à União (as partilhadas entre a União e os estados, do artigo 3º do TFUE, e as complementares, dos artigos 5º e 6º do mesmo Tratado) regem-se pelo princípio da subsidiariedade, ou seja, na sua prossecução os estados têm prioridade e a União só se pode substituir a estes se demonstrar que é capaz de as prosseguir melhor que os Estados.
É importante deixar registado para a História, como esperamos que tenha ficado a constar dos arquivos do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, que a subsidiariedade foi incluída nos Tratados com forte influência de Portugal, já que ela foi aprovada na Cimeira de Maastricht, em Dezembro de 1991, mas depois foi redigida por Portugal quando lhe coube, no início da primeira presidência portuguesa das Comunidades, em Janeiro e Fevereiro de 1992, dar forma escrita ao Tratado de Maastricht. Ela ficou a constar então do artigo 3-B, parágrafo 2, do Tratado CE.
Também coube a Portugal a coordenação, na mesma altura, da redação da Declaração sobre a aplicação do princípio da subsidiariedade, que concretizava aquele artigo do Tratado CE mas que, todavia, só viria a ser aprovada no semestre seguinte, melhor, na reunião do Conselho Europeu de Edimburgo, de Dezembro de 1992, durante a presidência do Reino Unido. Tudo isso foi fruto do facto de em 1991, por Despacho publicado no Diário da República, o Conselho de Ministros, com o empenho pessoal do primeiro-ministro e do ministro dos Negócios Estrangeiros da época, ter criado uma Comissão Consultiva do primeiro-ministro para a Integração Europeia, com o encargo de aconselhar o Governo na preparação da negociação da Cimeira de Maastricht e durante o semestre da Presidência portuguesa das Comunidades.
Essa Comissão era composta por antigos ministros dos Negócios Estrangeiros, das Finanças e do Plano, e por académicos especialistas em questões europeias, tendo sido assessorada por distintos diplomatas, e foi presidida por um grande homem e um notável economista e que em democracia já fora governador do Banco de Portugal e ministro em muitos e difíceis Governos: o professor Jacinto Nunes. Tivemos a honra de fazer parte dessa Comissão Consultiva e publicámos um opúsculo que foi fruto especificamente do nosso contributo para a subsidiariedade no Tratado de Maastricht (O princípio da subsidiariedade no Direito Comunitário após o Tratado da União Europeia, Coimbra, Almedina, 1995). O MNE tem as actas dessa Comissão.
Para que a subsidiariedade funcione bem, e os estados tirem dela o melhor proveito possível de forma a que possam com isso conservar o maior âmbito possível da sua soberania, é necessário que eles utilizem os meios que os Tratados criaram para o controlo da subsidiariedade pelos Parlamentos nacionais, o que nem todos os Estados se têm preocupado em fazer bem e com regularidade.
Mas a integração, ao nível que já atingiu hoje, depois do Tratado de Lisboa, traduz-se em muito mais. Traduz-se também na existência de um embrião de um Congresso bicameral, composto pelo Parlamento Europeu, como câmara eleita pelos cidadãos europeus e que, por isso, os representa, como diz o artigo 14º do TUE (e que constitui uma réplica da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos ou do Bundestag alemão), e pelo Conselho, como órgão que representa os Estados, melhor, os governos dos Estados, como estabelece o artº 16º, nº 2, do mesmo TUE (e que constitui um simile do Senado dos Estados Unidos ou do Bundesrat alemão). As duas câmaras co-legislam, embora, ao contrário da Câmara dos Representantes e do Bundestag, o Parlamento Europeu tenha menos poderes do que o Conselho. A inversão dessa posição atirar-nos-á para um modelo legislativo federal puro. É esse o processo legislativo ordinário na União.
Além disso, o Parlamento Europeu exerce um controlo sobre todos os outros órgãos políticos da União, o que assegura um controlo democrático sobre o exercício do poder de decisão da União. A integração concretiza-se ainda no desenho que os Tratados fizeram da Comissão como uma réplica, na sua composição e no seu funcionamento, do governo de um estado, investida formalmente pelo Parlamento Europeu, e sendo o presidente da Comissão eleito por ele, por sufrágio pessoal e direto, em função dos resultados das eleições para o Parlamento, o que não acontece com nenhum chefe de governo de qualquer dos estados membros da União. O presidente tem a coordenação política de toda a Comissão e responde por ela, como acontece com o primeiro-ministro de qualquer estado membro em relação ao respetivo Governo.
A integração concretiza-se ainda no poder para a União de aplicar sanções políticas aos estados que violem, ou ameacem violar, qualquer dos valores enunciados, como cerne da identidade constitucional da União, no artigo 2º do TUE. É o que está a ser estudado atualmente quanto à Polónia e à Hungria.
A integração também conseguiu a criação de um sistema de justiça amplo, centrado no Tribunal de Justiça, e capaz de assegurar o primado do direito nas relações intra-União, inclusivamente garantindo a execução rápida e eficaz das respetivas sentenças, ainda que carecido de ampliação do acesso dos particulares àquele tribunal. Também edificou um completo sistema de proteção dos direitos fundamentais, que hoje gira à volta da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (estranhamente muito pouco invocada em Portugal mesmo ao nível do Parlamento), que compila direitos de várias fontes de Direito Internacional assim como das tradições constitucionais dos estados membros, para além de criar, ela própria, direitos novíssimos, acabando por garantir o nível mais alto de proteção assegurado para cada direito por cada uma dessas fontes. É justo dizer-se, como reconhecem os especialistas, que o rol dos direitos fundamentais por essa forma arrolado suplanta as constituições nacionais, mesmo as mais evoluídas. Daí justamente a nossa estranheza por ela não ser invocada em Portugal nem pelo poder político, nem pelos partidos, nem por associações cívicas, nem pelos tribunais.
Tudo o que se acaba de dizer não é pouco para 70 anos, sobretudo, como se depreende do que ficou dito, quando se teve que negociar muitos desses progressos com a resistência das soberanias dos Estados.
O muito que falta fazer
Mas se tudo isto foi alcançado ao longo destes 70 anos, e foi muitíssimo, ainda há muito mais para fazer. E o caminho a percorrer ainda é longo e difícil, mas não há alternativa para ele. Temos, pois, que o desbravar. E aí temos que pedir tanto à União como aos estados que andem para a frente porque os atrasos são imputáveis tanto àquela como a estes.
Da União, os estados e, com eles, os seus povos e cidadãos, têm o direito de esperar maior solidariedade. Foi na solidariedade que a integração começou há 70 anos. É urgente agora que os dirigentes políticos da União recuperem o espírito dos pais-fundadores. Há muito que há uma Europa a várias velocidades, o que os Tratados oficializaram com a designação de “cooperações reforçadas”, que hoje estão disciplinadas nos artigos 20º do TUE e 326º a 334º do TFUE. Mas é preciso que a União ajude os Estados, e que estes, por sua vez, façam o que lhes compete, para que o fosso entre os mais ricos e os mais pobres se atenue.
Os órgãos políticos da União não têm sabido garantir a superioridade do interesse geral da União, como os Tratados lhes impõem, sobre os interesses parcelares de grupos de estados. Estes grupos de estados correm o risco de se degladiarem entre si, o grupo dos estados do norte contra o dos estados do sul, o grupo dos ricos contra o dos pobres, etc. Os atuais dirigentes da União, e os dirigentes dos Estados enquanto decidem pela União, já estão etariamente longe daqueles que lançaram as bases da integração e para os quais aquilo que unia os estados era muito mais forte do que aquilo que os separava.
Fazem falta hoje políticos que se assumam como herdeiros não só dos fundadores, Jean Monnet, Adenauer, De Gasperi, Spaak, mas também dos mais modernos, Kohl, Mitterand, Thatcher ou Delors. Temos que fazer tudo para que depressa a Europa recupere o espírito de que ela é de todos por igual e que o fracasso do projecto europeu ou o seu retrocesso terá, para todos e não apenas para alguns, consequências devastadoras no domínio da paz, do desenvolvimento e da defesa contra os poderes emergentes no quadro da globalização. Rendermo-nos à subordinação da Europa à China, que não tem valores, aos Estados Unidos, que não têm rumo, ou à Rússia de Putin, seria renunciarmos a deixar às gerações vindouras uma Europa fundada nos valores que a União escolheu pelo Tratado de Lisboa para o artigo 2º do TUE, a começar pelo primado da Pessoa Humana, da sua dignidade e da sua liberdade.
Mas também os estados têm de assumir a sua quota parte nos acidentes de percurso. A solidiariedade não é um movimento de sentido único, ela é sinalagmática, isto é, recebe-se mas também se dá. Os estados inscreveram essa ideia nos Tratados como obrigação de recíproca “cooperação leal” entre eles e a União (artigo 4º, nº 3, do TUE). Os estados devem exigir da União tudo aquilo a que eles têm direito pelos Tratados mas, em contrapartida e na devida proporção, têm a obrigação de cumprir todos os deveres a que estão vinculados pelo Direito da União. Sem direitos não há deveres mas também sem deveres não há direitos – como em tudo na vida.
Por outro lado, os Estados não se podem queixar de a União não ter competência e não agir em matérias importantes. São eles que escrevem e revêm os Tratados e, por isso, foram eles que não quiseram atribuir nos Tratados algumas atribuições à União em dimensão adequada às necessidades atuais, como por exemplo, na matéria da Saúde, da Educação, da admissão de nacionais de Estados terceiros. Por isso, repetimos, quando a União peca por omissão nessas matérias a responsabilidade disso deve ser atribuída aos estados e, enquanto a União não tiver atribuições adequadas nessas matérias, é aos estados que cabe prover às necessidades dos seus cidadãos nesses domínios.
O que há, portanto, que fazer é, no quadro de uma revisão normal ou simplificada dos Tratados, regulada no artigo 48º do TUE, ou no âmbito do poder quase-constituinte que o artigo 352º do TFUE confere ao Conselho, ou mesmo dentro do poder que fica para os Estados no âmbito do desenvolvimento que eles devem dar aos atos legislativos da União (regulamemtos e diretivas), os estados alargarem as atribuições da União ou os poderes dos seus órgãos de modo a não ficarem sem resposta os desafios que o interesse comum ou geral da União coloca a esta e aos seus cidadãos numa dada fase concreta da vida desta.
Especial importância tem de ser dada à reforma do Zona Euro. O Conselho Europeu deliberou avançar com ela na sua cimeira de Dezembro de 2012, pedindo aos estados contributos nesse sentido. Nem todos os estados corresponderam a esse pedido. Mais tarde, o presidente Juncker enquadrou essa reforma no seu Plano sobre o Futuro da Europa. Em 2017, por encargo expresso do presidente da Comissão, um grupo de oitenta académicos de todo o mundo, e que a Comissão já distinguira com Cátedras Jean Monnet, apresentou uma série de medidas no sentido dessa reforma e, nessa linha, no sentido do aprofundamento da União Política [Fausto de Quadros e Dusan Sidjanski (coordenadores), The Future of Europe – The Reform of the Eurozone and the Deepening of Political Union, Lisboa, 2017]. Juncker, Dombrovskis e Macron pronunciaram-se expressamente sobre o bem-fundado dessas propostas.
Não se pode atrasar mais a reforma da Zona Euro sem prejuízo de se causar danos irreparáveis à integração europeia. A União não pode continuar com uma moeda que é comum a alguns estados mas que pouco tem de moeda única federal. Impõem-se medidas muito urgentes para que o Euro possa resolver os graves problemas que a União Monetária coloca aos estados que dela fazem parte:
concluir o Mercado Interno e a União Económica;
aprofundar a União Bancária; criar um orçamento próprio para a Zona Euro;
mais importante, aproximar o BCE de um banco federal, seja segundo o modelo norte-americano, o modelo alemão ou um modelo misto;
reforçar a legitimidade democrática no seio da Zona Euro através da participação do Parlamento Europeu na União Monetária.
E quando se falar de eurobonds há que ter o cuidado de verificar previamente se não haverá, como há, estados que queiram que, em face das respetivas constituições, a sua participação nelas seja previamente aprovada pelos respetivos parlamentos nacionais, o que pode não ser fácil, e se o Tribunal Constitucional Federal alemão não entenderá, porque em parte já entende, que a participação da Alemanha nelas levanta problemas de constitucionalidade. Recorde-se que, talvez por menos, os Tratados de Maastricht e de Lisboa encontraram dificuldades, embora felizmente ultrapassadas, no Tribunal Constitucional Federal alemão.
Enfim, e para concluir. Há que ter a seriedade de reconhecer que a integração europeia, iniciada com o Plano Schuman, mudou muito profundamente o panorama político, económico e estratégico da Europa e do mundo. Mas, ao mesmo tempo, é preciso ter a humildade de constatar que há muito mais que fazer, e depressa, para que os cidadãos e os povos europeus alcancem os níveis de segurança, de progresso e de bem-estar que então lhes foram prometidos e, depois, sucessivamente renovados. Numa palavra, eles têm que se convencer de que vale a pena continuar a construir a Europa.
E os políticos e os opinion makers, que nisso acreditam, não se devem cansar de o afirmar e defender sem tibiezas e utilizando uma linguagem que, simultaneamente, seja correcta, verdadeira e clara para a opinião pública. Mas há que pedir àqueles que negam a necessidade do aprofundamento da União, àqueles que defendem o fim do Euro e àqueles que pretendem a saída de Portugal do Euro e da União a honestidade intelectual de explicar que alternativas propõem para essas escolhas num mundo e numa época em que mesmo os estados grandes e ricos procuram a agregação e a integração para fazerem frente à globalização.
E não se deve ter medo das palavras “federal” nem “federalismo”. A União há muito que, pela mão dos estados, que, volta a recordar-se, são quem escreve e revê os Tratados, tem traços estaduais e federais sem por isso ser, nem ter de ser, nem um estado nem uma federação.
Fausto de Quadros é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Cátedra Europeia Jean Monnet ad personam em Direito Constitucional Europeu