A nova direção do SNS teve dificuldades em gerir, sem arestas, uma das primeiras contratações que fez. Fernando Araújo, novo CEO do SNS, pediu em novembro à secretaria-geral do Ministério de Saúde que contratasse uma empresa privada específica, a mesma do até então seu assessor na administração no Centro Hospitalar São João. O Ministério fez assim um ajuste direto à empresa Kicab, sem “redução do contrato a escrito”, já que o valor foi de 9 mil euros (ficando a mil euros dessa obrigação). A assessoria de comunicação, que durou 25 dias, custou à nova direção do SNS 360 euros por dia. Depois disso, contou com os serviços do mesmo assessor durante o mês seguinte. De borla.
O contrato inicial — de 9 mil euros — acabou a 31 de dezembro, mas Rui Neves Moreira exerceu funções de assessoria na nova direção do SNS — como podem atestar vários órgãos de comunicação social com quem manteve contacto, incluindo o Observador — durante todo o mês de janeiro e início de fevereiro. Isto criou, à partida, um problema legal: ao não ter contrato, o assessor (Rui Neves Moreira) e a sua empresa (a Kicab) não estavam sujeitos ao dever de confidencialidade, além de terem acesso a informação privilegiada. Há historial sobre esta matéria na Administração Pública, em particular na Administração Central, quando um consultor e amigo do primeiro-ministro, Diogo Lacerda Machado, exerceu funções sem contrato e António Costa foi forçado a firmá-lo para garantir que o Estado era defendido.
A nova direção do SNS justifica, em resposta ao Observador, que, ao contrário do que acontecera em dezembro, Rui Neves Moreira exerceu funções em janeiro por via do protocolo que a direção do SNS tem com o Centro Hospitalar de São João. A empresa (a Kicab), também em resposta ao Observador, reiterou que o próprio Conselho de Administração do São João solicitou “o apoio pontual de assessoria de imprensa à DE-SNS, ao abrigo de um protocolo de cooperação estabelecido entre as instituições que abrange várias áreas, serviços e recursos do hospital”.
É aqui que voltam os problemas. O protocolo existe, mas não prevê — ao contrário do que diz a empresa e a DE-SNS — qualquer cedência de serviços de assessoria de imprensa ou comunicação. O Observador solicitou o documento à direção nacional do SNS que, de forma transparente, o cedeu. No entanto, ao analisar o documento, é possível constatar que a única referência à palavra comunicação é quando se admite que sejam alocados “recursos e Serviços de Sistemas de Tecnologias de Informação e Comunicação”. Os chamados STIC são, porém, serviços na área informática e não na área da assessoria de imprensa ou comunicação.
Ainda assim, a direção executiva do SNS insiste que, tanto aquele instituto, como o hospital, fizeram outra leitura: “A interpretação de ambas as partes que firmaram o protocolo de cooperação (duas entidades públicas do SNS), sobre a disponibilização de ‘recursos e serviços de Sistemas e Tecnologias de Informação e Comunicação’, seria que englobaria o suporte de comunicação interna e externa.”
Questionado sobre o que são as TIC do ponto de vista técnico, Miguel Correia, professor do Instituto Superior Técnico e especialista em engenharia informática, explica ao Observador que “Tecnologias de Informação e Comunicação significa computadores, é uma área que trata da comunicação entre computadores, 3G, 4G, 5G, não tem nada a ver com comunicação empresarial. Não é uma comunicação entre pessoas, mas sim tecnológica, entre computadores”.
Um outro especialista em engenharia informática contactado pelo Observador diz ser claro que “a assessoria claramente não cabe nos serviços de Sistemas e Tecnologias de Informação e Comunicação”. Um terceiro especialista em engenharia informática também ouvido pelo Observador diz que estes serviços de TIC são “na área da informática e da computação”, mesmo que haja algumas “zonas coincidentes” com a comunicação e o marketing, por exemplo em alguns pontos da gestão de redes sociais.
Questionada a explicar o porquê de ter uma interpretação que não tem cabimento jurídico e técnico, a direção do SNS limitou-se a reenviar a resposta que já tinha feito chegar ao Observador no dia anterior.
A justificação dos valores: assessoria teve o trabalho “mais exigente” do SNS
Voltando ao contrato que foi pago (e que tem cobertura legal), o tal de 360 euros por dia, tanto a empresa como a direção executiva do SNS justificam o valor com o volume de trabalho que o arranque de uma entidade de raiz exige. “A necessidade, desde o seu início, de transmitir informação para os profissionais de saúde e para os cidadãos, sobre as ações, medidas e decisões, foi determinada como um eixo central e, na ausência de recursos internos, teve de recorrer à prestação de serviços de uma entidade com experiência na área”, explica a direção executiva do SNS.
A direção liderada por Fernando Araújo diz que “o trabalho de assessoria de imprensa da DE-SNS, nomeadamente na fase de criação da entidade, foi talvez o mais exigente de todo o universo do SNS“. Tal como a Kicab, a direção executiva lembra que foi neste período que se “preparou e executou a Operação ‘Nascer em Segurança no SNS’, para a época de Natal e de Ano Novo, envolvendo todos os blocos de partos das várias regiões, com uma componente de comunicação de elevada exigência e que teve sucesso reconhecido.”
O que diz o protocolo: São João cobra à direção do SNS 11 mil euros por mês
Ao utilizar edifícios do Hospital de São João para instalar a nova entidade, Fernando Araújo, novo CEO do SNS que antes ali trabalhava, não teve de mudar de local de trabalho — apenas de sala. A direção executiva do SNS tem apresentado este protocolo de colaboração com o CHUSJ como um exemplo de poupança, mas não explicita se foram realizados cálculos de custos noutro local.
Em resposta enviada ao Observador, a direção executiva do SNS diz que o facto de atualmente se encontrar sediada no Hospital São João evitou “contratos com empresas privadas, de valores económicos elevados“. Ainda assim — por ceder o espaço e “mobiliário em segunda mão e material informático, que existia disponível” — a direção liderada por Fernando Aráujo tem de pagar onze mil euros (mais IVA) por mês à entidade que geria até assumir o novo cargo.
Os onze mil euros por mês incluem o uso de vários gabinetes e salas de reuniões, que fazem parte do complexo do Centro Hospitalar de São João, como se pode verificar nas imagens abaixo.
Os onze mil euros mensais incluem ainda serviços de “limpeza, segurança e estruturas de apoio, como em termos de sistemas de informação e comunicação e de instalações e equipamentos”. O protocolo especifica todo o material que a direção nacional do SNS está a utilizar e que é propriedade do São João:
- 4 grupos de quatro cadeiras
- 10 cadeiras rodadas com braços
- 9 cadeiras fixas em PVC
- 8 cadeiras fixas em madeira + 3 com braços
- 11 cadeiras com assento oval
- 10 secretárias
- 8 mesas
- 3 sofás
- 10 armários
- 1 mesa madeira grande sala reuniões
- 1 frigorífico
- 1 micro-ondas
- 2 mesas redondas (1 madeira + 1 PVC)
- 1 mesa de apoio sala reuniões
- 2 mesas de apoio de madeira pequenas
- 4 cadeiras acolchoadas apoio gabinetes
- 4 cadeiras madeira pretas e brancas
Além disto, fazendo uso da tal interpretação, a direção executiva do SNS tem utilizado os serviços de assessores de imprensa do Hospital de São João. Por altura das primeiras perguntas do Observador, Rui Neves Moreira deixou de responder pela direção de Araújo e, para o seu lugar, foi outro assessor do Centro Hospitalar São João, Raimundo Filipe — que também não tem qualquer contrato com a direção executiva do SNS.
Sobre um eventual conflito de interesses por partilharem assessores (o que podia colocar o Centro Hospitalar São João numa posição privilegiada relativamente a outras unidades hospitalares do país), a direção de Fernando Araújo diz que considera não “haver qualquer incompatibilidade na aceitação da cedência deste apoio pontual e profissional ao abrigo de um protocolo de cooperação entre o CHUSJ e a DE SNS, face à inexistência de qualquer concorrência entre instituições e em função do profissionalismo e dever de isenção da nossa equipa, sempre empenhada e motivada com os desafios colocados, sobretudo numa área tão relevante da sociedade e num momento tão importante para o Serviço Nacional de Saúde”.
A direção executiva do SNS aproveita ainda para desvalorizar uma eventual incompatibilidade ao dizer que “há várias empresas de comunicação que têm na sua carteira de clientes mais do que uma instituição de saúde, públicas e privadas, sem qualquer evidência de conflito de interesses.”
A longa ligação de Araújo à Kicab
Há uma longa ligação entre Fernando Araújo e a empresa de assessoria que pediu ao ministério que contratasse quando arrancou com a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde no final de 2022. O primeiro contrato de que há registo na contratação pública por parte de uma entidade liderada por Fernando Araújo é de 1 de setembro de 2019. Nessa data, o Centro Hospitalar São João contratou a empresa até ao final do ano de 2019 por 32.400 euros, ao qual acresceu o IVA, através de um procedimento por consulta prévia.
Passou-se um ano e, a 3 de setembro de 2020, a direção do Centro Hospitalar São João abriu um concurso público para assessoria de imprensa para três anos: 2021, 2022 e 2023. Concorreram cinco empresas, sendo uma delas a Kicab. Enquanto decorria o concurso, a Kicab foi contratada por ajuste direto a 7 de janeiro de 2021 (por 8.100 euros, abaixo da necessidade de haver contrato escrito) e a 25 de março de 2021 pelo mesmo valor, também por ajuste direto.
A Kicab acabaria por vencer o concurso público em abril de 2021 para um serviço que já estava a prestar nos meses anteriores através da contratação por esses dois ajustes diretos. Como a ponderação era 70% para a “avaliação qualitativa” da proposta e 30% para o “preço”, o facto de já trabalhar com o Centro Hospitalar São João ajudou a que a Kicab vencesse o concurso. Pelos quatro anos seguintes, a Kicab conseguiu um contrato na sequência desse concurso público no valor de 124.920 euros, com a entidade pública a gastar 153.651, 60 euros, quando se inclui o IVA.
O contrato, de resto, ainda continua válido. Depois de Rui Neves Moreira, mesmo sem um contrato para prestar serviços junto da direção executiva (que ambas as entidades entendem existir por via do protocolo), o Centro Hospitalar São João “emprestou” um outro assessor já no mês de fevereiro à direção de Araújo: Raimundo Filipe, o responsável pelo dossier “eventos” do São João, que foi quem estabeleceu os contactos com o Observador prévios à publicação deste artigo.
Neste momento, segundo a direção de Araújo, decorre o procedimento concursal para a assessoria de imprensa da Direção Executiva do SNS. Enquanto não é finalizado o processo, é Raimundo Filipe, do São João, que está responsável pelo contacto com a imprensa. Rui Neves Moreira saiu dessa posição na mesma altura em que o Observador enviou as primeiras questões sobre o assunto.