Em setembro de 2014, um par incomum entrou num estúdio no México e dessa colaboração entre Paul McCartney e Kanye West, congeminada pelo último, saíram duas canções, “FourFiveSeconds” (em que Rihanna participa) e “Only One”. A reação da internet? Maravilhosa: os miúdos, que cada vez vivem mais no momento, perguntaram-se quem era aquele velho que estava ali a ver se trepava o elevador social à conta do génio de West, a aproveitar-se da fama do bom e são Kanye para conseguir 15 segundos de fama.
Isto é tudo muito saudável, pelo menos se tivermos em conta que durante décadas qualquer banda em que houvesse um músico a pegar numa guitarra era apodada de ”Novos Beatles”. Os Smiths não podiam soar menos a Beatles, mas eram os novos Beatles; os Oasis soavam ao refugo dos Beatles e eram os novos Beatles. Toda a gente era os novos Beatles, o que diz bem da relação entre o jornalismo musical e os Beatles.
Impõe-se uma correção: os Blur nunca foram considerados os novos Beatles; inicialmente eram vistos como os novos Stone Roses; após Modern Life is Rubbish (1993) houve quem começasse a chamar-lhes os novos Kinks, uma comparação mais injusta, devido à proximidade sonora e ao olhar sobre a classe média britânica. É preciso ser-se uma grande banda para conseguir escapar, naquela altura, ao rótulo de novos Beatles – e ainda assim a comparação com os Kinks era redutora: Modern Life is Rubbish era musical e liricamente suficientemente coeso para que os Blur dispensassem comparações.
[“St. Charles Square”, uma das canções novas dos Blur, disponível a 21 de julho:]
O que se seguiu já faz de tal modo parte da história que se devem ter esgotado os ângulos possíveis para novos livros e documentários: os Blur abeiraram-se de todos os géneros disponíveis (há funk em “Girls and Boys”, por amor de Deus) e tornaram-se a banda pop de eleição de todos os miúdos alternativos, antes de crescerem tanto que se deixaram arrastar para uma guerra absurda com os Oasis, que nunca podiam ganhar, porque em geral (e estou neste momento a olhar para as estatísticas) a estupidez vence sempre.
A derrota só lhes fez bem: com as ilusões de grandeza destruídas, os Blur dedicaram-se ao que sabiam fazer melhor — experimentar — e o disco que saiu daí, chamado Blur, ainda é dos melhores da carreira da melhor banda pop do final dos anos 90. 13 era um óptimo disco,Think Tank trouxe a GRANDE CRISE que todas as bandas precisam: Graham Coxon abandonou a banda, que pouco depois pareceu encerrar atividades.
Que ninguém tenha dúvidas que os Blur são, fundamentalmente, Damon Albarn (vocalista e principal compositor) e Graham Coxon (guitarrista, segundo compositor, arranjador e ocasional vocalista e corista): conheceram-se quando o primeiro tinha 13 anos e o segundo 12, e desde então amaram-se e odiaram-se à vez, sempre em doses grandiloquentes. Albarn, o homem cheio de confiança e ambição, Coxon, o ultra-sensível que teria ficado satisfeito em fazer parte de uma pequena banda indie, sem ter os olhos da imprensa sempre em cima de si.
Houve álcool (Coxon), heroína (Albarn), filhos, divórcios, queijo (Alex James), reuniões, períodos sabáticos, o mundo esqueceu as guitarras e começou a ouvir hip-hop e r’n’b, Albarn criou os Gorillaz e, inesperadamente, tornou-se uma das maiores pop stars que o mundo conhece e tudo isso contribuiu para uma estranha paz: já não havia nada a provar, já tinham ganhado todo o dinheiro que precisavam, podiam simplesmente tocar juntos quando quisessem, pelo simples prazer de se reunirem.
Palavra de quem os viu uma porrada de vezes e até teve o azar de ter de trocar palavras com Damon Albarn quando ele queria muito — mas mesmo muito – ser uma estrela e era (antes de mais) insuportável. Nunca dei com um concerto dos Blur tão porreiro, tão boa onda, tão feliz, tão pejado de simples amor à música e gratidão por ver o povo ali reunido, a cantar as canções deles, como o deste ano no Primavera.
Foi como se o nevoeiro se tivesse dissipado e Dom Sebastião regressasse, dizendo, “Esqueçam aquilo das guerras, estar vivo é muito melhor – já experimentaram cuzcuz?” É que entretanto os miúdos descobriram os Gorillaz, apoderaram-se de telemóveis, ficaram a saber que Albarn havia tido uma banda chamada Blur, foram ouvir, gostaram – e de repente ali estávamos com os nossos filhos, numa das reuniões mais bonitas que alguma vez me foi dado a ver, quatro rapazes entradotes, mas ainda cheios de pinta, sem nada a provar, felizes por reunirem tanta gente, por ainda fazerem parte da festa.
O mais espantoso é que, para todos os efeitos, esta é a maior digressão de sempre dos Blur – mais ainda se nos lembrarmos que pela primeira vez encheram Wembley. Há um sentimento generalizado: vê-los antes que se envelheçam demasiado, antes que se zanguem outra vez, antes que Alex James resolva voltar à cocaína, antes que Albarn desapareça novamente no meio da selva. Vê-los.
Sabíamos que haveria um disco a sair a meio da digressão, mas não é certo que isso interesse muito à maior parte das pessoas – para todos os efeitos, o grosso da obra há muito havia sido coligido. The Magic Whip, o álbum anterior da banda (2015), fora cortado e colado por Graham Coxon a partir de umas sessões que a banda realizou quando fez as pazes e se preparou para a digressão de reunião – não era um mau disco, mas não soava propriamente coeso.
O mesmo não se pode dizer de The Ballad of Darren, o novo disco (disponível esta sexta-feira, 21 de julho): soa a uns Blur envelhecidos em pipas de carvalho, tem um indisfarçável tom indie-rock, muito por força das guitarras de Graham Coxon, e uma camada de melancolia em fundo. É um disco de separação, de contabilidade feita à vida vivida até aqui, o que é sempre pouco propício a festa. Damon dizia recentemente que a alegria da sua juventude era uma máscara para lidar com o estrelato e sempre houve ali uma tristeza pronta a despontar (clarinha numa canção como “Resigned”). The Ballad of Darren soa a todas as variações possíveis de “Resigned”: à guitarra, com piano, com coros, com cordas, mais adornada, mais simples.
Neste exato instante, vou em cinco canções preferidas: “Barbaric” (ótima cantilena de indie rock, com belas guitarrinhas), “Russian Strings”, cheia de pianos e cordas e coros, a perfeita “The Narcissist”, que lembraria os Real Estate, se não se desse o caso de serem os Real Estate que lembram os blues, “Goodbye Albert”, indie-rock perfeito, e o admirável final de “The Heights”, com os seus metais grandiosos.
Sinto que vou enamorar-me de “The Ballad”, que abre o disco, naquele registo de confissão amorosa desiludida que caiu tão bem a Albarn, e “St. Charles Square”, com o seu riff pesado e aquela figura de guitarra estranha que Coxon enfia ali no meio, tem vindo a crescer a cada audição. Consigo facilmente imaginar que dentro de dois ou três dias The Ballad of Darren me fará companhia sem que eu sinta necessidade de comparar este com os discos antigos ou o que eles significavam.
Um possível paralelo para este álbum são os três discos de regresso dos Go-Betweens: eram menos variados, já não era propriamente uma banda, mas os seus dois elementos essenciais e fundadores, e concentravam-se naquilo que eram as grandes qualidades da banda — boas malhas de guitarra e boas melodias, sem nunca se esforçarem por esconderem que tinham envelhecido.
[“The Narcissist”:]
Em The Ballad of Darren não vão encontrar o sortido pop que tornou os Blur famosos: não há vaudeville nem glam-rock (nem todos os géneros possíveis entre estes), apenas Albarn a escrever e Coxon a adornar, aqui umas cordas, ali uns metais, a mais de uma mão-cheia de melodias desenhadas com cuidado, que talvez não coloquem estádios inteiros aos saltos, mas adicionam mais duas ou três canções a um cânone que já vai longo.
Não vai haver guerras culturais por causa de Ballad of Darren, ninguém vai falar de empowerment, de wokismo, de fascismo – são apenas quatro homens de cinquenta anos a divertirem-se sem disfarçarem as dores nas costas, o que é simultaneamente belo e comovente.
Há muitos anos os Sonic Youth diziam em entrevista que não queriam ser os Soundgarden ou os Pearl Jam, não queriam fazer discos maiores do que a vida, queriam fazer discos deste mundo. E esse é o melhor elogio que se pode fazer a Albarn e aos amigos, que durante tantos anos foram vistos como os reis do cinismo: fizeram um disco honesto, adulto e deste mundo, com todas as qualidades e defeitos que isso implica.