Ao chegar à doca de pesca da Nazaré, começo por me dirigir, como sempre me acontece, ao porto errado. Aí, desato a formular teorias poéticas sobre os nomes dos barcos que vejo, aparentemente baseados em intimações à imortalidade dos já partidos (Avô Varela; Avó Carmen) ou em declarações amorosas à embarcação, convertida numa entidade feminina, ora amada, ora divinizada, como se assim o mar de monstro indomável passasse a simples banheira (Afrodite; Deusa dos Mares; Princesa das Ondas), como se o epicentro dos oceanos fosse aquela nau e o desfecho da pescaria condensasse afinal também o da humanidade.
Seja como for, não era aquele o meu porto, como depressa percebo ao perguntar pelo Paulo a um pescador que ali vejo. Atravesso a doca e dou por fim com o Leão Marinho, a esta hora já enfeitado com fitas amarelas e brancas e bandeirinhas azuis. Apresento-me ao Paulo, atarefado a acabar uma caldeirada de peixe e marisco, e dirijo-me para as mesas postas ao comprido ao longo do cais, numa imitação humilde da inauguração da Ponte Vasco da Gama. Conheço então a Cristina, mulher do Paulo, que me fala das muitas noites sem dormir em que o Leão Marinho sai em busca de peixe-galo e marisco, agora amenizadas pela antena de internet colocada no barco. Pergunto-lhe qual o seu maior medo e a Cristina diz-me que cá fora é tudo seguro, mas que lá dentro um pé colocado no sítio errado pode acabar em tragédia. Explica que este é o último ano do Leão Marinho, que em breve irá para a sucata, substituído pelo Príncipe da Paz. Junto ao barco, acumulam-se agora umas trinta pessoas, ansiosas por embarcar.
A tripulação é desde há um ano composta pelo Paulo e por indonésios e guineenses, numa mistura tornada comum em Peniche, pelo menos de acordo com a amostra que me foi dado ver.
Poucos minutos mais tarde, meto conversa com o Dionísio, um homem com trinta e cinco anos de vida pesqueira e que agora vive exclusivamente em terra. Pergunto-lhe pelo encanto do mar, na esperança de ouvir uma narrativa semelhante à dos romances americanos de que tanto gosto, mas ele diz-me que também não sabe. Começou por trabalhar no betão, depois convidaram-no para ir numa pescaria, pagava melhor e deixou-se ficar, mas nunca gostou muito daquela vida. Ganhava-se bem mas nem tempo se tinha para o gastar mal gasto.
Mais uma vez, a verdade afastava-me da história que pensei escrever. Sento-me ao lado da família de outro antigo pescador e, enquanto vou comendo, ouço a Francisca, a filha mais velha do casal, falar-me das suas indecisões. Está a estudar Direito Marítimo e não sabe se quer escrever a tese sobre o impacto económico do surf em Peniche e na Nazaré ou sobre as consequências da pesca excessiva. Deixo-me espantar por um segundo. Até à geração dos pais dela, filhos de pescadores eram pescadores. Agora, estudam Direito ou Gestão e se regressam às docas é para entrevistar os amigos dos pais para as suas teses de mestrado.
Acabada, para grande pena minha, a caldeirada, vou até ao barco entrevistar os indonésios da tripulação. Explico ao que venho, eles dizem-me que “yes, yes”, e pergunto-lhes “when did you get here”, ao que me respondem que “Indonésia”. Digo que sim, claro, mas “how long”, e, enfim, parecem perceber onde quero chegar. “Ribamar”, dizem. Desisto e fico admirado que o Paulo consiga comunicar com estes rapazes, ao ponto de passarem sozinhos noites de perigo no mar.
Pouco antes de nos fazermos ao caminho, questiono o Paulo acerca da importância do que está prestes a acontecer. Ele explica-me que é uma tradição antiga, recuperada há oito anos. No início do século passado, os seus bisavôs e respetivos camaradas iam a remos de Peniche a Porto Dinheiro (mais ou menos vinte quilómetros) buscar a imagem de Nossa Senhora de Monserrate, para a trazerem em procissão como forma de agradecimento por um ano sem acidentes.
Fala-me um pouco da fé, que vive à sua maneira mas da qual nunca duvida. Diz que quem passou pelo que ele já passou sabe que existe alguma coisa maior a velar por nós. Seria uma canalhice à qual não me disponho perguntar se pensaria o mesmo caso as coisas tivessem corrido mal, se acha que outros camaradas menos afortunados acreditam no mesmo. E se não o pergunto não é por generosidade intelectual ou cobardia física, mas por me lembrar da Afrodite e da Princesa das Ondas. Estamos presos no centro do mundo (na nossa subjetividade, se se quiserem armar em finos) e a maior das tragédias não acontece lá longe, em Gaza ou Kiev, mas todas as noites em Peniche. Aquilo a que somos poupados pesa mais do que tudo o que se repete aos milhares sempre que o sol se põe do outro lado do mundo, do outro lado de nós mesmos. Podemos chamar cinicamente a isso egocentrismo, mas parece-me mais preciso imaginar que só a partir de nós teremos a mínima hipótese de perceber o que é isto a que chamamos vida.
Adiante.
O Paulo explica-me que a peregrinação que estamos quase a começar é uma invocação dos pescadores caídos, um momento de devoção religiosa e um convívio anual de amigos. Isso basta-me. Entramos a bordo.
Converso durante uns minutos com o senhor Bernardino, pai do Paulo e primeiro proprietário do Leão Marinho. O senhor Bernardino tem oitenta anos, está reformado há dez e começou a ir ao mar com treze. Ainda hoje vai em pequenas pescarias com o filho, para, nos dois sentidos da expressão, matar o bichinho. Diz-me que chegou a ir com o Leão Marinho a Marrocos, em expedições de quatrocentas milhas. Espantado, pergunto-lhe se era mesmo assim. “Estou-lhe a contar a verdade. Ná, a vida de mar é complicada, amigue, é muito dura.” Fala das noites de mau tempo, das pescarias épicas de que tem tantas saudades, dos perigos por que passou, do acidente rodoviário em que ia morrendo, da vez em que foi preso uns minutos por um mal-entendido (faz de conta que eu era um bandido), da sua devoção à Nossa Senhora do Mar (“a gente agarra-se à Nossa Senhora, para que nos traga a salvamento, sabe. A gente vai pró mar com fé nela e voltamos ca fé nela, tá a ver. Só ela é que nos pode salvar. Tá bem, tá. Eu é que sei o que já passei”) e do seu amor ao peixe (“eu cá na troco o peixe à carne”).
Oferecem-me agora uma T-shirt branca, distribuída a todos os passageiros, onde à frente se vê a estátua da senhora de Monserrate e atrás, dentro de um leme, se lê Peregrinação Nossa Senhora de Monserrate à Festa de Nossa Senhora da Boa Viagem. Percebo que esta T-shirt é a maneira ingénua de se dizerem as verdades. O que importa naquele momento não é a individualidade de cada um, mas a sinceridade alva do agradecimento pelo repetido e silencioso resgate dos pescadores.
Olha o que para ali vai de branco, olha, olha. Viro-me e vejo o senhor Bernardino entusiasmado a observar a costa. Na esperança de que aquele olhar treinado me explique o que a minha miopia não enxerga, concentro-me nas ondas, à procura de sinal de pesca brava. “Ná, homem, nã é nada disso. É a urbanização lá em cima, já viu? Dantes isto era tudo mato.”
Desiludido, aponto o nome dos barcos que nos acompanham nesta peregrinação, que novamente ora se riem dos perigos (Marés de Papel) ora antecipam o triunfo dos homens contra a natureza (Bom Peixe, Porto Dinheiro, Filho do Mar, Meu Regresso). Vou combatendo o enjoo até que chegamos finalmente a Porto Dinheiro. Ao longe, veem-se centenas de pessoas enquanto uma lancha traz consigo a estátua prometida. Os barcos apitam desenfreadamente e disparam foguetes à passagem da lancha, que contorna cada um deles antes de se dirigir ao navio (o Porto Dinheiro) que este ano tem a missão de a trazer.
Começamos então a viagem de regresso a Peniche e a Cristina explica-me o que se seguirá. O Leão Marinho vai até ao porto, onde se separará do Porto Dinheiro, que terá de entregar a Nossa Senhora à ribeira velha. Depois, mais logo, os santos da igreja serão distribuídos pelos barcos, que assistirão à festa e aos fogos da Nossa Senhora da Boa Viagem desde a costa. Pergunto-lhe que santo coube este ano ao Leão Marinho, mas a Cristina diz-me que “graças a Deus não há assim tantos santos em Peniche”, pelo que este ano o seu barco só terá como passageiros pescadores e pecadores.
Ao chegarmos à costa, quatro barcos enfeitados com cruzes e folhas de palmeira fazem um corredor por onde as embarcações peregrinas passam. “Até ‘tou arrepiado, veja lá”, diz-me o Paulo, de braço estendido. Pergunto-lhe se vai ter saudades deste barco quando se desfizer dele. “Claro, isto aqui é um objeto mas é como… [uma casa?, pergunto] É como um animal, sabe, tem uma alma.”
No rádio do barco, um pescador com voz de padre ou um padre com voz de pescador diz que se trata de um dia de união, de gratidão, de Deus e de Nossa Senhora. “Somos uma só família, que nas dificuldades encontra sempre sinal de…”
O Paulo baixa o som para me falar do dia em que o pai adoeceu e ele teve de, pela primeira vez, capitanear o Leão Marinho. Nunca pegara numa panela e antes de embarcar ligou à mãe, que o ensinou a fazer uma caldeirada bastante rudimentar. A filha mais nova do Paulo e da Cristina entra no posto de comando e desatam a falar-me de um espectáculo que viram em Espanha, protagonizado por dois leões marinhos. “Aquilo é um animal muito inteligente, sabe. Se os visse saltar percebia logo. Eu adorei aquilo, vou-lhe ser sincero. Sou do Sporting, sou leão, mas não é por isso, sabe, é porque gosto mesmo do animal, não lhe sei dizer porquê.” E, com a costa ali tão perto, pousa as mãos sobre os ombros da filha.
Continua a falar de olhos postos nas águas. Sem que o Paulo se aperceba, desço para o convés e salto para terra enquanto o senhor Bernardino dá ordens a um dos indonésios, que vai amarrando o barco ao cunho, para que o barco possa enfim repousar, cansado pelas marés de papel que há tanto enfrenta. Em silêncio, despeço-me do Leão Marinho, saudando o príncipe dos mares.
Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas.