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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

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A campanha onde o voto latino é mais disputado do que nunca. "Diria que o mais certo é ser 50-50"

O casal de porto-riquenhos Juan e Maria não consegue entender como a família apoia Trump — mesmo depois da frase do "lixo". Os hispânicos estão divididos. E há muitos como Teresa, que nem podem votar.

Juan e Maria Silner estavam de férias, em São Francisco, quando começaram a receber notificações de vários media nos telemóveis. “As notícias enlouqueceram. Só se lia ‘lixo, lixo, lixo’. E pensei ‘Que raio é isto?’”

Quando os dois advogados de Porto Rico finalmente abriram as notícias, depararam-se com as declarações do comediante Tony Hinchcliffe, no comício de Donald Trump no Madison Square Garden, dizendo que os porto-riquenhos “fazem demasiados bebés” e que a ilha — que tem um governo autónomo, mas pertence aos Estados Unidos da América — é como “um monte de lixo flutuante”.

“Não me surpreendeu”, confessa Maria dias depois, agora já na sala de estar da sua casa em Baltimore, onde por trás dela, na parede, estão três quadros — um da cidade que acolheu o casal e dois dos locais onde cada um deles nasceu, em Porto Rico. “Mas os republicanos dizerem que foi uma piada, que isto é humor… Não é. Onde está a punchline?”, pergunta.

O momento marcou a última semana da campanha presidencial, de tal forma que a equipa de Donald Trump emitiu um comunicado onde se distanciou do comediante. Mas, depois de Joe Biden ter reagido dizendo que muitos dos apoiantes Trump é que são “lixo”, o candidato rapidamente abraçou o assunto, aparecendo em ações de campanha com um colete refletor igual aos usados pelos trabalhadores do lixo.

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Maria e Juan, que saíram da ilha em 2017 na sequência da destruição provocada pelo furacão Maria, ficaram indignados. Mas sublinham que não se sentem surpreendidos. “É claro que Trump não pediu desculpa. Nunca pede desculpa por nada, ia pedir por isto? Os porto-riquenhos não são assim tão especiais”, resume a mulher.

Juan e Maria Silner fotografados na sala de casa, na companhia dos cães Maxi e Tiago.

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Os dois, que trabalham em Baltimore (Maryland) como advogados de imigração, não alimentam ilusões de que o momento tenha alterado sentidos de voto já definidos, mesmo entre a comunidade porto-riquenha. “Quando comecei a ver tantos artistas porto-riquenhos a reagirem publicamente, como o Ricky Martin, a Jennifer Lopez, o Bad Bunny, comecei a achar que isto talvez possa motivar alguns que se iam abster a irem votar. Numa lógica de ‘Ai eu sou lixo? Então toma lá lixo’”, explica Juan. “Mas não acho que vá fazer qualquer diferença junto daqueles latinos que já tencionavam votar em Donald Trump.”

Uma comunidade em crescimento acelerado, que pode fazer a diferença em estados como o Nevada e a Pensilvânia

É que, ao contrário do que foi uma tendência de voto ao longo de décadas, nesta eleição muitos membros da comunidade latina nos EUA estão mais próximos do candidato do Partido Republicano, que ganha vantagem sobretudo entre eleitores hispânicos homens e mais jovens. Perante a possibilidade de os latinos poderem não estar totalmente com os democratas, subitamente estes tornaram-se numa fatia do eleitorado em disputa. Assim se explicam as várias visitas de Donald Trump e Kamala Harris a cidades como Allentown, com uma enorme população de latinos, no swing state da Pensilvânia. “Só nós, porto-riquenhos, somos meio milhão na Pensilvânia, mais outros tantos em estados como a Flórida e Nova Iorque”, resume Juan Carlos.

A visão macro é ainda mais relevante. Em todos o país, a maior concentração de eleitores latinos está nos estados da Califórnia e do Texas, onde se preveem vitórias quase certas de Harris e Trump, respetivamente. Mas logo a seguir surgem locais como o Arizona e o Nevada, verdadeiros swing states onde o voto latino pode fazer a diferença — já para não falar na aparentemente empatada Pensilvânia. Não é de admirar que, por exemplo, o número de anúncios políticos em espanhol no Nevada tenha aumentado 724% quando comparado com a eleição de 2020.

Aqui em Baltimore, onde os Silen vivem, a influência é menor. O estado do Maryland é fortemente democrata e não se prevê uma alteração massiva desse sentido de voto. Mas o crescimento acelerado da população de origem hispânica aqui faz com que o estado se torne numa espécie de laboratório, onde se podem analisar as tendências de voto da comunidade. Afinal, enquanto a população branca tem decrescido no Maryland, os latinos são o grupo étnico em maior crescimento neste estado desde 2018. Só na cidade de Baltimore, passou de 4% para 8% entre os últimos dois censos.

Os Silen têm noção disso, ou não trabalhassem como advogados de imigração, no escritório que abriram aqui em 2021. Os porto-riquenhos não são a maioria em Baltimore — e, entre eles, parece haver um consenso no apoio a Kamala Harris, nota Juan —, mas há muitos mexicanos que ali vivem há décadas. A que se somam as centenas que têm chegado nos últimos anos da América Central, em particular das Honduras, de El Salvador e da Guatemala.

“As pessoas têm dificuldades em encontrar trabalho quando chegam. Depois quando encontram recebem abaixo do salário mínimo, não recebem apoios sociais, são mais facilmente despedidas… São constantemente abusadas”, declara Juan. “Dou-lhe um exemplo prático: uma família consegue alugar uma casa e descobrem que têm ratazanas; se fizerem queixa ao senhorio, o mais provável é ele dizer-lhes que eles é que têm de sair da casa dali a dois dias. O que é ilegal — mas eles nem sequer fazem ideia.” São uma população que, neste momento, está “assustada”, nota Maria. Apesar de ambos sublinharem aos seus clientes que “a deportação em massa” prometida por Trump caso vença as eleições não pode ser aplicada indiscriminadamente porque violaria a lei.

Apoiantes assumidos de Harris, Maria e Juan estão profundamente ansiosos com o resultado destas eleições — “tem sido difícil concentrar-me no trabalho, confesso”, admite Maria.

Juan e Maria são ambos advogados especializados na área da imigração.

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Já Juan sente-se especialmente irritado quando vê as informações falsas que circulam nas redes sociais de que os democratas estarão a arregimentar imigrantes ilegais para votarem em Kamala. “É simplesmente surreal”, diz, perplexo, antes de inspirar fundo para tentar explicar como funciona a lei. “É impossível alguém votar nos EUA se não for cidadão norte-americano. Em alguns condados há exceções que permitem o voto àqueles que têm um green card [cartão de residente permanente]. Agora, os que estão ilegais?”, pergunta, de boca aberta de espanto. “Os nossos clientes sabem bem que não podem votar, nem estão a tentar fazê-lo. Isto é como com a história dos gatos e dos cães. É tudo mentiras.”

“Não há nenhum latino que esteja com Trump”, garante Teresa. Mas Alberto diz que não é bem assim: “Está 50-50”

Não é preciso ir muito longe da casa dos Silen para encontrar alguém nessa situação. Teresa Molina vive em Baltimore desde 1991, mas é uma desses milhares que não podem votar. Na loja de itens religiosos onde trabalha, na South Broadway — a rua onde se concentra a olho nu o maior número de negócios latinos da cidade — a primeira reação que tem a uma pergunta sobre as eleições é dizer que “toda a gente está preocupada, porque nenhum dos candidatos vale a pena”.

A salvadorenha sublinha várias vezes ao Observador que a sua opinião importa pouco, por não poder votar, mas acaba por admitir que não gosta muito de Harris. Significa isso que, se pudesse, votaria em Trump? A resposta é assertiva: “Ui, votava nela à mesma. Trump não é bom para ninguém”, diz, carregando no “ú” com o seu sotaque cerrado. “Ele já lá esteve e não foi bom, portanto… Acho que não há nenhum latino que esteja com Trump”, sentencia.

Teresa Molina vive em Baltimore desde 1991, mas não pode votar.

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Não é fácil corroborar a tese de Teresa pelas ruas de Baltimore. Nas bodegas, floristas e barbeiros, muitos não querem falar com o Observador. Dizem não ser os donos dos negócios e não quererem expor os patrões ou garantem não estar a prestar muita atenção à campanha. Alguns reagem às perguntas com medo, trocando entre si olhares ansiosos e abanando a cabeça firmemente para dizer não. Muitos provavelmente estão ilegais no país.

Mas também há quem não só possa votar, como garanta que o vai fazer. É o caso de Alberto Fuentes, cidadão americano, filho de mexicanos de Saltillo que vieram para os EUA há mais de cinco décadas, e que garante que a comunidade latina em Baltimore está dividida. “Vejo sentimentos muito contraditórios. Há quem esteja mais próximo de Trump, porque considera que quando ele era Presidente estavam melhores em termos económicos. E há quem diga que ele é um racista e que é contra os imigrantes”.

Alberto não é o dono do restaurante — “gostaria muito, mas não sou”, comenta com uma risada —, mas funciona como gerente do El Salvador Restaurant, cujo verdadeiro dono tem fotos com várias pessoas famosas na parede, incluindo com o antigo Presidente Barack Obama. Esse trabalho faz com que contacte a toda a hora com membros da comunidade latina, sejam mexicanos como ele, porto-riquenhos ou salvadorenhos. “A maioria aqui é de El Salvador e eles não prestaram tanta atenção ao comentário do ‘lixo’. Mas prestam muita à discussão sobre a fronteira e às propostas de deportação”, explica, cofiando o bigode.

Significa isso que, esta terça, a maioria vai votar em Kamala? “Não, diria que o mais certo é ser metade-metade. Há uns que, quando Trump diz que os imigrantes são criminosos, ficam indignados, dizem ‘Eu não sou nenhum criminoso’. E há outros que querem muito sentir-se americanos e parte disso fá-los votar nos republicanos.” Alberto explica o fenómeno de forma distanciada, tentando não misturar os seus sentimentos com os dos clientes, e sublinha que o que motiva muitos latinos a apoiarem Trump é a questão da economia.

Alberto Fuentes, filho de mexicanos que vieram para os EUA há mais de cinco décadas, é cidadão americano e pode votar.

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A ele, contudo, esse argumento não convence: “Não lhe comprava nem sequer uma goma de cinco cêntimos. Tenho uma rejeição pessoal”, assegura. “E gosto da Kamala, acho que ela é humilde, mas fala de forma assertiva, parece-me alguém decente. A ela eu comprava uma goma de cinco cêntimos”, acrescenta, piscando o olho.

“É impossível pôr todos os latinos no mesmo saco”

Na casa dos Silen, onde os cães Maxi (diminutivo de Maximiliano) e Tiago agitam o ambiente com as suas correrias, há a plena noção de que é impossível engarrafar o voto dos hispânicos numa única tendência. “Poderíamos fazer muita diferença se votássemos todos em bloco, num único candidato. Mas não acho que isso aconteça”, resume Juan, apontando para nuances como a situação em cada estado, as origens de cada eleitor (“os cubanos e venezuelanos têm tendência a votar mais nos republicanos, porque vêm de países socialistas que degeneraram em ditaduras”) e as diferenças geracionais.

“Há outros que votam em Trump por questões religiosas. Nós conhecemos gente assim em Nova Iorque…”, acrescenta com alguma hesitação o advogado, antes de ser de imediato interrompido por Maria, que assume: “Sim, são familiares meus. Para eles é sobretudo a questão do aborto, porque são muito religiosos e não conseguem ver para lá disso”, explica. O casal admite haver “algum sentimento anti-imigração” em parte da comunidade, até algum “racismo”. “A minha tia é porto-riquenha, vive no Bronx e diz isto: ‘Se a mim me custou quando cheguei, para eles também tem de custar’”, ilustra a advogada, emocionando-se ligeiramente quando replica as palavras da tia.

“É impossível pôr todos os latinos no mesmo saco. Temos clientes das Honduras e da Guatemala, que querem trazer as suas famílias e que estão com muito medo”, resume Juan. “E depois temos outros que estão cá há muitos anos e que se sentem como cidadãos americanos. Parte da nossa família é assim, olha para os partidos como olham para clubes de futebol, são fiéis aos republicanos. Para eles, Trump é como Maradona.”

Nas ruas de Baltimore são poucos os cartazes de incentivo ao voto.

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Esta terça-feira, os Silen vão juntar-se a alguns amigos para acompanhar a noite eleitoral. “É mais fácil se não estivermos sozinhos”, justificam. A ansiedade para o casal de advogados é a duplicar porque, nesta noite eleitoral, há eleições para escolher o próximo Presidente americano — para as quais vão votar — e para eleger o novo governo de Porto Rico (nas quais já não podem participar por serem residentes no continente). A ilha, onde ainda vive parte da família de Maria e Juan Carlos, está em profunda agitação política desde o furacão Maria.

“Para nós, os próximos 20 anos vão ser definidos por esta eleição aqui e pela de Porto Rico”, resume Juan Carlos. E, para ilustrar a importância da decisão, recorre ao espanhol natal, usando uma expressão que tenta transmitir a ideia de situação-limite: “Aqui e lá, nesta eleição, se nos va la vida.” Que é como quem diz que, para muitos latinos, a escolha entre Trump e Harris é um tudo ou nada. Só não há consenso dentro da comunidade sobre que candidato representa o quê.

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