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No início desta semana, Michel Barnier estava a almoçar num restaurante perto da Assembleia Nacional, frequentado por políticos, quando foi abordado por um deles. “Olá, senhor primeiro-ministro!”, disse o homem. A história, revelada pelo Le Point, não identifica quem foi a pessoa em específico, mas aponta as outras figuras conhecidas que almoçavam em mesas próximas: o socialista Boris Vallaud, o republicano François-Xavier Bellamy e o chefe de gabinete do primeiro-ministro Gabriel Attal. “Barnier”, escreve o jornal, “educamente desvalorizou, como se não se preocupasse. E, no entanto.”
No entanto, menos de uma semana depois, seria Barnier o homem anunciado pelo Presidente Emmanuel Macron como novo primeiro-ministro francês — depois de dois meses de suspense, na sequência das legislativas de julho, e uma semana intensa, com vários nomes a serem atirados para o ar pelo Eliseu. Para muitos, a escolha do antigo ministro de Jacques Chirac e negociador-chefe da Comissão Europeia para o Brexit, foi uma surpresa. Mas, nos corredores da política francesa, já havia quem equacionasse se o político dos Republicanos (herdeiro histórico da UMP de centro-direita) não seria uma forte hipótese para o cargo. “Há alguns dias que andava a pensar nele porque o nome dele já não era mencionado”, comentava com o Les Echos o ex-deputado do mesmo partido François Cornut-Gentille. “Deixou todos os outros queimarem-se.”
Macron pôs assim fim ao impasse político, mas nem por isso a estabilidade está garantida. No seu discurso após a nomeação, ao lado do demissionário Gabriel Attal — o primeiro-ministro mais novo de sempre, com 35 anos, que ali estava ao lado do agora primeiro-ministro mais velho de sempre, de 73 —, Barnier fez menção aos seus planos para defender a escola pública, combater a crise de poder de compra e aplacar a “raiva” dos franceses. Não é assim tão claro, porém, como porá em prática estes planos, de forma a conseguir uma maioria estável na Assembleia Nacional que apoie o seu governo. Assumindo que conseguirá obter os votos dos deputados do seu partido (47), da coligação macronista Renascença (166) e dos indendependentes (22), continua a precisar de mais 54 parlamentares do seu lado para atingir o número mágico de 289, que permite a maioria absoluta.
E tudo isto enquanto corre contra o tempo: a 1 de outubro, o seu novo governo terá de apresentar a primeira proposta para o novo Orçamento do Estado. Sendo que, antes disso, o mais certo é enfrentar uma sessão extraordinária no Parlamento, onde terá de lidar com outro teste: a moção de censura já anunciada pelos partidos de esquerda que compõem a Nova Frente Popular, vencedora das eleições de julho, que está revoltada com a escolha de um político de centro-direita, oriundo do quarto partido mais votado no último sufrágio.
A desunião à esquerda matou a hipótese Cazeneuve — e deu origem a uma moção de censura anunciada
Ao longo desta semana, o Eliseu foi ventilando que o critério do Presidente para escolher o primeiro-ministro era o da “governabilidade” — ou seja, o de um nome cujo governo não fosse de imediato derrubado com uma moção de censura na Assembleia Nacional. Primeiro foi equacionado outro nome do centro-direita, Xavier Bertrand. Depois o socialista Bernard Cazeneuve. E, contudo, nenhum acabou por ser nomeado. Ao Le Monde, fontes próximas do Presidente confirmaram que tal não aconteceu porque nenhum dos dois reuniu consenso nas reuniões com os partidos, com a União Nacional (UN) de Marine Le Pen a prometer “censura automática” a qualquer um dos dois.
A esquerda, primeira classificada nas eleições de julho — mas cuja primeira sugestão (Lucie Castets) para o cargo foi de imediato rejeitada por Macron —, reagiu furiosa, tentando relembrar como Emmanuel Macron convocou eleições para tentar travar a extrema-direita, o seu partido se uniu à esquerda na segunda volta das eleições para fazer “barragem” à União Nacional e, agora, acabava por fazer a nomeação depender do apoio do partido de Le Pen. A escolha de Barnier, disse a líder dos verdes Marine Tondelier, representa “a aliança entre os macronistas, a direita e a extrema-direita”. Já Jean-Luc Mélenchon, da França Insubmissa, anunciou de imediato a marcação de uma manifestação para este sábado.
Mas as próprias fraturas internas da esquerda também complicaram todo o processo. Nem o nome da área da esquerda sugerido por Macron — o antigo primeiro-ministro socialista Bernard Cazeneuve — reuniu consenso entre a Nova Frente Popular (NFP), que é composta por socialistas, ecologistas, comunistas e ainda a França Insubmissa (excluída automaticamente pelo Presidente de qualquer solução de governo). De acordo com o Le Monde, o próprio Presidente terá dito a Cazeneuve que foi sabotado “pelos seus próprios amigos”. O autarca socialista Nicolas Mayer-Rossignol acusou a esquerda de “não ter estado ao nível”, por não ter apoiado em massa o antigo primeiro-ministro de François Hollande. “Agora estamos a entregar a escolha do governo a Marine Le Pen. É escandaloso”, declarou. O senador Hussein Bourgi, do mesmo partido, reforçou a ideia: “A coligação dos medíocres”, acusou. “Queriam Castets a tudo o custo; agora vão ter Barnier.”
Se os socialistas se tivessem afastado do resto da Nova Frente Popular e apoiado Cazeneuve, talvez a solução pudesse reunir o número de deputados suficiente para Macron o nomear. Mas o líder do partido, Olivier Faure, sentiu que essa escolha prejudicaria os socialistas aos olhos da opinião pública, como explicou ao Le Monde Emmanuel Grégoire, deputado próximo da liderança: “A partir do momento em que nem os verdes, nem os comunistas, nem os ‘insubmissos’ queriam Bernard Cazeneuve, haveria um imenso risco político e moral para o PS se apoiasse a sua candidatura. Pareceria perante a opinião pública que seríamos os coveiros da Frente Popular, para conseguir uma aliança implícita com os macronistas.”
Perante a escolha de Barnier, os líderes da NFP já anunciaram que irão apresentar uma moção de censura ao novo governo, independentemente da sua composição e do seu programa. Esta, porém, pode cair em saco roto. Para ser eficaz, teria de contar com o apoio da União Nacional — que, neste momento, mantém um “nim” ao antigo negociador da Comissão Europeia.
Como a União Nacional se tornou o fiel da balança do governo de Michel Barnier
A primeira reação de membros da UN ao nome de Michel Barnier não foi a mais calorosa. O deputado Jean-Philippe Tanguy apelidou-o de “um fóssil” digno de estar “no Parque Jurássico” e o colega Sébastien Chenu chamou-lhe “a encarnação de alguém subjugado à doxa europeia”. Mas, segundo o Nouvel Obs, as declarações não agradaram à líder Marine Le Pen, que rapidamente corrigiu a rota numa videoconferência com deputados do partido. Horas depois, o próprio Tanguy já reproduzia uma mensagem diferente: “Iremos decidir com base nas provas. E votaremos a favor daquilo que for na direção certa, fiel à linha de Jordan Bardella e Marine Le Pen”.
Por fim, a própria líder confirmaria que a estratégia será a de tentar influenciar o programa do governo de Barnier. Se houver concessões ao programa da UN, então Barnier talvez possa ter maioria para governar. A espada está em cima da sua cabeça. “Veremos se conseguimos, pelo menos, garantir que o Orçamento seja equilibrado”, resumiu Le Pen. Como uma fonte do partido resumiu ao Le Point, a negociação começa já na formação do executivo: “Iremos ver com atenção quem é que ele nomeia como ministros, tentando até conseguir um da UN. Se houver ministros do partido de Macron, é uma coisa. Se houver ministros que eram do executivo anterior, é outra…”
O entendimento entre Michel Barnier e a extrema-direita pode, contudo, ser mais fácil do que parece à primeira vista. Apesar de ser conhecido por muitos como um rosto de Bruxelas, dentro de França o político está na fação mais à direita dos Republicanos, definindo-se como um “social-gaulista”. Quando participou nas primárias do partido para as presidenciais em 2022, Barnier defendeu uma moratória de três a cinco anos em toda a imigração para França e mostrou-se favorável a que o país abandonasse o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Dentro da UN, muitos interrogam-se qual dos dois Barnier vai ter agora preponderância. “Com o Barnier pró-europeu convicto há pouca cooperação possível. Mas se for o Barnier que foi candidato às primárias…” resumiu Thierry Mariani, eurodeputado da União Nacional.
Para já, Le Pen não fecha a porta, afirmando que Barnier “é um homem que nunca foi excessivo na forma como falou sobre a União Nacional, que nunca a ostracizou”. “É um homem de conversação”, disse a líder — qualidade que lhe foi apontada frequentemente em Bruxelas, onde ganhou a imagem de negociador e promotor de consensos.
Mas o que é certo é que, depois de uma eleição onde a União Nacional ficou aquém da vitória prevista pelas sondagens, na verdade o partido tem agora o papel de fiel da balança, fazendo depender de si todo um governo. “A UN tem obviamente interesse nesta situação”, resumiu ao Le Figaro o constitucionalista Benjamin Morel. “Se o governo se mantiver graças à UN, se o Orçamento passar graças à UN, isto permite ao partido dar mais um passo em direção à normalização e credibilidade.” Mas, aponta o jurista, sempre com “o dedo no gatilho da moção de censura, pronta para elevar a fasquia a qualquer altura”.
Dentro do governo de Attal, que está de saída, há quem tema esta situação. “O primeiro-ministro vai estar nas mãos da UN”, desabafou um dos ministros que está de saída ao Les Echos. Com uma agravante: desta vez, o partido não tem o pequeno grupo parlamentar que tinha até agora. “Na altura, não estávamos a jogar roleta russa. Agora, o que irá acontecer com uma UN que tem 126 deputados?”, questionava-se.
“O raio de Júpiter caiu sobre si mesmo” e Macron promete afastar-se. Conseguirá?
Mesmo que Michel Barnier ultrapasse a moção de censura da esquerda e consiga governar com o apoio tácito da extrema-direita, o caminho está longe de ser simples. A começar pelo facto de ser primeiro-ministro de um Presidente com quem não tem tido uma relação fácil: são muitas as críticas de Barnier a Macron, como em 2021, quando acusou o Presidente de “arrogância” e de “falta de humildade”.
Ao longo da História de França, a chamada “coabitação” — casos em que o Presidente é de um partido e o primeiro-ministro de outro — tem sido sempre um regime marcado por tensões, das quais o máximo exemplo foi o duo François Mitterrand e Jacques Chirac. Precisamente por isso, o Eliseu tenta esvaziar esse potencial, com a sua equipa a usar o termo “coexistência exigente” em vez da clássica “coabitação”. Mas, mais do que isso, o secretário-geral da presidência, Alexis Kohler, já anunciou em público que Macron se vai afastar muito mais da gestão deste governo do que fez com o de Attal: “Estamos a desligar os fios que tínhamos ligados ao Matignon”, afirmou, referindo-se ao palácio da chefia do governo.
O próprio Macron terá assumido essa postura em privado. Segundo o Le Figaro, foi claro ao dizer aos seus mais próximos que, desta vez, não se irá imiscuir na governação como fez no passado: “Fui um Presidente que governa, serei um Presidente que preside”.
Humilhado após a derrota eleitoral do seu partido nas legislativas, depois da sua decisão pessoal de convocar eleições achando que sairia reforçado, Emmanuel Macron parece estar a repensar a sua postura. Com apenas mais três anos de mandato, sem se poder recandidatar e com um governo minoritário onde o seu partido Renascença pode ter influência diminuída, o Presidente parece estar a calcular muito mais cada passo que dá. O que, por outro lado, pode potenciar o mandato de Michel Barnier, como previu o escritor Maxime Tandonnet numa entrevista ao Le Figaro, onde decretou que “o raio de Júpiter caiu sobre si mesmo” e que Macron está “enfraquecido, descredibilizado e à beira do abismo — da demissão, para ser franco”. “É a presidência que depende de Michel Barnier como último salvador, muito mais do que o contrário, num reflexo de sobrevivência para salvar o mandato [do Presidente]”, afirmou.
Barnier está consciente disso e apreciará certamente o esforço de Macron se manter à distância, sem contagiar a sua margem de ação como primeiro-ministro. Para que não restassem dúvidas, Eric Ciotti, o ex-líder republicano que se aliou a Le Pen, foi claro: “Se Barnier for o pequeno telegrafista de Macron, faremos [uma moção de] censura.” A dúvida não é apenas sobre se Barnier tem capacidade para aguentar o governo e navegar difíceis coligações na Assembleia Nacional; é também se o Presidente conseguirá resistir ao impulso de se envolver.