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O que acontecerá à indústria da música com os avanços tecnológicos da inteligência artificial? No início de dezembro, a Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores (CISAC), que representa mais de cinco milhões de criadores em todo o mundo, divulgou o primeiro estudo económico efetuado a nível global que analisa o impacto destas tecnologias emergentes nas indústrias criativas.
Uma das conclusões mais alarmantes estima que, já nos próximos quatro anos, os trabalhadores da indústria da música — onde se incluem os próprios artistas — irão perder quase um quarto do seu rendimento para as ferramentas de inteligência artificial (IA). O relatório conclui que, se não for implementada legislação e regulamentação nesse sentido, os direitos e rendimentos dos autores serão reduzidos drasticamente, enquanto as empresas de inteligência artificial só irão enriquecer.
Os números referem-se sobretudo a duas frentes. Por um lado, os artistas vão perder rendimento à medida que as suas músicas forem usadas para alimentar os algoritmos que geram música criada por inteligência artificial se não existir qualquer remuneração em troca, algo que também se irá verificar quando essa música criada por IA estiver a competir com as obras originais nas plataformas de streaming ou a disputar atenção nas rádios e outros meios. Em simultâneo, diversos trabalhos na indústria serão substituídos por modelos de IA, à medida que as tecnologias se tornarem mais competitivas em relação aos serviços realizados por humanos.
O estudo conclui que, em 2028, graças ao desenvolvimento exponencial destas tecnologias, cerca de 20% do rendimento proveniente do streaming já seja destinado à música gerada por algoritmos de IA. No caso das bibliotecas de música — bases de dados com trilhas sonoras para publicidade, filmes ou vídeos, por exemplo — o número sobe para 60%. Perante este cenário, o Observador contactou diversas peças do ecossistema musical português para antever o que será, afinal, o futuro da indústria da música.
Os “acordos de regulamentação” necessários e o processo judicial que pode mudar tudo
Uma das grandes problemáticas quando se fala de música gerada por inteligência artificial tem a ver com o facto de muitos acreditarem que os algoritmos são alimentados, sem autorização, com catálogos de milhões e milhões de obras musicais de artistas e editoras que não deram o seu consentimento para tal — e que não são recompensados por verem os seus dados usados para alimentar uma tecnologia que, em última análise, depois estará a concorrer diretamente pelas receitas de streaming.
Foi nesse sentido que, em junho deste ano, as maiores editoras da indústria musical se uniram para interpor um processo judicial nos Estados Unidos da América contra algumas das principais empresas de inteligência artificial no campo da música. A Sony, a Universal e a Warner, entre outras, estão a processar as plataformas Suno e Udio por violação de direitos de autor, alegando que os respetivos softwares usam as suas músicas sem permissão — o que pode constituir um “roubo”, como alegam as editoras — para depois gerarem música nova.
O resultado deste caso paradigmático poderá estabelecer as bases para muito daquilo que se irá passar no futuro a nível global. “Tudo vai depender muito deste caso, porque são as maiores editoras a nível mundial e são dos maiores players na área de gerar música. O que sair daí vai ter muitas repercussões e será um ponto de partida”, acredita Pedro Sarmento, investigador académico português radicado no Reino Unido, especializado nas interseções entre música e inteligência artificial. “As preocupações da indústria são fundamentadas e legítimas, não acho que exista um alarmismo. Se calhar isto até começou com uma lógica de investigação, mas quando se percebeu que era possível fazer muito dinheiro com aquilo… Tornou-se mais problemático.”
Nos últimos anos, à medida que estas plataformas que geram música quando se introduz dados se foram desenvolvendo, chegaram relatos de utilizadores que pediam ao algoritmo para criar músicas, distribuíam essas músicas nas plataformas de streaming e, nalguns casos, ainda investiam em contas falsas de bots para manipular reproduções e acumular riqueza. Ou seja, é uma maneira de obter receitas de direitos de autor com um produto criado por IA. “Havendo más intenções focadas exclusivamente no lucro, haverá sempre maneiras de usar esta tecnologia para isso”, acredita Pedro Sarmento.
Independentemente dos resultados específicos deste enorme processo judicial, as sociedades de autores no plano internacional, organizadas na CISAC (que representa mais de 200 destas entidades), têm estado a estruturar um programa comum. “Temos estado, na CISAC, a trabalhar num acordo que sirva como base para uma legislação”, assegura ao Observador o músico e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), Tozé Brito. “É uma situação que me preocupa imenso. Precisamos de uma regulamentação rápida do assunto.”
Por sua vez, o presidente da Gestão dos Direitos dos Artistas (GDA), Pedro Wallenstein, fala numa “previsão alarmante” contemplada neste estudo da CISAC. “É urgente que o poder legislativo adote medidas robustas para proteger os direitos dos autores e dos artistas intérpretes ou executantes, face ao avanço das tecnologias de IA. Isso inclui assegurar que as ferramentas de IA sejam obrigadas a respeitar os direitos de propriedade intelectual e a prever a justa remuneração dos criadores e intérpretes pela utilização das suas prestações artísticas. É também necessário que as atuais soluções jurídicas sejam revistas para que possam responder aos desafios que as novas tecnologias impõem”, explica, acrescentando qual tem sido o papel da GDA para a resolução desta problemática.
“Temos vindo a contribuir ativamente para este esforço com algumas iniciativas, nomeadamente alertando os artistas para que estejam atentos a cláusulas contratuais vagas com produtoras que possam levar a uma extensão da utilização ou exploração das gravações efetuadas a formas desconhecidas, incluindo inteligência artificial; colaborando com os decisores políticos nacionais e europeus para garantir que os interesses dos artistas sejam protegidos; colaborando com organizações internacionais, como a AEPO-ARTIS ou a SCAPR. Cabe-nos também continuar a sensibilizar e informar a comunidade artística que representamos, e com quem contactamos no dia a dia, para os danos que a IA deficientemente regulamentada pode causar.”
Tozé Brito defende que a única solução passa por um acordo entre as entidades que representam os artistas e a propriedade intelectual e as plataformas de inteligência artificial, que depois terá de ser materializado através de legislação nos diferentes países.
“Embora já existam alguns países europeus com leis de proteção para os autores nesta área, a discussão nos Estados Unidos sobre este tema está muito mais avançada e as sociedades de autores lá já se estão a sentar à mesa com as empresas de inteligência artificial. Essa é a minha esperança. A solução tem de passar por um acordo, para que os direitos de autor sejam pagos mas também para que os produtores destes conteúdos de IA sejam remunerados. As empresas de inteligência artificial investem milhões ou biliões em ferramentas para a área cultural. É óbvio que não o estão a fazer a fundo perdido. Dizer que eles não têm direito a nada, que a música não lhes pertence, não ia correr bem. Isto é uma realidade que já existe e vamos ter de coexistir com ela, portanto vamos chegar a acordo. Mas, quando foi com o aparecimento das plataformas de streaming como o Spotify, os contratos foram muito mal negociados pelas editoras. Agora tem de se fazer diferente.”
Tozé Brito acredita que, para a resolução deste cada vez maior potencial conflito, é necessário que as startups de inteligência artificial sejam “transparentes” em relação aos dados que usam. “Se não houver honestidade, vai ser muito complicado. É preciso um jogo aberto e honesto.”
Pedro Wallenstein afirma que os artistas e as entidades que os representam devem adotar uma “postura firme, exigindo que as empresas que desenvolvem IA e utilizam criações humanas para treinar os seus algoritmos, sejam transparentes na forma de atuar, solicitando aos titulares de direitos um consentimento explícito e esclarecido para a utilização das suas prestações artísticas. A legislação deve ser repensada para incorporar estas novas ferramentas e os artistas devem poder negociar com as plataformas e empresas para estabelecer licenças claras e remuneração justa”.
Para André Miranda, músico e fundador da startup Musiversal — uma empresa que fornece serviços musicais online, contribuindo para o ecossistema artístico através da tecnologia, e que está disponível para incorporar ferramentas de IA —, nem se põe em questão a vontade das empresas de inteligência artificial.
“Após a revolução industrial, todo o sistema capitalista assenta na base de que a propriedade intelectual e a propriedade privada são absolutamente sagradas para que a economia funcione. A partir do momento que um tribunal possa dizer que uma empresa, só por ser de inteligência artificial, pode utilizar propriedade intelectual sem pagar por isso, está a violar diretamente um dos pilares fundamentais do capitalismo e das democracias liberais. Isso não pode acontecer, não é desejável sequer, é péssimo. Se a inteligência artificial não pagar direitos, a indústria da música fica numa situação que não faz muito sentido. Porque a indústria da música vive à base da criação de direitos de autor, da venda ao consumidor mas também das vendas de catálogos de uma empresa para a outra… Se isso acontecesse, já não haveria indústria. Eram só empresas de softwares. É um risco tão absurdo que acho que não há muito interesse, não me parece que haja algum player da indústria que alinhe nisso.”
Como dividir justamente os direitos de autor?
A quantidade de dados utilizados para alimentar um algoritmo e a distância que poderão ter em relação a uma canção gerada por IA também torna toda esta realidade mais desafiante. “Se pedir à inteligência artificial para fazer uma música ao estilo dos Beatles, aí é muito fácil perceber de onde vem. Agora, se pedirmos à inteligência artificial para fazer um fado, quantos autores de fado estão registados? Quantas gravações existem? São dados quase infinitos”, exemplifica Tozé Brito.
Mesmo que esta se torne simplesmente numa discussão de números, na prática o processo é complexo e pode ser feito por diferentes etapas. Por um lado, terá de haver um consentimento dos proprietários das obras para que elas possam ser usadas pelos algoritmos de inteligência artificial, em troca de uma devida remuneração. Depois, quando uma música gerada por IA estiver disponível numa plataforma de streaming e puder receber rendimento à medida que acumular ouvintes, abre-se uma discussão em torno dos direitos de autor.
“Os programadores terão de aceitar pagar porque usam obras protegidas por direitos de autor, mas também querem receber uma percentagem, porque o trabalho de programar também pode ser visto como uma função criativa que querem ver remunerada. É preciso haver um mecanismo que diga que esta canção foi criada com base nesta informação, nestes dados, e terá de ser muito claro. Se conseguirmos encontrar este equilíbrio, resolvemos o problema. É a minha esperança e visão. Se os programadores de inteligência artificial também estiverem a ser remunerados, não terão interesse em mentir”, acredita Tozé Brito.
O investigador Pedro Sarmento fala num “buraco legal” que inevitavelmente acontece sempre que surge uma tecnologia nova. Também ele acredita que esta regulamentação e acordo entre as entidades que representam os artistas e as plataformas de inteligência artificial seja a “solução mais viável”. “Embora, mais do que as editoras ou outros representantes, é importante que os artistas tenham consciência do que está a acontecer e talvez esta seja uma boa oportunidade para negociar melhor as condições.”
“Só que isto levanta várias dúvidas e problemas. Imagine-se que se treinou um algoritmo que gera música com base num catálogo enorme e, enquanto artista ou subscritor desse serviço, estás interessado em gerar algo no género hip hop. Como é que se há-de fazer uma remuneração justa de toda a música de vários géneros que foi usada para treinar aquele algoritmo? Vamos distribuir por todos os artistas que fazem parte da base de dados? Vamos dar primazia aos artistas de hip hop porque, de facto, o género que está a sair é hip hop? E se a representação dos artistas de hip hop for relativamente reduzida na base de dados? Isso levanta algumas dúvidas que se prendem com o facto de estes modelos de inteligência artificial serem muitas vezes caixas negras, em que é difícil, ao contrário dos paradigmas de programação anteriores, perceber exatamente o contributo de cada dado para o resultado final. E como é que vamos distribuir os direitos de autor com os algoritmos? Isto leva-nos a assumir que a máquina também pode ser um criador.”
A sensibilidade humana e a funcionalidade tecnológica
A maior parte dos músicos em Portugal parece estar ainda algo afastada desta realidade. O Observador contactou vários artistas compositores que assumiram desconhecimento sobre a forma como a inteligência artificial poderá transformar o ecossistema musical nos próximos anos e que, por isso, preferiram não se pronunciar sobre o assunto.
Embora tenha aceitado prestar declarações, a cantautora pop Bia Maria, que se move sobretudo no circuito da música indie e que lançou recentemente o álbum de estreia Qualquer Um Pode Cantar, também revela dúvidas sobre a forma mais correta de regulamentar e legislar.
“Tenho um lado otimista que acha que podemos usar a inteligência artificial como uma ferramenta que nos pode ajudar e que não vai propriamente interferir com um trabalho que eu acho que é bastante humano. Mas depois tenho um lado pessimista que acha que legislar o que quer que seja e que todas estas coisas burocráticas levam imenso tempo e trazem diversas questões a nível de direitos de autor. O que é de quem? Como vamos fazer isto de forma justa? É difícil pensar no que será a arte daqui a cinco anos e se efetivamente haverá legislação que faça com que o trabalho de todas as pessoas esteja salvaguardado.”
João Maia Ferreira, um dos mais relevantes rappers e produtores de hip hop e da música urbana da última década em Portugal, autor do novo álbum O Lobo Um Dia Irá Comer a Lua, teme que, independentemente dos esforços, esta já seja uma batalha ganha para as empresas de inteligência artificial.
“Não acredito que possa alguma vez haver uma remuneração justa para os autores. Quando és uma máquina que estás a ir buscar a uma amostra tão colossal, mesmo que seja consentida por todos os seus autores, são frações de cêntimos que potencialmente podes receber… E exigiria uma transparência brutal da parte das empresas de inteligência artificial. Isto é daquelas coisas em que a tecnologia já ganhou e o retrocesso é impossível. Já existe e vai ser posta em prática. Temos é de decidir qual é o mal menor, que provavelmente será regular o mercado com os mecanismos legais possíveis, para chegarmos a um cenário em que as pessoas não estão a ser tão prejudicadas. Acho que é o melhor cenário nestas circunstâncias. Temos de responsabilizar as pessoas que fornecem a tecnologia e fazer com que cumpram os parâmetros que são legalmente estabelecidos.”
Artisticamente, João Maia Ferreira revela não ter interesse em experimentar com as ferramentas de inteligência artificial, embora reconheça o seu valor para funções técnicas específicas. “Se tenho algum interesse nisso enquanto autor? Confesso que não. Do ponto de vista de brincadeira, pode ser uma coisa interessante, ver o que é que a máquina é capaz de fazer. Mas eticamente sei que é sempre derivado de um trabalho já existente. Não é um plágio, mas é quase. Aquilo está a ir buscar a material que nem sabes o que é para a máquina aprender. Não considero que um uso comercial disto seja a coisa mais ética do mundo.”
O buraco legal que existe com o aparecimento destas tecnologias faz lembrar, numa escala muito menor, o caso do sampling — técnica que está na base da música hip hop e que consiste na recolha de excertos de outras músicas para construir instrumentais de rap. Ao longo das décadas, e à medida que o hip hop se tornava numa potência comercial e industrial, e em que o sampling se disseminava por outros géneros, o processo institucionalizou-se e passaram a haver especialistas em legalizar samples, para negociar e obter o consentimento dos autores das músicas originais em troca de uma remuneração. Contudo, essa ainda não é uma realidade comum em Portugal, por exemplo, onde o sampling se continua a praticar sobretudo de forma clandestina, sem licenciamento.
“Mas, para o bem ou para o mal, consegues rastrear a autoria de um sample e remunerar a pessoa por isso — ou creditá-la. Com a máquina é quase impossível fazeres isso porque não sabes de onde é que a máquina está a criar: são milhões e milhões de dados”, aponta João Maia Ferreira.
A inteligência artificial como uma ferramenta útil na música
O cenário parece ser algo catastrofista, mas Pedro Sarmento acredita que é fundamental “desmistificar” o que é afinal a inteligência artificial, num tema com tantas camadas, e como ela também pode ser útil e importante no campo da música. Além disso, já existem exemplos de boas práticas que podem ser replicadas por outras empresas do setor.
“Nem todas as empresas que usam inteligência artificial no contexto da música usam indevidamente música com direitos de autor. Existem iniciativas como a Fairly Trained, que providencia selos de qualidade ou de ética para empresas na área e já há algumas startups ou empresas relativamente bem estabelecidas na área da geração de música que estão dentro deste contexto, ou seja, responsabilizam-se por ser transparentes nos dados que têm e remuneram os artistas. Também existe a AI For Music, um grande consórcio, e estas iniciativas tentam ir naquilo que me parece ser a direção certa”, explica o investigador, que lidera o comité de ética da International Society for Music Information Retrieval (ISMIR), a principal conferência científica sobre música e tecnologia do mundo.
Pedro Sarmento lembra que a inteligência artificial não serve apenas para gerar músicas mas que pode ter inúmeras outras utilidades neste campo. “Muitas vezes falamos destas plataformas que geram música, em que o produto final é música consumível. Mas há muito outro trabalho feito, nomeadamente parte do meu doutoramento, que se prende mais com modelar música através de símbolos, algo mais próximo do que seria uma partitura, e isso inevitavelmente deixa uma margem para o contributo humano. Não é um tipo de sistema em que carregas num botão e tens uma música”, explica.
Muitos outros softwares, já utilizados por músicos e produtores há bastantes anos, incorporam hoje ferramentas de inteligência artificial que podem facilitar o processo de trabalho mas não substituir nem o autor nem a sua criatividade. Pelo contrário, até poderá ser um estímulo artístico.
Por exemplo, Pedro Sarmento, também ele um músico, faz parte da organização do AI Song Contest, um concurso sem fins lucrativos que descreve como “uma espécie de Eurovisão” para músicos que incorporam inteligência artificial no seu processo criativo. Só podem participar artistas que dão um “contributo humano significativo” para a sua música. Sediada nos Países Baixos, a competição já teve duas edições presenciais, com a mais recente a acontecer em Espanha e transmitida online e na televisão galega. Pedro Sarmento tem uma banda de heavy metal potenciada por inteligência artificial.
“Acho que este tipo de iniciativas, por se tentarem posicionar num ponto de vista que me parece ético, ajudam a ganhar alguma consciência e a quebrar a dicotomia do ‘bom’ e do ‘mau’, como tem existido muito em torno da inteligência artificial. É importante desmistificar e consciencializar.”
Os músicos podem usar o ChatGPT para ajudar nas letras, por exemplo, ou explorar ferramentas de IA para trabalhar a construção musical. A par disso, são vários os artistas, na música e não só, que começam a usar a inteligência artificial como um meio identitário dos seus projetos, como um meio para chegarem a resultados artísticos distintos, procurando a disrupção e aquilo que é novo.
“Talvez isto seja também um incentivo para que muitos artistas explorem ainda mais e saiam da norma. Porque estes algoritmos, basicamente, arranjam um ponto de consenso entre tudo aquilo que viram. É possível forçares os algoritmos a ir para casos extremos, mas não creio que seja o caso mais comum para as empresas que estão a fazer isto. Isto pode ser quase um ponto de revolta, como sempre tiveste nos grandes movimentos artísticos. E era muito bonito ver isso a acontecer usando a inteligência artificial também.”
Uma das grandes vantagens apontadas pelas empresas e utilizadores de IA no campo da música tem a ver com a democratização e o acesso. Se a Internet possibilitou que inúmeras pessoas sem meios económicos pudessem compor e gravar música em casa, além de poderem divulgar diretamente as suas obras ao público sem necessitarem do crivo de uma editora nem dos filtros editoriais da comunicação social; a mesma lógica pode acontecer com a inteligência artificial, uma vez que facilita uma série de processos musicais de composição ou de produção.
“Há uma população muito maior a conseguir fazer música. Quanto mais fácil e barato for fazer música, mais pessoas podem ter acesso à tecnologia e vão conseguir fazer música. Nem toda ela vai ser fantástica, mas não acho que isso seja um problema, é positivo porque dá mais liberdade às pessoas”, aponta André Miranda.
Naturalmente, o aumento exponencial da quantidade de música disponível “vai diluir muito o seu valor nas plataformas de streaming”. Mas, como o músico e empreendedor tecnológico realça, trata-se de uma “tendência que já vem de há décadas”. “Para todos os efeitos, a quantidade de música que já existe é praticamente ilimitada”, diz, aludindo ao facto de todos os dias serem carregadas no Spotify, por exemplo, mais de 100 mil músicas em todo o mundo.
Bia Maria acredita que a IA poderá ser útil para “desbloquear” certos processos artísticos, para inundar a criatividade humana de novas possibilidades. “Há pessoas que podem estar numa encruzilhada a nível artístico, de não saberes bem para onde queres ir, e utilizas a inteligência artificial como uma ferramenta que te pode desbloquear. Pode ser útil, nesse sentido, de te trazer mais informação, por exemplo.” Por outro lado, valoriza a importância do empenho e do trabalho. “Parece que nos estamos a desligar um bocado desta ideia de que é preciso trabalhar pelas coisas. Pensar que eu estive cinco ou seis anos a estudar para conseguir fazer qualquer coisa e de repente há uma ferramenta que vem fazer isso por mim… Torna-se um bocado desigual.”
Os trabalhos que mais podem estar em risco
Contudo, há funções na indústria da música que podem de facto estar em risco. O estudo divulgado pela CISAC estima que os rendimentos do setor audiovisual vão encolher mais de 20% nos próximos quatro anos — e existe um ecossistema audiovisual muito ligado à música, que inclui as equipas que produzem telediscos ou conteúdos audiovisuais para os artistas.
Dentro do próprio processo musical, existem uma série de funções mais técnicas e menos criativas que poderão estar em risco. Sobretudo se estivermos a falar de uma música mais funcional, que sirva para musicar anúncios publicitários, cinema ou vídeos.
“O que me preocupa verdadeiramente é o tipo de trabalho em que o autor não é a figura principal”, sublinha João Maia Ferreira. “Também faço música para publicidade e isso está a tornar-se um campo moribundo. Sempre existiu o problema das bases de dados, porque as pessoas conseguiam, por uma fração do preço, musicar o seu anúncio. Mas havia sempre quem evitasse por estar a correr o risco de utilizar uma obra que também pudesse ser usada noutro anúncio, ou por quereres um produto mais de alfaiate. Era um problema relativamente contornável. Agora, quando consegues ter uma coisa que é inteiramente ‘original’, em que pagas uma pequena subscrição mensal e tens um número gigantesco de obras que podes extrair dali… Parece-me um campo extremamente perigoso, levanta preocupações sérias acerca de como é que sequer controlas ou rastreias o que é feito ou não por IA. Parece-me ser um grande problema para a música que é feita para obras.”
Pedro Sarmento comenta no mesmo sentido. “Há muitos artistas que têm este tipo de trabalhos em freelance e talvez essa criatividade possa estar afetada. Se enquanto produtor de uma campanha publicitária conseguires ter um preço reduzido de algo que se adapta àquilo que queres e estás satisfeito com aquilo, só se quiseres algo premium ou específico com aquele artista é que talvez faças o salto.”
João Maia Ferreira também acredita que o papel de muitos engenheiros de som, dos produtores responsáveis pelos processos de mistura e masterização dos discos, poderá estar em sério risco de extinção.
“Quando se criarem grandes algoritmos de mistura e masterização… Acho que se vai tornar numa indústria dos mais bem sucedidos. Acho que os engenheiros pequenos podem sofrer muito. Não acredito que o Kendrick Lamar de repente queira misturar o seu álbum com inteligência artificial, isso não vai acontecer. Mas se calhar o artista que está a começar e que só tem 50 ou 200 euros para esse serviço… Aí acho que poderemos ver várias pessoas a perderem os seus empregos.”
Apesar de diversas funções poderem ser substituídas por inteligência artificial, André Miranda diz que vai haver “muitos mais projetos para serem feitos”, tendo em conta a facilidade de acesso e o aumento de novos criadores a entrar no mercado. “A quantidade vai aumentar exponencialmente e isso tem dois efeitos: muitas coisas vão poder ser completadas sem um serviço humano, sim; mas o aumento do volume de projetos faz com que o topo da pirâmide também aumente um pouco; ou seja, também vai haver mais procura por serviços humanos.”
O CEO da Musiversal defende que “não é por existir uma tecnologia nova que significa que vá apagar a que existe atualmente”. “Usamos tecnologias com 200 anos e outras que têm cinco anos. Isso é perfeitamente normal, é assim que funciona. Na música é a mesma coisa. Por exemplo, a guitarra é uma tecnologia que tem centenas de anos. A maior parte dos instrumentos tem centenas de anos e já poderiam ter evoluído mais. Mas é assim porque as pessoas querem aqueles instrumentos como são. Agora, também apareceram novos instrumentos, como sintetizadores, samplers, computadores… Há sempre coisas a acrescentar e usam-se em conjunto. Porque os criadores querem ter liberdade criativa, querem ter acesso a tudo o que puderem. Não acho que a IA vá substituir os instrumentos verdadeiros, vai ser mais uma ferramenta para proporcionar liberdade. O mercado para serviços musicais é hoje muito mais ativo e suporta uma população muito maior do que há 20 anos. O facto de haver uma revolução digital não fez com que a indústria piorasse, fez com que houvesse muito mais participantes e, quando há mais participantes, é a lei da oferta e da procura. É mais difícil porque há mais competição, mas também há mais liberdade e acesso.”
Os artistas avatares: haverá futuro para entidades digitais vendidas como músicos?
Uma das outras preocupações levantadas com o desenvolvimento da inteligência artificial, num mundo progressivamente mais digital e virado para os ecrãs, prende-se com a possibilidade de existirem artistas avatares — ou seja, músicos que não existem, que não são humanos, mas que são figuras digitais, fictícias, a quem é atribuída uma imagem e uma linha musical gerada por IA. Este tipo de artistas poderá concorrer, naturalmente, com os autores humanos pela atenção e pelos rendimentos deste mercado.
“A percentagem de conteúdos de IA no YouTube, Instagram ou TikTok tem crescido exponencialmente”, lembra, em declarações ao Observador, Vasco Sacramento, o diretor da Sons em Trânsito, a agência de artistas como António Zambujo, Bárbara Bandeira, Carolina Deslandes, D.A.M.A. ou Pedro Abrunhosa.
“Já existe um telejornal em Inglaterra todo feito por inteligência artificial. Vêm aí séries e filmes todos feitos com IA. O próprio mercado dos influencers está a ser invadido por figuras públicas criadas através de inteligência artificial. Portanto, também poderá haver músicos digitais. Imagine-se um artista qualquer que trabalhe comigo e que tenha um grande sucesso, só tenho 365 dias do ano para o trabalhar — e não tenho tantos porque ele também precisa de descansar. Há muitas ocasiões em que não posso aceder aos pedidos que existem porque ele só pode estar numa cidade em cada dia. Com a inteligência artificial, isto deixa de ser um problema. Isso fará com que um mundo absolutamente industrializado e capitalista como aquele em que vivemos naturalmente vai acabar por substituir muita da atividade humana artística por atividade artificialmente criada, até porque será muito mais barato. É preciso perceber que um disco é um processo que demora meses a ser feito, entre a criação das músicas, os arranjos, os ensaios… E tem um investimento que muitas vezes envolve dezenas de pessoas, portanto é muito difícil competir com um computador que pega em várias coisas que já existem e as mistura todas e cria, em meros segundos, novos temas. É angustiante e deixa-me muito preocupado.”
O diretor da Sons em Trânsito acredita mesmo que esta progressiva digitalização possa “estagnar a criatividade humana” a médio ou longo prazo. “Isso é o que mais me preocupa. Já está a acontecer pelo excesso de estímulos que nos fazem estar permanentemente agarrados aos ecrãs, com o que isso significa na perda de expressão criativa; ainda mais se tivermos de competir, e será sempre uma competição injusta, com algoritmos e conteúdos criados artificialmente, com a perda de receitas e de postos de trabalho que isso poderá acrescentar. Isso preocupa-me imenso. Porque, se não houver conteúdos novos, se não houver criação, se não houver investimento ou risco, a inteligência artificial vai sempre trabalhar com base naquilo que já existe. E isso é muito limitador. No campo da criatividade é preciso olhar para isto com muito cuidado. É uma revolução que está ao virar da esquina e que é uma tremenda ameaça à criação humana.”
Em causa também poderão estar outros problemas e desafios, como os padrões irreais suscitados por avatares. “As expetativas irreais que muitas vezes as artistas, as top models e as atrizes criam nas miúdas adolescentes, com problemas gravíssimos de distúrbios mentais e alimentares, por promoverem a ilusão de uma vida com padrões que são dificilmente alcançáveis… Do que vi nos perfis de influencers de IA, era isso elevado a um extremo. Não é negar a inteligência artificial até porque ela veio para ficar e é uma mudança imparável e que parece ter muitas coisas benéficas, mas tem de ser controlada para não ter consequências drásticas e danosas.”
Ao mesmo tempo, Vasco Sacramento acredita que a principal fonte de rendimento dos artistas não se encontra tão ameaçada pelo desenvolvimento da IA, mesmo pensando nas múltiplas possibilidades geradas pelos artistas avatares. “Há uma experiência que, até agora, não há nenhuma inteligência artificial que consiga combater, que é a experiência do espetáculo ao vivo. Porque é muito mais do que ouvir música: é uma experiência social e sensorial, tem a ver com a visão, o olfato, o paladar… E isso por enquanto é irreplicável pela inteligência artificial. É quando as pessoas aproveitam para estar com os amigos e com as famílias, para irem beber um copo e jantarem fora, para conversarem.”
André Miranda defende que os músicos artificiais não conseguirão competir com os músicos humanos, até porque a “razão pela qual um artista tem fãs tem muito a ver com a sua personalidade, com quem o artista é”. “Acho difícil que uma inteligência artificial possa competir com um artista nesse nível. Não sei se o pessoal iria achar a mesma piada. Mas os artistas terão de se diferenciar cada vez mais por outros meios. Por isso é que é muito importante o personal branding, o marketing, os concertos, criar um público e ter um nicho… Vai ser cada vez mais importante.”
João Maia Ferreira comenta no mesmo sentido: “Do ponto de vista comercial, não acredito que vás ter grandes artistas de IA. Porque acho que uma das grandes coisas que consegues identificar na relação entre ouvinte e artista é a ligação emocional que vem através da autenticidade da obra. A fragilidade e humanidade do autor. Não acredito que uma pessoa se consiga conectar com uma máquina da mesma maneira que se consegue conectar com alguém de carne e osso. Não vejo artistas que são inteiramente digitais ou completamente artificiais a tornarem-se algo que não seja uma simples moda”.
Em termos criativos e artísticos, Bia Maria também não se sente “ameaçada” pela inteligência artificial. “Ela pode conseguir replicar, mas nunca vai conseguir adivinhar o que vou eu fazer no futuro ou que ideias me vão passar pela cabeça. No plano criativo e artístico, isso é nosso e temos de continuar a mantê-lo vivo.”
Acima de tudo, parece unânime que se trata de uma realidade cada vez mais presente e que urge refletir de forma coletiva para evitar problemas maiores. Vasco Sacramento remata: “Uma das coisas que mais me entristecem na música em Portugal é, muitas vezes, a falta de reflexão que existe e a falta de organização setorial para pensar em todos os problemas e as complexidades que nos afetam além da gestão do dia a dia. Acredito que a SPA e a GDA já se estejam a debruçar sobre este problema, mas é uma realidade sobre a qual, por exemplo, ao nível da Associação de Agentes e Promotores, ainda não falámos. E provavelmente teremos que conversar todos, os diversos setores da indústria musical, e envolver muito os artistas nisto, porque os grandes ameaçados são os criativos. Isto também tem que partir deles, até por causa da visibilidade que têm, porque será preciso fazer exigências ao poder político — porque obviamente isto é tudo política e economia — não só ao nível nacional, mas também europeu”.