Esta conversa também passa pelo entoar de uma canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil, eternizada na voz de Gal Costa, “Divino Maravilhoso”: “É preciso estar atento e forte / Não temos tempo de temer a morte”. Para Lia Rodrigues, uma das figuras mais importantes da criação artística contemporânea no Brasil, o movimento e a dança, em concreto, fazem parte de um gesto interventivo e engajado de estar no mundo. Não há outra forma, diz. O seu percurso, nomeadamente com a Lia Rodrigues Companhia de Danças, as suas criações e o seu projeto educativo desenvolvido na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, refletem um trajeto de quatro décadas onde as artes e a educação se cruzam harmoniosamente. Regressa esta semana a Portugal, onde apresenta na Culturgest, em Lisboa, esta quinta-feira e sábado, dias 13 e 15 de março, as duas mais recentes criações do seu repertório, “Fúria” e “Encantado”, esta última em estreia nacional, apresentada também no Porto, na abertura do Festival Dias da Dança, marcada para o dia 18 de abril.
Em entrevista ao Observador, a coreógrafa fala do seu percurso e das duas criações, que formam um díptico sobre a violência e a beleza, como testemunho assombroso do nosso tempo acelerado, em que não deixam de ecoar temas pujantes e atuais como o colonialismo e a ecologia. São construções vivas, feitas em cocriação com os bailarinos, que andam de mãos dadas – com a sua forma de estar no mundo, mas também com muitos temas que, explica, surgem como perceções posteriores de leitura. Acredita que a dança pode ajudar a criar comunidades, mas que não tem a capacidade de consciencializar sobre o mundo em que vivemos.
A capacidade crítica, realça, está na relação com outras artes e com outras tarefas tão banais quanto importantes, basta ler um livro. “É preciso ser-se feminista, anticolonialista, ter uma noção da desigualdade no mundo, saber o que está a acontecer aos povos indígenas. Isso não é o papel de um espetáculo de dança. Mas é o papel que cada cidadão deveria ter para pensar nos seus privilégios. Eu como mulher branca, de classe média, no Brasil, tive privilégios. Pude construir a minha carreira como artista por isso. Ou seja, os privilégios trazem responsabilidades e a pergunta é como é que eu atuo perante essas responsabilidades?”
Na Europa, bem como no Brasil, não deixa de levantar questões e de se manifestar pela importância da diversidade, sobretudo daquela que se vê em palco que, para si, é lugar para todos os tipos de corpos. Só dessa forma se pode desconstruir equívocos ocidentais, conceptualizados que limitam a forma como olhamos para a arte. O seu trabalho é contínuo e mantém a convicção de produzir para o coletivo, como forma de criar diálogo e formar alianças.
Em “Encantado”, desdobra-se uma longa manta de cobertores. É aí que se dá um processo de transmutação. Os bailarinos transformam-se recorrendo a esses cobertores. Chegamos a um ecossistema natural, colorido e, de certa forma, intocável. Podemos olhar para “Encantado” como uma ode há aquilo que o ocidente não devia poder tocar?
Em boa verdade, a ideia de intocável e de lugar virgem não existe. Trata-se de um equívoco também ele ocidental. A floresta Amazónica foi construída, por isso não existe a ideia desse lugar intocado e virgem. Foi criada, neste caso, pelo conjunto das populações indígenas. A ideia de intocado, que corresponde a uma ideia de paraíso, não se adequa à minha visão. Não é um paraíso o que vemos em “Encantado”, mas sim um lugar que está em permanente mudança. Transmutação, como disse, é uma boa leitura. Nesta criação há sempre algo em mudança, através das várias figuras que atravessam aquele espaço, onde o humano está junto com o que criámos de não-humano. É um mundo tocado, transformado com as mãos e com a criatividade que os artistas usam para dar lugar a essa transformação.
Mas em palco, dá-se visibilidade a esse mundo que adquire outras formas.
É um mundo com uma natureza, talvez, de outras dimensões, de outras sensibilidades. É um mundo que toca o psicadélico e o onírico. É o mundo que ali criámos com os nossos encantados (bailarinos), com os nossos seres e com um material muito barato, os cobertores, que muitos moradores de rua no Rio de Janeiro usam para se proteger do frio. É um material simples, de todos.
Como é que se vai desse simples para essa ideia de transmutação?
É complexo e tem de ser matematicamente realizável. O trabalho é inteiramente coreografado e na verdade pegamos nos mesmos cobertores para fazer as mesmas figuras. A ideia inicial de trabalhar com esses cobertores foi um acaso. Quando começo uma criação, começo com uma coleção de imagens e peço aos restantes artistas que cocriam a fazerem o mesmo. Fazemos um mural, e ficamos ali olhando e imaginando. Entre essas imagens há uma foto de um morador de rua, em que ele está com um cobertor desses, e quando se olha, não se tem a certeza se é uma pessoa ou outra coisa. Como eu tinha na mala uns cobertores, dei para os bailarinos e disse para experimentarem. Começámos então a trabalhar com dois cobertores e deu certo. Fui ao mercado e fui comprando mais. Cheguei assim aquela profusão de cor, de padrão animal e cada um dos bailarinos foi criando um universo próprio.
Está lá presente o mundo indígena, a floresta, a biodiversidade: elementos que compõem uma dança repleta de simbolismo.
Mas não sei como é que esses temas estão lá. Quando a gente fez, eu fiquei pensando sobre esses temas – até porque o cobertor é completamente artificial, mistura zebra, com flor… – mas essa perceção é posterior. É uma perceção interessante que o espectador tem, mas não está necessariamente na criação, que demorou oito meses a ser feita. Não dissemos “vamos criar uma floresta ou pensar nas populações indígenas”… aquilo aconteceu naturalmente, mas, como disse, é uma floresta muito artificial. Esse jogo entre o artificial e o natural tornou-se muito claro para nós. A toda a hora há novas camadas de perceção que dão outra forma a esse trabalho.
Mas há esse lado de consciencializar através da dança?
Acho que não. O que pode consciencializar as pessoas é elas lerem, estarem atentas… um espetáculo de dança sozinho não vai fazer isso. É preciso que cada pessoa tenha uma consciência crítica. É preciso ser-se feminista, anticolonialista, ter uma noção da desigualdade no mundo, saber o que está a acontecer aos povos indígenas. Mas isso não é o papel de um espetáculo de dança. É o papel que cada cidadão deveria ter para pensar nos seus privilégios. Eu como mulher branca, de classe média, no Brasil, tive privilégios. Pude construir a minha carreira como artista por isso. Ou seja, os privilégios trazem responsabilidades e a pergunta é como é que eu atuo perante essas responsabilidades? Como é que posso construir novas alianças, dar visibilidade a outros pensamentos, outros corpos e outras formas de estar no mundo?
A arte e a dança podem ser uma ignição para pensarmos nessas formas de estar no mundo?
Podem e devem, mas depende do espectador. É essa a grande beleza de uma obra de arte, principalmente quando ela se pode experienciar ao vivo. Mesmo quando se lê um livro ou se vê uma pintura num museu, somos totalmente livres para dialogar com aquela obra. E vai incitar perguntas que essa obra também não consegue responder. Essa relação de liberdade, que é rara e preciosa, acontece no encontro do espetador com a obra de arte.
Cada vez mais, há uma visão desconstrutivista da dança; a Lia fá-lo há mais de três décadas e já chamou às suas criações de “não eurocêntricas”. Olhemos para “Fúria”, que traz de volta a Portugal. Foi um intenção consciente, construir este espectáculo com uma mensagem?
A “Fúria” pode ser vista em várias camadas. Quando foi criada, com o mesmo sistema de recolher imagens e de fazer um mural, o objetivo era falar sobre dominação e submissão. É claro que o colonialismo ou o racismo estrutural estão dentro da peça, mas também o machismo e o patriarcalismo. São situações claras de dominação e submissão. Mas há também alegria… é mais complexo que isso. Não tem um sentido fechado. Trabalhamos algumas formas de submissão, mas fomos misturando sem legenda outras camadas. A legenda que se dá a um trabalho encerra as múltiplas possibilidades de sentido. Procuro não atribuir uma legenda, para que depois essas leituras e os seus sentidos se vão ampliando e transformando. Mas é latente esse lado do colonialismo, porque faz parte do que estamos a discutir atualmente.
Liga-se também com o seu trabalho exaustivo que tem feito, de dar palco a outro tipos de corpos.
Aconteceu junto da transformação do mundo e do Brasil em relação ao racismo estrutural que atravessa a nossa história. A dança contemporânea, mesmo em Portugal, foi sempre muito branca apesar do seu passado colonial. Basta olhar e historicamente ver os corpos que dançavam e as pessoas que coreografavam. Até ir para a Maré [bairro no Rio de Janeiro, constituído por favelas] não tinha nenhuma pessoa negra na companhia. O facto de ter mudado de território e de eu própria ter mudado, de me ter alfabetizado em relação a isso e aprendido uma outra forma de estar no mundo, mudou a minha perceção de dança e dos corpos em palco. A minha ida para o Complexo de Favelas da Maré foi guiada em primeiro lugar pela desigualdade e depois fui me letrando em tantas outras questões do Brasil e do mundo, como o racismo estrutural.
E pelo flagelo que observava?
O Brasil é um país desigual, desde sempre. É um país extremamente racista, está impregnado na sua estrutura. Nos países que foram colonizados essa condição reproduz-se de uma forma terrível, basta ver o número de pessoas que são assassinadas e quem elas são. As pessoas negras, indígenas e trans não tinham visibilidade na arte contemporânea naquele momento.
Quando estava na Europa, no princípio da década de 1980, esteve na criação de “May B”, a célebre peça da Companhia Maguy Marin. Já se falava no lugar dado aos diferentes tipos de corpos?
A peça trabalhava sobre a obra de Samuel Beckett, mas a questão dos corpos não era um tema trabalhado ou discutido. Isso aconteceu depois, com as mudanças que se verificaram, mesmo nas instituições. Essa perceção e leitura da peça é muito mais recente.
Olhando para esse tempo, considera que era possível ter feito esse tipo de transformação se tivesse continuado na Europa?
Não posso dizer. Não consigo imaginar. Sei que no Brasil sou uma mulher branca de classe média, mas quando chego à Europa sou uma mulher brasileira que carrega todos os preconceitos dos olhos das pessoas que fazem arte contemporânea, que é um conceito europeu. Ainda se olha para quem vem do Sul de uma forma muito diferente. O meu trabalho sempre foi olhado assim e para mudar essa forma de relacionamento foi preciso muito tempo para entender como na base estava uma relação de autoritarismo e de dominação.
Ainda sente essa diferença quando apresenta as suas criações na Europa?
Completamente. É muito diferente apresentar um trabalho feito no Brasil, feito por brasileiros naquele lugar. O público é mais diverso, o trabalho é visto de outra forma e as discussões são outras.
Ao longo de praticamente 20 anos, que tem estado no Complexo de Favelas da Maré, na zona periférica do Rio de Janeiro, a dança adquiriu um poder transformador e social. Acredita nesse lado mais pedagógico?
Acredito muito na educação. Um dos meus guias é o filósofo e pedagogo Paulo Freire, muito importante no Brasil, e que demonstrou há muito tempo, como a educação feita de certa forma, se torna libertadora. A educação pode trazer uma consciência política e eu acredito nisso. Faz parte do movimento de ir para a Maré, de fazer uma parceria com a associação Redes da Maré, e discutir ao longo desses 20 anos o que poderia ser um espaço e um território para as artes dentro da favela, além de uma escola de dança, a Escola Livre de Dança da Maré. Ao longo desse período temos seguido linhas diversas. Até lhe chamo pedagogia mutante, porque os alunos transformam-nos e o mundo também nos transforma. É flutuante e vamos formando e sendo formados. E ter um lugar para essa educação acontecer é muito importante. O Centro de Artes da Maré é esse território criado em parceria com a Redes da Maré e que abriga muitas outras atividades. Tenho a certeza que o lugar onde trabalho articula-se com o meu fazer artístico. Por isso é que não consigo separar a artista da cidadã.
Sempre disse que era uma coreógrafa militante e engajada.
Engajada sou. Quanto a militante, às vezes tenho um pouco de receio dessa palavra, mas milito mesmo nas coisas em que acredito. Tento organizar, fazer alianças, que é uma das palavras bonitas – fazer aliança com quem é diferente. Não é só permanecer num grupo fechado em que toda a gente pensa igual. Dá muito trabalho fazer alianças e conviver com pessoas diferentes.
Há 20 anos muita gente diria que o seu projeto era utópico. Mas há formas de criar comunidades nos lugares mais inusitados?
Sem dúvida. Tudo depende do desejo, de investimento e de encontrar os parceiros certos. É uma luta que não acaba. E tempo, tudo é construído no tempo. Estou lá há 20 anos, mas parece que comecei ontem e ainda há muito por fazer.
Aprendeu mais do que ensinou?
São aspetos que caminham em paralelo. A gente aprende, mas também ensina. Às vezes quando se ensina mais também se aprende mais.
Mas mudou-a como coreógrafa, certamente.
Se não mudasse, não seria humana. Tal como a maternidade me transformou enormemente. A vida transforma-nos todos os dias.
As duas peças que traz a Portugal formam um díptico, mas são marcadas por diferentes pulsões: “Fúria” é marcada pela violência, e “Encantado” pelo festejo.
Pensei num díptico porque tal como todos os meus trabalhos, eles dão as mãos e falam de coisas que para mim, num dado momento, são importantes. Agora, em relação as essas pulsões de que fala, sinto que esses conceitos engessam o meu trabalho; diria que é um jeito de observar muito ocidental e que formata. São conceitos interessantes, mas não são os únicos que existem. A pergunta é como é que podemos olhar para uma obra de uma forma menos localizada e em que não se pode mexer? Porque “Fúria” falam de encantamento e o “Encantado” fala também de violência e de fúria… diria que a todo o momento estas duas criações dialogam entre si, numa perspetiva holística, em que uma criação atravessa a outra. É dessa forma que gosto de olhar para os meus trabalhos.
Mesmo já tendo passado algum tempo desde a criação, como olha para esta duas peças que apresenta agora em Portugal?
Tudo muda, mesmo os bailarinos. Mas é interessante ver como é que se faz com que um trabalho permaneça vivo durante muito tempo. Trabalho muito na ideia de repertório e como é que, por exemplo, o “Fúria” pode ter contacto com o publico que vê hoje. Tem de ser uma construção forte que pode ser passada para o outro. Isso é muito importante e vivemos disso mesmo. A companhia vive exclusivamente da venda dos nossos trabalhos, não temos apoios. Costumo dizer que vendo laranjas, e se vender dez ótimo. Mas para isso as criações têm de estar vivas.
Estas peças encerram um capítulo no seu percurso?
Acho que podem continuar. Tenho vontade de ir para outro lugar ainda assim. Agora questiono-me: para onde é que vou agora? Será que vou fazer um tríptico e de que forma é que poderia responder a estas duas criações?
Será mais fácil encontrar respostas para essas questões no Brasil pós-Bolsonaro?
Não acho que seja mais fácil, acho que é melhor para o Brasil. O meu caminho é independente de Bolsonaro e do Lula. É um caminho que tem de ser encontrado em qualquer lugar ou em qualquer contexto.
Estas duas peças têm reflexos daquilo que foi o Brasil nos últimos anos?
Com certeza, porque o lugar onde se cria está dentro da peça. Era impossível não ter. Foram seis anos de uma destruição muito forte dos valores democráticos.
Há mudanças em curso no Brasil. Deixam-na mais tranquila como artista?
Há muitas mudanças em curso e maravilhosas, mas não me deixam tranquila. Porque até se concretizarem eu preciso continuar a sobreviver e a fazer os meus projetos sobreviverem.
Há sempre fúria e encantamento?
As duas. É isso tudo. E mais mil coisas ao mesmo tempo.
“É preciso estar atento e forte”, recordando a frase de Caetano Veloso que citou numa outra entrevista.
Sim. “Não temos tempo de temer a morte”, parafraseando Caetano Veloso na sua música ‘Tudo é divino maravilhoso’.
Isso faz parte de ser brasileiro e de estar no mundo?
Sim! Mas penso que não só no Brasil. Aqui em Portugal também. De ser brasileiro e de estar no mundo. É muito importante percebermos que estamos todos juntos no mesmo planeta.
A sua dança é sempre um gesto interventivo?
Nas minhas ações concretas isso é visível. Mantenho sempre a ideia de fazer projetos para o coletivo, para mais pessoas. Funciono melhor quando estou cercada por pessoas que também estão a fazer seus projetos. A diversidade é maravilhosa.