Ricky Gervais saltou do anonimato para a glória quando, em 2001, a BBC exibiu a série que o inglês escreveu e protagonizou, The Office. A minha memória não me permite afirmar que a vi de imediato – na altura as coisas chegavam a Portugal com um atraso de um a dois anos e já fora pior: Seinfeld apareceu por cá com uns bons 4 ou 5 anos de atraso.
Mas não esqueço a surpresa e o incómodo com o que saía do ecrã: filmado como um falso documentário, The Office vivia do constrangimento que provocava: a câmara seguia o dia a dia dos empregados de uma sucursal de terreola de uma empresa de papel e começava aí a nossa confusão: porque é David Brent, chefe da sucursal e representado por Gervais, falava constantemente para a câmara?
Por esses dias não havia muita informação acerca do que nos aparecia na TV – a internet ainda gatinhava, não havia aparelhos smart cheios de conteúdo descritivo sobre os programas e, apesar de já existirem telemóveis, ainda eram tijolos que colocávamos na mochila, não no bolso. Mas, OK, tudo bem, assumimos que a série era uma espécie de documentário e seguimos com a vida, episódio a episódio.
A segunda camada de constrangimento começava aí: a postura de Brent era a de quem queria muito ser filmado (por quem quer que fosse que fizesse o doc) e visto (pelos que partilhavam o mesmo espaço de trabalho). Forçava piadas, forçava relações de falsa intimidade com os seus colegas – era uma daquelas pessoas narcísicas para quem qualquer momento tem de ser acerca delas, mas a quem o que sobrava em necessidade de atenção faltava em noção. Não gosto de avaliar objetos culturais tendo como critério aquilo que antecipam sobre o futuro, mas The Office parecia denunciar a sociedade do culto do personal branding em que vivemos agora.
O narcisismo não era o único alvo dos autores: a resignação, a ignorância, a mesquinhez de Brent — mas também dos outros personagens da série — acabavam por constituir um retrato ácido, quase sem piedade, da classe média britânica. A ausência de piedade era altamente sedutora para alguém novo, aterrorizado com a possibilidade de no futuro se tornar tão chato quanto os próprios pais – aquela escrita não poupava ninguém.
Anos depois, The Office criou uma sucursal nos EUA – forma de dizer que os americanos fizeram uma versão. Não a vi durante anos, presumindo que não houvesse grandes diferenças e que decerto não seria possível fazer melhor. Mas estava enganado: se na primeira temporada da versão americana o tom ainda era de bílis espremida em dias azedos, e o chefe de sucursal mantinha os traços narcísicos, misóginos e ligeiramente racistas do original britânico, lentamente os argumentistas começaram a olhar para as outras personagens, a fazê-las crescer e a dar, até ao próprio Carrell, uma oportunidade de deixar de ser um bebé grande e se tornar homenzinho.
E ali estava, escancarada, a diferença entre olhar de forma completa para as pessoas (versão americana) e olhar com desdém (versão inglesa). Gervais fez – entre outras coisas, ele que tentou ser uma estrela da música pop na década de 80, com a banda Seona Dancing, na qual era vocalista – a série Extras e começou a dedicar-se ao stand-up, disciplina em que, na minha modesta opinião, nunca esteve à altura dos mestres da sua geração: Seinfeld, Chris Rock, Dave Chapelle, Louis CK. Cada um destes é, à sua maneira, um virtuoso, seja no aspeto formal da escrita, seja no modo como encadeia as piadas, as reforça (vem-me à cabeça Chris Rock a repetir a punchline de cada piada) ou no encarnar a personagem da piada (algo em que CK é especialista).
Ao contrário dos restantes, que vinham de décadas de stand-up, a começar em clubes pequenos, até chegarem à TV, Gervais foi diretamente para a televisão e só depois procurou aprender a arte de dizer piadas encadeadas com um assunto comum. Isto pode ter sido uma vantagem (já era uma estrela, tinha o público na mão) e uma desvantagem: convém aprender uma arte na sombra, de forma discreta, cometer erros, aprender o que funciona e o que não funciona, desenvolver uma linguagem em que o comediante se sinta à vontade.
É possível que a necessidade de ser gostado o tenha levado a ser facilitista regularmente nos stand-up: o grotesco, o xixi e o cocó ocuparam sempre uma alta percentagem das piadas; Gervais podia ser uma estrela, mas não era um nome com lugar cativo no firmamento das constelações, era um recém-chegado que queria a todo o custo manter o novel estatuto.
Ao mesmo tempo, Gervais tornou-se uma estrela polémica do Twitter, sempre em defesa dos direitos dos animais, sempre a atacar qualquer tipo de religião. Isto valeu-lhe a simpatia de muita gente, mesmo quando foi atacado por todos os lados enquanto apresentador dos Globos de Ouro, atividade em que o seu lado cáustico e quase cruel se tornou notório (mas, enfim, ele estava a bater em quem é poderoso e tinha graça e, para ser absolutamente sincero, considero aquele vídeo do Youtube que reúne os monólogos de Gervais nos vários Globos de Ouro uma obra-prima na arte de gozar com quem se leva demasiado a sério).
De então para cá tem-se concentrado em specials da Netflix e a sua cruzada (pró-animal, anti-religião) mudou: agora os seus alvos não são os fundamentalistas religiosos, são os garotos woke que não apreciam o uso da palavra faggot (“paneleiro”, em português). Gervais passou special de comédia após special de comédia após special de comédia a ocupar a largura de banda da Netflix numa luta contra o que chama a polícia de linguagem, agindo como se fosse um homem perseguido e vítima de cancelamento, enquanto enche salas de espectáculo pelo mundo fora e dispara (mais) specials de comédia uns atrás dos outros enquanto diz o que bem lhe apetece.
Isto levou ao surgimento de uma teoria curiosa: Gervais seria melhor enquanto argumentista do que enquanto ator ou cómico de palco. A teoria serve quem aprecia After Life (que me parece uma obra menor, em parte porque Gervais não é um bom ator, mas em igual medida porque a escrita é lamechas e pouco subtil) e esquece que The Office foi escrito a quatro mãos — e Gervais nunca atingiu o mesmo pico desde que deixou de trabalhar com Stephen Merchant.
E assim chegamos a Armageddon, o seu mais recente especial, em que começa de imediato a falar das críticas que o último special, Super Nature, recebeu – e depois lembra que o mesmo ganhou uma data de prémios. Não é raro que o assunto de um special seja o próprio comediante – ou uma versão efabulada do comediante, que é colocado numa viagem pelo mundo confuso em que vivemos. Gervais faz-nos entrar num comboio em que numa carruagem nos explica como ele mesmo é um génio, noutra carruagem faz uma piada grotesca e na seguinte nos explica que “paneleiro” é só uma palavra que está a ser usada numa piada e ele não a usa na vida real — para na carruagem seguinte nos recordar que é rico e famoso, lembrando na próxima que o significado das palavras depende do contexto, etc.
Em certa medida, Armageddon é um meta-espectáculo. Supostamente, tem como tema subjacente o facto de todos morrermos um dia, inevitavelmente. Mas é, na verdade, uma hora de Gervais a lembrar que é rico mas está a ser cancelado porque as novas gerações não gostam que se use a palavra “handicaped” (“deficiente”, em português) e que quando ele usa a palavra “handicaped” está a usá-la no contexto de uma piada e quem não compreende isto é um miúdo mimado (ou uma miúda, até que inevitavelmente ele também aproveita para gozar com a identidade de género e os seus pronomes).
Isto poderia ser interessante – se Gervais se permitisse o espaço para admitir que aqui e ali pode estar errado, se quando olhássemos para o palco entrevíssemos uma pessoa a tentar perceber o seu lugar num mundo que está em mudança. Mas não é isto que Gervais oferece: ele coloca-se na posição da pessoa que está certa, a gozar com quem não concorda com ele, enquanto nos explica como uma piada funciona.
E o problema de Armageddon é este: é tremendamente chato passar uma hora a ver um tipo fazer ocasionalmente piadas no intervalo de nos lembrar que é rico e dizer handicaped e depois explicar que dizer handicaped é OK porque é piada – sem se lembrar que handicaped só será OK se servir um propósito maior, em vez de serem joguetes usados para provar que o comediante tem razão nas suas querelas no Twitter.
Gervais diz: “Os handicaped agora querem ser chamados disabled” e faz uma rábula em que uma mãe pede ajuda porque “my handicaped son is drowning”. Nisto chega um woke e fica a moer a paciência à mãe até que esta finalmente diz que o filho que se está a afogar é “disabled” e não “handicaped” e nisto o woke vai ajudar o filho, mas ele já se afogou.
Não é uma má piada (no sentido em que mostra que muitas das discussões sobre linguagem que temos nos nossos dias acabam por ser espúrias e dividir as pessoas em vez de as fazer olhar para o bem comum), mas é triste que seja de longe a melhor piada em todo um special em que, a dada altura, Gervais chega mesmo a perguntar se sabemos o que é apropriação cultural, queer, retarded, woke, critical race theory – e faz uma piada para cada, sendo que por azar nenhuma delas é propriamente boa (tirando a do filho que se afoga).
Gervais acerta mais duas ou três vezes: quando goza com casamentos, quando diz que em vez de deitar abaixo estátuas seria mais interessante adicionar informação entretanto descoberta, do género “Inventor, navegador, astrólogo, um pouco racista” ou “Químico, Tradutor, ligeiramente pedófilo”, mas depois acaba a fazer uma piada em que um pedófilo chinês aproxima-se de um miúdo e pergunta ao miúdo se este quer um cachorrinho, ao que o garoto chinês responde “não, obrigado, não tenho fome”.
Todos estes assuntos podem e devem ser discutidos – no final, Gervais pondera se é woke ou não, se ser woke é defender a igualdade ou ser um tiranete que quer que uma pessoa seja despedida porque escolheu a palavra errada; isto pode e deve ser discutido. Mas de um comediante espera-se que use estas mudanças culturais para pôr-se a si mesmo e à sociedade em causa – e não que passe uma hora a dizer retarded enquanto nos explica que pode dizer retarded porque é uma piada, tendo-se esquecido de fazer de facto uma piada.
Armageddon é 49,5% narcisismo, 49,5% semiótica pedestre e 1% piadas, algumas ligeiramente retarded (é assim que se faz, Ricky), e isso, como qualquer fã de humor sabe, é a fórmula científica da decadência artística.