“Não sou interessante”, diz uma mulher de cabelos brancos. “Sou uma senhora idosa, o que é que eu tenho de interessante?”. Alexander Zeldin discorda. O dramaturgo inglês, conhecido sobretudo pela trilogia sobre desigualdades sociais — Beyond Caring, Love e Faith, Hope and Charity — tem uma nova peça, o seu trabalho mais focado e pessoal até à data, inspirado na história de vida da sua mãe. Em The Confessions, que se mostra em duas récitas apenas, esta sexta-feira e sábado, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, assistimos ao desenrolar da vida de uma australiana, nascida em 1943, que decidiu emigrar para o Reino Unido.
O espetáculo, que abarca oito décadas, começa em 2021 antes de recuar até à juventude de Alice que, pressionada pelos pais, é convencida a casar com um oficial da marinha, quando, na verdade, quer mergulhar na arte e no mundo académico. “Tinha esta ideia de fazer uma vida inteira em palco”, conta Alexander Zeldin ao Observador, dias antes da estreia em Lisboa.
Dada a reputação que foi conquistando desde Beyond Caring (Além da Dor, na versão portuguesa apresentada pela Companhia de Teatro de Almada), em 2014, que o catapultou para o leque de um dos mais entusiasmantes nomes do teatro britânico nos últimos anos, Zeldin poderia escolher qualquer figura para biografar e estrela de cinema para a interpretar. “Toda a gente me dizia, por favor, faz uma peça sobre a prisão, sobre um hospital, ou sobre uma estrela de cinema”, relembra. “Tudo coisas que podia fazer, honestamente.”
Porém, o dramaturgo tinha outros planos: “Queria dar a uma vida comum uma espécie de grande tela. Queria fazer algo muito pessoal e transgressivo”. Isso significaria escrever a epopeia pessoal da sua mãe — mesmo tendo escutado “Quem raio é a tua mãe?”. “Sempre fui muito próximo da minha mãe, mas não sabia muito sobre a vida dela antes de nascer”, admite. Num tempo pandémico em que a fragilidade da vida se impôs sobre todos os temas, entrevistou-a durante quatro dias, numa série de conversas que lhe valeram oito horas de gravações. “Essas entrevistas pareceram-me, de repente, que estavam a traçar o destino de uma mulher que tentava ser ela própria contra o tempo”. No palco do CCB, em duas horas se conta a vida de uma mulher da classe trabalhadora que atravessa o século XX. Mesmo nos seus momentos mais pessoais, The Confessions não deixa de contar a história de um tempo coletivo e das forças que moldaram o nosso presente.
“Deixei-a falar”, recorda Alexander Zeldin. Sem perguntas concretas ou um guião estipulado, “as imagens surgiam-lhe como num sonho. Eram essências de situações que se sentiam prontas para estar em palco”. O inglês esculpiou a narrativa com outras entrevistas que fez, a outras mulheres de idades semelhantes, baralhando a realidade e a ficção. “Esta peça flirta com o que é mais íntimo na minha vida. Mas dei-lhe uma forma que é distante. O nome da minha mãe não é Alice. E não digo o nome da minha mãe a ninguém. Esta linha entre a ficção e a realidade é muito interessante para mim.”
O que é real: Alexander foi à Austrália pela primeira vez em vinte anos para seguir literalmente as pisas da mãe. “Fomos pouco a pouco e reencenámos a peça em todos os locais reais. Incluindo o penhasco onde alguém a tenta matar”, desvenda. Isto porque quem espera uma mulher comum será surpreendido com uma história ímpar — só que ímpar como tantas outras, defende o autor. Por exemplo, foi apenas durante o processo de trabalho para a peça que o Alexander descobriu um episódio de abuso sexual. “Voltei aos sítios onde ela tinha sofrido, onde tinha sido feliz. E tentei sentir algo desses sítios”, solta.
Depois da confissão, “sinto-me um pouco mais livre”
Quando a jovem estudante de história de arte Alice diz que todo “o pessoal é político”, é contestada por um homem arrogante que logo lhe diz que “depende da pessoa”. Questionamos o dramaturgo sobre a passagem. “É um idiota, esse gajo”, diz Zeldin. “Há um pouco dele em todos os homens, infelizmente. Em todas as mulheres, penso eu, também”, lamenta. “Completamente comprometido” com o teatro, o dramaturgo inglês acredita em duas coisas: “acho que a arte nos dá conforto. E faz-nos sentir vistos”, diz, evocando a origem da palavra teatro, que significa “lugar onde se olha” (“theatron”, em grego antigo). “A premissa básica do teatro é poder ver algo que não poderíamos ver de outras forma. Podemos ver coisas invisíveis”, continua. “É como um sentimento ou uma certa verdade que sabemos, mas que não conseguimos dizer até que nos seja dita. E então sentimo-nos vistos e reconhecidos. E este é um sentimento muito profundo de ser um ser humano, de estar vivo. E o teatro é esta tecnologia ancestral, um milagre que ativa isso em todos nós. Quando nos aproximamos do teatro, entramos cada vez mais no teatro da nossa vida.”
“Quero falar sobre arte e como a arte nos ensina a viver”, escuta-se da voz de Alice. “É uma jovem mulher, com toda a gente contra ela, a tentar fazer algo incrivelmente corajoso, a tentar ver por si própria”, comenta o dramaturgo. No fundo, “o teatro consiste em tentar algo. Não é fazer alguma coisa. Se chegarmos ao fim, é aborrecido. Temos de estar sempre a tentar.”
Se as suas peças antecessoras lidam com a dignidade humana, a resiliência, a precariedade, hoje Alexander Zeldin tenta desligar-se da catalogação externa do seu corpo de trabalho. “É simplista, porque essas peças não são só sobre questões sociais”, disse ao jornal The Guardian em 2022. Como olha ele próprio para o trabalho que vem construindo, identifica temas? “Provavelmente diria liberdade, cada vez mais”. “E talvez amor. Amor é importante”.
Uma coisa é certa, The Confessions foi determinante para uma nova página que afasta este autor da gaveta “realismo social inglês” em que era colocado. “Depois de ter feito [esta peça], sinto-me um pouco mais livre. Essa é a verdade… Sinto-me um pouco mais livre”. Evoca a lição do seu mentor, Peter Brook, de quem foi assistente. “Ele costumava dizer-me: ‘Quando chegamos ao topo de uma montanha, apercebemo-nos de que há outra’. E é verdade.”
Qual será a próxima montanha de Zeldin? Na parede da cafetaria do CCB, o seu olhar pousa sobre o cartaz de Vitalina Varela (2019), filme do cineasta português Pedro Costa de quem o dramaturgo admite beber influências. Cita Ossos (1997), que descobriu há “10 ou 15 anos”, e que foi “um grande abanão”. “Há uma dignidade da imagem que é pictórica. E há uma relação com o tempo que é muito original. Isso cria uma espécie de sentimento interior… Há um olhar que não é só o olhar deles. É a forma como ele [Pedro Costa] olha. Sou muito inspirado pela forma como ele filma pessoas. É com muita empatia e muita verdade. Encontrou uma forma que é real. Não está a mentir.”
O mundo é uma sociedade de mentiras e Zeldin quer contar a verdade (mesmo com laivos ficcionados pelo meio), seja no teatro ou no cinema. Sobre este último, admite: “Estou a tentar”. Este mês, mostra na Schaubühne — onde é o “artista em foco” no festival de teatro dedicado a novas dramaturgias —, em Berlim, a adaptação fílmica da sua peça Love (que passou pela Culturgest em 2021). “Acho que [o filme] é um fracasso honroso, para ser sincero”, diz com um sorriso ao Observador. Mas Zeldin tem uma ideia para uma longa-metragem que já está a preparar entre França e Inglaterra. Sobre isso pouco se descose, culpando apenas a morosidade e “impaciência”. “O cinema é novo para mim. Acho que preciso de mais tempo para saber o que quero dizer no cinema. Ao passo que no teatro… há muitas coisas que quero dizer.” Em outubro, no National Theatre, em Londres, haverá uma nova peça para ver.