910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

Getty Images

Getty Images

A extremamente desejável morte térmica do futebol

Rogério Casanova parte de Alexandre, o Grande, para falar do que tem sido a nossa participação no Euro e de como ela pode acabar (e pelo meio arrasa o Brasil).

Antes de cada batalha importante, Alexandre o Grande fingia ter sono e bocejava constantemente, de forma a transmitir calma: a si próprio, ao chefe de gabinete, aos respectivos assessores. Não há registo histórico do que faziam os adeptos macedónios para passar o tempo e disfarçar o nervosismo antes do apito inicial, mas não é difícil imaginá-los a debater – nas barbearias de Pella, nas esplanadas de Anfípolis – as questões mais prementes do dia. Não podemos atravessar o Helesponto com uma formação mais ofensiva? Não devemos marchar pela Anatólia adentro em cavalos mais bonitos? Alguém já viu a ficha médica do jovem Asclepiodorus?

O Euro 2016 está a poucas horas de terminar, e é natural que por cá se coloquem questões tão exóticas quanto estas, pois ninguém percebeu ainda muito bem o que é que nos aconteceu. Da incerteza prévia, da semi-desilusão inicial, passámos à gradual acumulação de triunfantes empates, navegando numa maré de águas mortas e contingências naufragadas até nos encontrarmos na margem de um dos dois jogos mais importantes que disputámos em noventa e cinco anos de história futebolística.

E de repente, descobrimos o pequeno José Gil que habita secretamente dentro de cada cidadão e começámos a autopsiar a alma nacional, perguntando se toda esta ausência de fintas, toda esta trágica felicidade – toda esta suposta boleia divina de sorteios generosos, cortes de Pepe, disparates de Rakitic e fortuitos golos islandeses – se tudo isto é suficientemente português, ou pelo menos suficientemente “português”.

Há poucas décadas – numa era, apesar de tudo, tão distante que Jorge Mendes possuía apenas um único telemóvel, possivelmente da Alcatel – o futebol português sabia o que era, mesmo que esse conhecimento fosse ilusório, formado pela reacção internacional aos quatro jogos do Euro 96 e carimbado pela troca de passes que precedeu o golo de João Pinto contra a Inglaterra em 2000. Nomeadamente: jogávamos bem à bola, tínhamos magia, tínhamos azar, éramos ineficazes e as pessoas no estrangeiro achavam-nos muito simpáticos. A aglutinação anómala de jogadores talentosos foi tão grande nos anos seguintes que esta auto-imagem foi sobrevivendo, mesmo quando se tornou hábito despedirmo-nos de grandes competições entre arraiais de porrada e consternação geral.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

UNITED KINGDOM - JUNE 09: EURO 1996 DEN - POR 1:1 Sheffield; Team PORTUGAL (Photo by Bongarts/Getty Images)

Em 1996, Portugal empatou com a Dinamarca. A excelente exibição da equipa das Quinas mereceu, até, aplausos dos adeptos dinamarqueses (Bongarts/Getty Images)

O facto de, desta vez, sermos mais ou menos consensualmente irritantes parece ter-nos enfiado vários dedos metafóricos em várias feridas de carne viva, e decidimos reagir exigindo não apenas vitórias, mas substância ideológica: sentimos que um legado cultural está a ser desrespeitado se não houver constantes reiterações de que pertencemos a uma tradição concreta, que além de perdurar no tempo e sobreviver à regeneração dos executantes, permita reflectir uma qualquer projecção do que é a nossa “identidade”, e gritar aos quatro cantos do relvado que não somos a Grécia. São de facto tempos complicados, e vamos precisar de imensas aspas.

A culpa, ou pelo menos a “culpa”, será da Espanha – mais especificamente das possibilidades que a selecção espanhola escancarou no velho e nem sempre desinteressante debate entre os méritos relativos do virtuosismo e da eficácia. Entre 2008 e 2012 abriu-se uma fenda na realidade, através da qual Xavi, Iniesta, Piqué e os restantes sete anões penetraram vindos de outra dimensão, inventando uma nova forma de reduzir a entropia intrínseca do jogo jogado – onde, mais frequentemente do que gostamos de admitir, as coisas acontecem sem que ninguém saiba como ou porquê – e domesticar a sua complexidade arbitrária.

O problema – e não é, nem foi, um problema para a Espanha; apenas para os outros – é que o sucesso estonteante deste método, associado à reacção imediata em que mil catenaccios floresceram, depressa adquiriu a retórica da autoridade moral; e formou-se a ideia de que uma identidade própria e virtuosa é uma componente essencial para calcular o perímetro legítimo da nossa alegria perante um sucesso desportivo.

Colocar a questão nestes termos ignora factos fundamentais, como por exemplo o facto de qualquer instituição que se assuma como porta-estandarte de uma tradição gerar debates contínuos sobre o significado dessa tradição. As tradições incorporam sempre continuidades de conflito e interpretações divergentes, como provavelmente escreveu um dia o célebre médio-ala-direito escocês Alasdair MacIntyre. Até o Brasil, à sua maneira patusca e histriónica, reconhece essa fluidez, e tem a decência de encenar cíclicas e deliberadamente ridículas crises existenciais, à procura de um mítico equilíbrio entre pragmatismo e fidelidade a um ideal romântico, onde os Zinhos e os Zicos possam coabitar. Mas é duvidoso que mais alguma nação tenha o direito a meter-se neste tipo de alhadas identitárias.

Ganhar uma série de jogos a caminho de um caneco nem sempre é uma narrativa de definição. Raramente o é, aliás, por muito agradáveis que sejam as entrevistas de Xavi na reforma. O que é, quase sempre, é uma vitória improvável num combate em que se defrontam dois conjuntos de potenciais erros não-forçados e de potenciais (e raros) momentos de clareza. A batalha que se ganha é contra os próprios erros. As definições ocorrem mais tarde, e são muitas vezes sujeitas a um higiénico revisionismo para adequar a realidade aos arquétipos que desejamos recordar. A saudosa Holanda de Rijkaard, Gullit e Van Basten começou com uma derrota em 1988 e esteve a oito minutos de ficar pela fase de grupos, salvando-se apenas com um golo em fora-de-jogo contra a poderosa Irlanda. A vilipendiada Holanda de Van Bommel e De Jong marcou doze golos, alguns deles bonitos, em 2010 (apenas a Alemanha marcou mais).

O que temos praticado não é o violento anti-jogo holandês de 2010 nem sequer a o paciente algoritmo de frustração e desorientação tipicamente aplicado pelos italianos, mas sim uma abdicação de responsabilidades que encerra tacitamente – e aqui está o busílis – uma subtil crítica ao adversário: nós não pretendemos fazer mais do que isto, em parte porque acreditamos que vocês também não jogam nada. 

A verdade é que Portugal nunca foi mais do que um de vários candidatos provisórios (Croácia, Rep. Checa) a “Brasil da Europa”. (Um cargo de resto cada vez mais anacrónico, numa altura em que o “Brasil da América do Sul” deixou de existir em 1982, sobrevivendo apenas em anúncios da Nike). A geração de ouro não era muito diferente de uma colecção de galácticos, com a diferença de que não foi preciso Florentino Pérez assinar vários cheques sorridentes para os enfiar todos no mesmo relvado. Mas o futebol que jogavam vinha da colisão espontânea de talentos, e não de um manifesto fundador. Nunca tivemos dimensão suficiente para defender princípios nem para implementar filosofias. E não temos palmarés suficiente para nos ofendermos quando agora nos chamam feios.

Uma interpretação possível dos compreensíveis atritos que o futebol jogado por Portugal ao longo do torneio tem gerado internacionalmente pode procurar-se nas diferenças em relação a outras abordagens defensivas recentes. O que temos praticado não é o violento anti-jogo holandês de 2010 nem sequer o paciente algoritmo de frustração e desorientação tipicamente aplicado pelos italianos, mas sim uma abdicação de responsabilidades que encerra tacitamente – e aqui está o busílis – uma subtil crítica ao adversário: nós não pretendemos fazer mais do que isto, em parte porque acreditamos que vocês também não jogam nada. Até a nossa rejeição da pressão alta tem sido uma prática crítica. Temos jogado cada jogo como se o médio-centro adversário fosse o Modric (mesmo quando é apenas o Joe Allen), mas também como se cada central adversário fosse o Torsiglieri. Mais do que negativa, é uma atitude céptica e, diria mesmo, insultuosamente sarcástica. (Um orgulho!) Mas é também uma reconciliação estética com a natureza aleatória do jogo, executada da forma mais literal possível: abraçando a entropia latente e tentando distribuir uniformemente todas as energias dispersas no campo até que nada – nada – aconteça, e tudo se encaminhe para uma visão utópica definida pela morte térmica do futebol (que é parecido com a morte térmica do Universo, mas por assassinato premeditado).

Qualquer estilo futebolístico coerente tem como objectivo obliterar variáveis para melhor controlar causa e efeito. Nós fazemo-lo não porque as variáveis distorçam um qualquer projecto positivo e original, mas porque permitem a proliferação de oportunidades para haver sorte e azar, e não queremos nada com isso. Basta-nos um ou dois acidentes por jogo, o resto é lastro.

Claro que tudo isto é já mitificação retrospectiva. É outra particularidade do adepto, provavelmente desde os tempos da Macedónia: a crença de que cada resultado era de alguma forma inevitável, e a compulsão para subordinar a essa inevitabilidade os factos recentes antes de estes se reescreverem como memórias distantes.

Se o nosso objectivo na tarde de hoje for (e deve ser) transformarmo-nos no tipo de adeptos que merecem esta selecção – regressem eles como heróicos campeões ou heróicos vice-campeões – não precisamos de ir muito longe para encontrar um modelo: temos Fernando Santos. 

Se o nosso objectivo na tarde de hoje for (e deve ser) transformarmo-nos no tipo de adeptos que merecem esta selecção – regressem eles como heróicos campeões ou heróicos vice-campeões – não precisamos de ir muito longe para encontrar um modelo: temos Fernando Santos. O homem que, em Dezembro de 2015, dizia “queremos jogar bem e ganhar todos os jogos”; que há duas semanas explicou (correctamente) haver uma diferença entre “jogar bem” e “jogar bonito”; que na semana passada disse não se importar de ser campeão só com empates; e que ontem disse “ficar todo contente” se “disserem que Portugal ganhou sem merecer”. Durasse isto mais uns dias e poderíamos vê-lo a dizer que não lamentava as criancinhas que atropelara em passadeiras a caminho do Stade de France, antes de afirmar comovidamente numa conferência de imprensa que o seu sonho de criança sempre fora bater o recorde europeu do fora-de-jogo mais escandaloso a decidir uma final.

A calibração a que Fernando Santos submeteu voluntariamente a sua personalidade ao longo do torneio é um exemplo para todos nós, e não deixa de revelar uma agradável simetria lógica: uma vez que todos nós somos melhores treinadores do que ele, é natural que ele seja melhor adepto do que nós.

Que hoje à noite possamos todos merecer-nos uns aos outros.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.