Antes de cada batalha importante, Alexandre o Grande fingia ter sono e bocejava constantemente, de forma a transmitir calma: a si próprio, ao chefe de gabinete, aos respectivos assessores. Não há registo histórico do que faziam os adeptos macedónios para passar o tempo e disfarçar o nervosismo antes do apito inicial, mas não é difícil imaginá-los a debater – nas barbearias de Pella, nas esplanadas de Anfípolis – as questões mais prementes do dia. Não podemos atravessar o Helesponto com uma formação mais ofensiva? Não devemos marchar pela Anatólia adentro em cavalos mais bonitos? Alguém já viu a ficha médica do jovem Asclepiodorus?
O Euro 2016 está a poucas horas de terminar, e é natural que por cá se coloquem questões tão exóticas quanto estas, pois ninguém percebeu ainda muito bem o que é que nos aconteceu. Da incerteza prévia, da semi-desilusão inicial, passámos à gradual acumulação de triunfantes empates, navegando numa maré de águas mortas e contingências naufragadas até nos encontrarmos na margem de um dos dois jogos mais importantes que disputámos em noventa e cinco anos de história futebolística.
E de repente, descobrimos o pequeno José Gil que habita secretamente dentro de cada cidadão e começámos a autopsiar a alma nacional, perguntando se toda esta ausência de fintas, toda esta trágica felicidade – toda esta suposta boleia divina de sorteios generosos, cortes de Pepe, disparates de Rakitic e fortuitos golos islandeses – se tudo isto é suficientemente português, ou pelo menos suficientemente “português”.
Há poucas décadas – numa era, apesar de tudo, tão distante que Jorge Mendes possuía apenas um único telemóvel, possivelmente da Alcatel – o futebol português sabia o que era, mesmo que esse conhecimento fosse ilusório, formado pela reacção internacional aos quatro jogos do Euro 96 e carimbado pela troca de passes que precedeu o golo de João Pinto contra a Inglaterra em 2000. Nomeadamente: jogávamos bem à bola, tínhamos magia, tínhamos azar, éramos ineficazes e as pessoas no estrangeiro achavam-nos muito simpáticos. A aglutinação anómala de jogadores talentosos foi tão grande nos anos seguintes que esta auto-imagem foi sobrevivendo, mesmo quando se tornou hábito despedirmo-nos de grandes competições entre arraiais de porrada e consternação geral.
O facto de, desta vez, sermos mais ou menos consensualmente irritantes parece ter-nos enfiado vários dedos metafóricos em várias feridas de carne viva, e decidimos reagir exigindo não apenas vitórias, mas substância ideológica: sentimos que um legado cultural está a ser desrespeitado se não houver constantes reiterações de que pertencemos a uma tradição concreta, que além de perdurar no tempo e sobreviver à regeneração dos executantes, permita reflectir uma qualquer projecção do que é a nossa “identidade”, e gritar aos quatro cantos do relvado que não somos a Grécia. São de facto tempos complicados, e vamos precisar de imensas aspas.
A culpa, ou pelo menos a “culpa”, será da Espanha – mais especificamente das possibilidades que a selecção espanhola escancarou no velho e nem sempre desinteressante debate entre os méritos relativos do virtuosismo e da eficácia. Entre 2008 e 2012 abriu-se uma fenda na realidade, através da qual Xavi, Iniesta, Piqué e os restantes sete anões penetraram vindos de outra dimensão, inventando uma nova forma de reduzir a entropia intrínseca do jogo jogado – onde, mais frequentemente do que gostamos de admitir, as coisas acontecem sem que ninguém saiba como ou porquê – e domesticar a sua complexidade arbitrária.
O problema – e não é, nem foi, um problema para a Espanha; apenas para os outros – é que o sucesso estonteante deste método, associado à reacção imediata em que mil catenaccios floresceram, depressa adquiriu a retórica da autoridade moral; e formou-se a ideia de que uma identidade própria e virtuosa é uma componente essencial para calcular o perímetro legítimo da nossa alegria perante um sucesso desportivo.
Colocar a questão nestes termos ignora factos fundamentais, como por exemplo o facto de qualquer instituição que se assuma como porta-estandarte de uma tradição gerar debates contínuos sobre o significado dessa tradição. As tradições incorporam sempre continuidades de conflito e interpretações divergentes, como provavelmente escreveu um dia o célebre médio-ala-direito escocês Alasdair MacIntyre. Até o Brasil, à sua maneira patusca e histriónica, reconhece essa fluidez, e tem a decência de encenar cíclicas e deliberadamente ridículas crises existenciais, à procura de um mítico equilíbrio entre pragmatismo e fidelidade a um ideal romântico, onde os Zinhos e os Zicos possam coabitar. Mas é duvidoso que mais alguma nação tenha o direito a meter-se neste tipo de alhadas identitárias.
Ganhar uma série de jogos a caminho de um caneco nem sempre é uma narrativa de definição. Raramente o é, aliás, por muito agradáveis que sejam as entrevistas de Xavi na reforma. O que é, quase sempre, é uma vitória improvável num combate em que se defrontam dois conjuntos de potenciais erros não-forçados e de potenciais (e raros) momentos de clareza. A batalha que se ganha é contra os próprios erros. As definições ocorrem mais tarde, e são muitas vezes sujeitas a um higiénico revisionismo para adequar a realidade aos arquétipos que desejamos recordar. A saudosa Holanda de Rijkaard, Gullit e Van Basten começou com uma derrota em 1988 e esteve a oito minutos de ficar pela fase de grupos, salvando-se apenas com um golo em fora-de-jogo contra a poderosa Irlanda. A vilipendiada Holanda de Van Bommel e De Jong marcou doze golos, alguns deles bonitos, em 2010 (apenas a Alemanha marcou mais).
A verdade é que Portugal nunca foi mais do que um de vários candidatos provisórios (Croácia, Rep. Checa) a “Brasil da Europa”. (Um cargo de resto cada vez mais anacrónico, numa altura em que o “Brasil da América do Sul” deixou de existir em 1982, sobrevivendo apenas em anúncios da Nike). A geração de ouro não era muito diferente de uma colecção de galácticos, com a diferença de que não foi preciso Florentino Pérez assinar vários cheques sorridentes para os enfiar todos no mesmo relvado. Mas o futebol que jogavam vinha da colisão espontânea de talentos, e não de um manifesto fundador. Nunca tivemos dimensão suficiente para defender princípios nem para implementar filosofias. E não temos palmarés suficiente para nos ofendermos quando agora nos chamam feios.
Uma interpretação possível dos compreensíveis atritos que o futebol jogado por Portugal ao longo do torneio tem gerado internacionalmente pode procurar-se nas diferenças em relação a outras abordagens defensivas recentes. O que temos praticado não é o violento anti-jogo holandês de 2010 nem sequer o paciente algoritmo de frustração e desorientação tipicamente aplicado pelos italianos, mas sim uma abdicação de responsabilidades que encerra tacitamente – e aqui está o busílis – uma subtil crítica ao adversário: nós não pretendemos fazer mais do que isto, em parte porque acreditamos que vocês também não jogam nada. Até a nossa rejeição da pressão alta tem sido uma prática crítica. Temos jogado cada jogo como se o médio-centro adversário fosse o Modric (mesmo quando é apenas o Joe Allen), mas também como se cada central adversário fosse o Torsiglieri. Mais do que negativa, é uma atitude céptica e, diria mesmo, insultuosamente sarcástica. (Um orgulho!) Mas é também uma reconciliação estética com a natureza aleatória do jogo, executada da forma mais literal possível: abraçando a entropia latente e tentando distribuir uniformemente todas as energias dispersas no campo até que nada – nada – aconteça, e tudo se encaminhe para uma visão utópica definida pela morte térmica do futebol (que é parecido com a morte térmica do Universo, mas por assassinato premeditado).
Qualquer estilo futebolístico coerente tem como objectivo obliterar variáveis para melhor controlar causa e efeito. Nós fazemo-lo não porque as variáveis distorçam um qualquer projecto positivo e original, mas porque permitem a proliferação de oportunidades para haver sorte e azar, e não queremos nada com isso. Basta-nos um ou dois acidentes por jogo, o resto é lastro.
Claro que tudo isto é já mitificação retrospectiva. É outra particularidade do adepto, provavelmente desde os tempos da Macedónia: a crença de que cada resultado era de alguma forma inevitável, e a compulsão para subordinar a essa inevitabilidade os factos recentes antes de estes se reescreverem como memórias distantes.
Se o nosso objectivo na tarde de hoje for (e deve ser) transformarmo-nos no tipo de adeptos que merecem esta selecção – regressem eles como heróicos campeões ou heróicos vice-campeões – não precisamos de ir muito longe para encontrar um modelo: temos Fernando Santos. O homem que, em Dezembro de 2015, dizia “queremos jogar bem e ganhar todos os jogos”; que há duas semanas explicou (correctamente) haver uma diferença entre “jogar bem” e “jogar bonito”; que na semana passada disse não se importar de ser campeão só com empates; e que ontem disse “ficar todo contente” se “disserem que Portugal ganhou sem merecer”. Durasse isto mais uns dias e poderíamos vê-lo a dizer que não lamentava as criancinhas que atropelara em passadeiras a caminho do Stade de France, antes de afirmar comovidamente numa conferência de imprensa que o seu sonho de criança sempre fora bater o recorde europeu do fora-de-jogo mais escandaloso a decidir uma final.
A calibração a que Fernando Santos submeteu voluntariamente a sua personalidade ao longo do torneio é um exemplo para todos nós, e não deixa de revelar uma agradável simetria lógica: uma vez que todos nós somos melhores treinadores do que ele, é natural que ele seja melhor adepto do que nós.
Que hoje à noite possamos todos merecer-nos uns aos outros.