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“Há muita coisa que as pessoas não sabem sobre mim e que quero que saibam”. A frase é de uma Britney Spears em início de carreira. Na viragem do milénio, em plena era das boy e girl bands, vingou a solo na indústria discográfica. O que a menina de Kentwood, no Louisiana, não sabia é que se tornaria num caso paradigmático de exploração por parte dos média e, mais tarde ainda, no centro de um processo judicial que lhe marcaria a maioridade. Aos 39 anos, Britney continua sem ter uma palavra a dizer na gestão dos seus bens.
No último sábado, o The New York Times lançou um novo documentário. “Framing Britney Spears” não é só mais um resumo dos últimos 12 anos na vida da cantora — foi em 2008 que um relatório médico levou o tribunal de Los Angeles a declará-la incapaz de tomar decisões e a acionar um mecanismo de supervisão e controlo da sua vida pessoal, mas também na esfera financeira.
Ao longo de mais de uma hora, a ascensão mediática de Spears é retratada de forma crua e à luz de valores que, em 2020 (ano da rodagem), a sociedade começa a interiorizar. “Ninguém falava de saúde mental quando a Britney Spears estava a passar por aquilo tudo em público. A conversa era muito mais: o que há de errado com ela?” — uma das muitas reflexões feitas no documentário. O mesmo pode dizer-se de muitos outros comportamentos, hoje alarmantes: um julgamento público de caráter misógino que a levou, em várias ocasiões, a ser questionada sobre as roupas que usava, o seu corpo, o fim das suas relações e a sua vida sexual.
Poucos dias passaram desde que o documentário chegou à plataforma Hulu, mas os efeitos já se fazem notar. A mira parece estar agora apontada a Justin Timberlake, que deverá a Spears um pedido de desculpas pela culpabilização pública aquando o fim da relação, em 2002, a Diane Sawyer, pela entrevista conduzida em 2003, ou a Jay Leno e às piadas maldosas sobre o estado psicológico de Britney em 2007.
Miley Cyrus verbalizou o seu apoio a Spears ainda no último domingo, durante a atuação que antecedeu o Super Bowl. Sarah Jessica Parker, à semelhança de Bette Midler, usou o Twitter para partilhar a expressão #FreeBritney, movimento criado por fãs em 2020 e que defende que a tutela dos bens da cantora se mantém contra a sua vontade. Britney Spears nunca se pronunciou sobre o movimento, embora num comunicado emitido em novembro do ano passado tenha agradecido “o apoio informado” dos seus fãs.
Quem quebrou o silêncio foi o namorado da popstar, Sam Asghari, em declarações dadas na última segunda-feira, à revista People. “Nunca quis mais nada, senão o melhor para a minha cara-metade e vou continuar a apoiá-la a seguir os seus sonhos e a construir o futuro que ela quer e merece. Estou grato por todo o amor e apoio que ela tem recebido de todos os seus fãs, em todo o mundo, e aguardo por um futuro normal e maravilhoso juntos”, comunicou.
A família e os primeiros trabalhos
Do coro da igreja para o estrelato, a história de Britney é a de uma menina que cresceu no Louisiana. Apesar das poucas posses, a família fez o sacrifício e levou para Nova Iorque, onde estudou canto e dança. O investimento feito na educação artística da jovem Spears sortiu efeito. Poucos anos depois, ingressava no Mickey Mouse Club. Em 1996, o formato chegou ao fim e a pequena estrela “ficou destroçada”.
De volta a Kentwood, tornou-se difícil para a família levá-la a castings e audições, que, regra geral, tinham lugar em Nova Iorque. Mas o empenho e determinação da jovem Britney, sublinhados no documentário, acabaram por lhe valer um contrato discográfico com a Jive Records.
“A Lynne [mãe] apoiava-a. Digo a Lynne porque nunca falei com o pai. A única coisa que ele me disse foi: ‘A minha filha vai ser tão rica que me vai comprar um barco'”, recorda Kim Kaiman, na altura diretora da marketing da mesma editora. O orgulho no talento da filha era comum aos dois, embora o pai, seja descrito comoalguém mais preocupado com a vertente financeira. Jamie foi tendo vários trabalhos, incluindo uma tentativa de ter o próprio negócio, a qual acabou em falência. Os problemas com álcool levaram-no a procurar ajuda. A fama mundial que tanto ambicionou para a filha chegaria em 1998, com “Baby One More Time”. Britney tinha 16 anos.
A perseguição dos média: quem lhe deve um pedido de desculpa?
Britney Spears era uma adolescente quando vingou no mundo da música. Ao mesmo tempo que inspirava nas raparigas da sua idade um sentimento de identificação e proximidade, depressa se assumiu como símbolo sexual, sem nunca abandonar completamente a imagem de uma jovem vulnerável. Perguntas como “Ainda é virgem?” ou o comentário “As pessoas falam muito sobre o seu peito” deixado por um entrevistador (ambas as situações retratadas no novo documentário) foram feitos com uma normalidade impensável nos dias de hoje.
Mas há uma entrevista, dada ao programa Primetime, de Diane Sawyer, na ABC News, que se destaca em todo o cerco mediático montado em torno de Britney, na altura com 22 anos. Em novembro de 2003, na ressaca do final da relação com Justin Timberlake, a intimidação sexista de que foi alvo é agora um dos momentos do documentário que mais indignação está a despertar nas redes sociais. “Partiu-lhe o coração. Fez alguma coisa que lhe causou imenso sofrimento. O que é que fez?”, questionou a entrevistadora.
A conversa não ficaria por aí. “O que é que aconteceu às suas roupas? O que é isto?”, questionou ainda a jornalista, ao mostrar uma das sessões fotográficas de Spears para uma revista. Em seguida, Sawyer confrontou a cantora com declarações de Kendall Ehrlich, mulher do então governador de Maryland — “A sério, se tivesse oportunidade de disparar sobre a Britney Spears, acho que o faria”. “Ó, isso é horrível”, respondeu a jovem artista. “Por causa do exemplo para as crianças e de como é difícil ser pai e manter tudo isto longe delas”, retorquiu a entrevistadora.
Justin Timberlake é outro dos nomes convocados nas redes sociais a vir a público pedir desculpas a Britney Spears. Sem qualquer evidência sobre o que ditou o fim da relação, o artista estreou o single “Cry Me a River”, um tema de retaliação no qual sugeriu que Britney o tinha traído. Os tabloides fizeram o resto — Justin era a vítima, Spears a vilã. Na mesma altura, questionado num programa de rádio se tinha tido relações sexuais com a ex-namorada, Timberlake respondeu afirmativamente, com o tom próprio de quem exibe um troféu.
Pouco tempo depois, a princesa da pop tornou-se num dos alvos favoritos dos paparazzi. Segundo o documentário do The New York Times, uma única fotografia de Britney, no seu dia-a-dia, chegava a custar um milhão de dólares. “No início, quando começaram a segui-la, ela achava alguma graça. Era muito simpática. Sentia que precisávamos dela e ela de nós”, refere Daniel Ramos, que captou e vendeu inúmeras imagens de Spears.
Em fevereiro de 2007, recebeu uma chamada — “Não ligues a ninguém, traz a tua câmara”. Britney estava dentro de um carro (já tinha rapado o cabelo nesta altura), numa estação de serviço com a prima quando Ramos se aproximou a disparar o flash e a perguntar se podia fazer algumas perguntas. Spears sai do carro com um chapéu de chuva e ataca a viatura do fotógrafo. No dia seguinte, a expressão de fúria no rosto da cantora estava estampada em todos os jornais. “Hoje, vejo as coisas de uma perspetiva diferente agora, especialmente depois destes anos todos. Quando estamos enredados no meio daquela teia, não percebemos o que aquela celebridade está a passar”, remata.
Britney sob a tutela do pai: como tudo começou?
“Para ser sincera, nunca entendi e continuo sem entender o que é uma tutela, sobretudo no caso de uma pessoa com a idade da Britney e capaz de fazer tudo o que eu sei de que ela é capaz”, admite Felicia Culotta no documentário. A viver em Nova Iorque, a amiga de Lynne Spears desempenhou um papel importante na carreira da jovem artista. Foi quem a acompanhou no dia em que assinou o contrato com a Jive Recods e ocupou, durante anos, o lugar de assistente, até ao início da tutela de Jamie, em 2008.
À semelhança de Culotta, também Kevin Tanchareon, dançarino e diretor de digressão, sublinha a determinação da cantora. “A ideia de que ela é uma marioneta a quem dizem o que fazer não corresponde à verdade. Ela era muito criativa e sabia o que queria”, resume a certa altura de “Framing Britney Spears”.
A maternidade é apontada como um ponto de viragem. Entre 2005 e 2006, Britney e Kevin Federline tiveram dois filhos. Quando o segundo nasceu, o divórcio já era uma certeza. No livro que lançou em 2008, Through the Storm: A Real Story of Fame and Family in a Tabloid World, Lynne Spears falou sobre o que poderá ter sido uma depressão pós-parto.
Com o divórcio, ambas as partes pediram a guarda total dos filhos. Seguiram-se quatro meses de batalha judicial e um período de perseguição feroz por parte dos tabloides. Britney rapou o cabelo, atacou o carro de um fotógrafo com um guarda-chuva e tudo isto escorregou diretamente para as manchetes de jornais e revistas de todo o mundo. Em outubro de 2007, perdeu a guarda de Sean e Jayden. Em janeiro do ano seguinte, ruma ao hospital dentro de uma ambulância. O tribunal acabaria por lhe retirar o direito de visitar os filhos, dias depois de Spears voltar a ser internada, dessa vez numa clínica psiquiátrica.
É então que Jamie avança com um pedido de tutela em tribunal. A medida foi extrema, porém entendida em praça pública como necessária perante a especulação em torno de possíveis problemas mentais ou até de abuso de drogas. O regime é aplicado mediante três situações: no caso de alguém substancialmente incapaz de gerir as suas finanças, suscetível de cometer fraude ou de agir sob influência de outrem. O certo é que, quase em simultâneo, o pai de Britney avançou com um ordem de restrição para Sam Lutfi, na época, o autoproclamado agente da cantora.
O processo arrastou-se e, segundo revela o documentário, antes das primeiras audiências, Spears quis escolher um advogado para representá-la. “A primeira pergunta que fiz foi se ela tinha capacidade para me contratar, se tinha condições para que pudesse representá-la”, afirma Adam Streisand, o advogado em questão. Nessa conversa, Britney terá tornado claras duas coisas — a tutela era inevitável, mas não queria que fosse o pai a assumi-la. “Ela queria um profissional, alguém neutro. A Britney não queria que o pai fosse o seu tutor, a pessoa que toma decisões sobre tratamentos médicos, e também não o queria a controlar as suas finanças”, adiciona o mesmo advogado.
Mas o contacto de nada valeu. Chegado a tribunal, Streisand foi confrontado com o relatório médico, já na posse do juiz. “Mostrava que ela não estava capaz de se fazer representar juridicamente. Teria de ser o juiz a nomear alguém, não poderia ser eu”, conta. “Senti que não era a melhor decisão. Com base na minha interação com ela, fiquei com a sensação de que ela era capaz de se fazer representar em tribunal”, conclui Adam Streisand, anos mais tarde.
Em outubro de 2008, a tutela passou a ser permanente. De acordo com o tribunal de Los Angeles, o tutor pode decidir quem visita ou não a filha, pode mantê-la sob vigilância 24 horas por dia, tem acesso a registos médicos, controla a casa e cartões de crédito, bem como contratos discográficos e de televisão. Embora nunca se tenha comprovado, Britney terá aceitado o regime para poder recuperar a guarda dos filhos. O certo é que, pouco tempo depois, recuperou o direito de visitá-los.
#FreeBritney e mais de 12 anos sob o controlo de Jamie
Com uma fortuna avaliada em cerca de 60 milhões de dólares, Britney conheceu nos últimos anos uma das fases mais lucrativas da sua carreira. Já sob a tutela do pai gravou quatro álbuns de originais, foi jurada de um concurso de televisão, embarcou em duas digressões mundiais e assinou um contrato milionário para uma residência em Las Vegas, no qual o pai pediu ao tribunal para receber 1,5% dos lucros. O pedido foi aceite.
Em outubro de 2018, é anunciada uma nova residência milionária, mas a mesma viria a ser cancelada em janeiro do ano seguinte. Britney voltaria, mais tarde, a ser internada numa clínica psiquiátrica. Ainda assim, houve quem continuasse a defender que a cantora reunia todas as condições para que o regime fosse levantado e que a tutela se tratava, na verdade, de um aproveitamento financeiro.
Foi o caso de Tess Barker e Barbara Gray, que em novembro de 2017 criaram um podcast destinado a interpretar mensagens subentendidas nas publicações de Instagram de Spears. De rubrica de registo cómico, o espaço passou a dedicar-se a assuntos bem mais sérios, nomeadamente à análise de documentos consultados no tribunal de Los Angeles. Num deles, de novembro de 2018, o corresponsável no regime de tutela pedia um aumento da sua compensação, justificado pelo incremento das atividades empresariais da cantora, fruto do seu “bem-estar e capacidade de se envolver no crescimento da sua carreira”.
As suspeitas em torno da longa tutela adensaram-se no dia em que as duas receberam uma mensagem de voz. Do outro lado, alguém que não se identificou mas que garantiu que Britney Spears havia sido internada numa clínica psiquiátrica contra a própria vontade, referindo-se à data de cancelamento da residência em Las Vegas, em janeiro de 2019. A comunidade de fãs organizou-se e o hashtag #freeBritney explodiu no verão de 2020. Manifestam-se à porta do tribunal e alguns membros deste grupo organizado já foram autorizados a assistir a audiências do processo.
No ano passado, Britney demonstrou o desejo de que o seu pai deixasse de ser tutor da sua fortuna, posição que mantém mesmo depois de, em setembro de 2019, ter abandonado a tutela pessoal. Em novembro do ano passado, o juiz decidiu manter o pai no cargo. Em resposta, Spears fez saber que não voltaria a atuar enquanto a decisão se mantivesse. Ao mesmo tempo, o juiz cedeu a um pedido de Britney e nomeou um novo corresponsável, o fundo bancário Bessemer Trust.
O mesmo grupo, que continua a expandir-se, sobretudo desde que o documentário do The New York Times amplificou esta nova perspetiva dos factos, tem estado dedicado a interpretar possíveis mensagens veiculadas pela cantora através das suas partilhas nas redes sociais. Na última segunda-feira, depois da estreia de “Framing Britney Spears”, partilhou a imagem de uns sapatos, com a frase: “Ela, que deixa um rasto de brilhantes, jamais será esquecida”.
No final do último ano, a tutela foi estendida pelo tribunal até setembro de 2021, mas a próxima quinta-feira traz uma nova audiência. Eu discussão estará a possibilidade de ser o Bessemer Trust, indicado por Britney, o principal ou mesmo o único responsável pela tutela dos seus bens.