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Texto original publicado a 4 de agosto de 2021
Quando Pedro Pablo Pichardo deu o salto, ainda não sabia onde ia aterrar. Mas tinhas ideias bem definidas sobre os seus objetivos: queria ser o melhor do mundo e, para isso, precisava de treinar com o seu pai, Jorge, algo que as autoridades desportivas cubanas não permitiam. Por isso, naquela noite de abril de 2017, em Estugarda, deixou a chave na porta aberta do quarto no centro de estágios e meteu-se num carro com o pai, que fizera a viagem de 30 horas desde a Suécia para o ir buscar. Deixou Cuba para trás e começou a escrever uma nova história. Em maio estava no Benfica, em dezembro desse mesmo ano naturalizou-se português, recebeu autorização para competir pelo seu novo país a partir de agosto de 2019 e chegou a Tóquio para conquistar o título olímpico no triplo salto.
Uma decisão destas não se toma de ânimo leve. Pedro e Jorge (que já estava na Europa em 2017) deixaram a família e os amigos na sua terra natal. Mas estavam, finalmente, juntos. “A partir daquele dia, ninguém nos voltou a separar”, recordou, em entrevista ao “Público”, Jorge Pichardo. Em Portugal, encontraram as condições de treino que procuravam e o sol de que tiveram tantas saudades durante o mês passado na Suécia – Pedro nunca tinha visto neve… Mas encontraram também polémicas e acusações de favorecimento, nomeadamente devido à rapidez do processo de naturalização.
![15th IAAF World Athletics Championships Beijing 2015 - Day Six](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:4096:2731/c:4096:2731:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2021/08/03200753/GettyImages-485353020-scaled.jpg)
▲ Nélson Évora e Pedro Pichardo quando eram adversários com camisolas diferentes
Getty Images
“Não foi a naturalização mais rápida, houve outras muito mais rápidas”, contesta Ana Oliveira, diretora do programa Benfica Olímpico e uma das responsáveis pela vinda do saltador para Portugal. Mas essa é uma versão tudo menos consensual. Até porque a vinda de Pedro Pichardo coincidiu com a passagem de Nelson Évora da Luz para Alvalade – e, para “piorar” as coisas, o recém-chegado não tardou a bater o recorde nacional do campeão olímpico de 2008. Aconteceu em maio de 2018 e gerou-se algum desconforto, tanto mais que Nelson não se coibiu de, publicamente, criticar o processo de naturalização do ex-cubano. “Penso que se poderia ter instituído um período de carência, como já foi feito por outros países”, diz Luís Lopes, comentador de atletismo e jurista de formação. “Durante um determinado período de tempo, a marca entrava nas listas oficiais, mas não seria reconhecida como recorde nacional. Não foi essa a opção.”
Adiante. O salto de 17,95 metros riscou da tabela de recordes os 17,74m de Nelson Évora e a vida continuou. Ao ponto de Pedro e Nelson terem ambos garantido a presença nos Jogos Olímpicos de Tóquio e serem, para todos os efeitos, colegas de equipa na capital japonesa. Onde Nelson se despediu, aos 37 anos, dos palcos olímpicos e Pedro, com 28 anos, cumpre os seus primeiros Jogos – esteve no Rio de Janeiro, em 2016, ainda ao serviço de Cuba, mas uma lesão afastou-o da prova.
Essa foi uma grande desilusão numa carreira com mais altos do que baixos. Por Cuba, foi campeão mundial júnior em 2012 e medalha de prata nos Mundiais de 2013 e 2015; já com as cores de Portugal, sagrou-se campeão europeu de pista coberta, em 2021. “É um fora-de-série”, resume Luís Lopes, que vê nele “potencial para chegar ao recorde mundial [18,29m, na posse do britânico Jonathan Edwards desde 1995]”. O salto de 17,71m na qualificação só reforçou esse estatuto que na madrugada desta quinta-feira vai ter de confirmar (a prova começa às 3h00).
![Muller Anniversary Games - Day One](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:4096:2781/c:4096:2781:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2021/08/03200546/GettyImages-1163187857-scaled.jpg)
▲ Pablo Pichardo quando ainda competia por Cuba
British Athletics via Getty Imag
Pichardo é um dos poucos homens a ter quebrado a barreira dos 18 metros nesta exigente disciplina: em 2015, com apenas 21 anos, saltou 18,06m em Doha e, duas semanas depois, 18,08m em Havana. Fê-lo no regresso de um período de suspensão, por se ter recusado a treinar com o técnico designado pela federação cubana de atletismo. Os problemas começaram nessa altura…
Homem de família
“Quando o Pedro chegou a Portugal, tratámos de o integrar desportivamente, mas também socialmente, e depois em termos de família”, recorda Ana Oliveira. Grávida na altura, a mulher do saltador, Arialis Gandulla, demorou apenas dois meses a juntar-se-lhe e a filha de ambos, Rosalis Maria, nasceu em Lisboa, em novembro de 2017, no Hospital de Santa Maria. Arialis, que é velocista e representou Cuba nos Jogos do Rio em 2016, tornou-se, entretanto, também atleta do Benfica.
Em Cuba continuava a mãe de Pedro, que por lá ficou mais uns tempos até se juntar finalmente, há uns meses, ao resto da família. E as saudades apertavam… “Das poucas vezes que os mais próximos o viram chorar foi quando recebeu a notícia de que o cão da família, em Cuba, um huskie, tinha morrido”, revela Ana Oliveira. Em Portugal voltou a ter um cão, o King.
A família é o conceito chave para definir a personalidade de Pedro Pablo Pichardo, atleta de alta competição e um verdadeiro “patriarca” do seu clã. “É a coisa mais importante da sua vida”, garante a diretora do Benfica Olímpico. “O Pedro é uma pessoa muito focada, muito inteligente, muito reservada também. Não tem uma vida social intensa, vive muito para a filha, a mulher, o pai, a mãe… é compreensível, vejo isso em muitos atletas de topo, um foco enorme no seu trabalho e no seu núcleo familiar mais fechado. Ainda por cima, nestes tempos de pandemia, as coisas tornaram-se mais complicadas.”
Mas nenhum homem é uma ilha e há uma pessoa fora do círculo familiar a quem Pedro Pichardo abre o coração. “É como um irmão. Tenho três irmãos, ele é mais um”, explica José Pereira, 52 anos, chefe da divisão de Desporto da Câmara Municipal de Setúbal, professor de Educação Física e treinador de futebol. “É um privilégio e um orgulho ser amigo do Pedro. Se eu pudesse fazer mais por ele fazia, mas ele não precisa…”
![Muller Anniversary Games - Day One](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:4096:2781/c:4096:2781:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2021/08/03200546/GettyImages-1163187857-scaled.jpg)
▲ Pablo Pichardo quando ainda competia por Cuba
British Athletics via Getty Imag
Foi José quem levou Pedro ao aeroporto na partida para Tóquio, foi ele quem o foi buscar à chegada dos Europeus de pista coberta com a medalha de ouro ao pescoço, é a ele que o saltador recorre para desabafar ou pedir ajuda nas pequenas e grandes coisas. “No outro dia vi que tinha um contacto dele por WhatsApp, depois o telefone tocou… nem sei se gastei uma fortuna em roaming, ou se era ele a pagar, atendi com o coração nas mãos. Só pensava que ele tinha apanhado Covid, fiquei em pânico! Afinal, era para me pedir se podia ajudar a mãe, que estava sem água no apartamento…”
Pedro vive e treina na margem sul do Tejo. A confusão de Lisboa e o que via como excessiva burocracia na utilização dos espaços de treino na capital – “Não é fácil para alguém com a mentalidade de um país como Cuba, onde as coisas funcionam com regras simples, adaptar-se a esta realidade de União Europeia, onde tudo se faz com um papel oficial e há horários rigorosos”, situa Ana Oliveira – levaram o Benfica a procurar alternativas. A Câmara de Setúbal abriu as portas das suas instalações, que o clube apetrechou com o material necessário, e nasceu assim uma relação que já valeu a Pedro Pichardo a Medalha de Honra da cidade.
Foi assim que, há quase três anos, nasceu a amizade entre Pedro e José. “Eu sou só o instrumento da autarquia, o mérito é das pessoas que dirigem a câmara e tutelam a área do Desporto. Mas a verdade é que o Pedro tem acesso integral ao local de treino, uma chave com código só para ele, no ginásio não entra mais ninguém.” O saltador tem os seus horários habituais e normalmente começa a trabalhar ao final da manhã – ele próprio já confessou numa entrevista que gosta muito de dormir… Até pode começar tarde, mas a concentração é absoluta: “Há momentos em que chego à pista e percebo logo que é para dizer ‘olá’ e sair logo de cena, porque ele está 100 por cento focado no treino”, ri-se José.
E esta relação com Setúbal já se estende a outros campos? A gastronomia, por exemplo? José Pereira garante que “o choco frito ele já vai comendo, sardinhas ainda não”. Para o funcionário da Câmara de Setúbal, tem sido “muito giro conhecer os hábitos alimentares, os cuidados, que um campeão como o Pedro tem de assumir”. Isso ajuda a explicar que nunca tenham feito uma refeição juntos, mas há ainda outro motivo: “Ele nem faz as refeições às horas habituais…”
“Um sobrevivente”
Pedro Pichardo vive pelas suas próprias regras, mas não é por falta de capacidade de adaptação. Ana Oliveira: “É muito autónomo, se lhe derem aproveita, se não, vai pelos seus próprios meios. Já está completamente integrado em Portugal. É um sobrevivente.” Uma visão partilhada por José Pereira: “Por exemplo, ele fala muito bem português. Sei que teve uma professora, mas é a inteligência dele que faz a diferença. Quando escreve mensagens, está tudo num português corretíssimo, não há um erro, nem nos tempos verbais nem nada. Fico impressionado.”
Pichardo gosta muito de estar em casa e não se dá muito para fora da família – até porque as suas duas paixões voltaram a conjugar-se em Portugal, a partir do momento em que o pai voltou a ser o treinador. Não espanta, por isso, que os seus tempos livres sejam passados dentro de portas, a ver filmes, televisão, a navegar na internet. “A internet era muito cara e de difícil acesso em Cuba. O Pedro chegou cá com 24 anos, o computador tornou-se um fascínio”, analisa Ana Oliveira, lembrando ainda outros interesses do triplista: “Futebol, carros, música…”
Para quem não gosta de praia e raramente põe o pé na piscina lá de casa, as novas tecnologias são uma forma de entreter o tempo. Mas Pedro mantém acesa a paixão pelo boxe (chegou a treinar em Cuba, mas o pai não o deixou continuar), em particular, e pelos desportos de combate, em geral. Virá daí, talvez, a explicação para o nome que avança como sendo a sua grande referência desportiva: Telma Monteiro. Uma admiração que deixa a judoca portuguesa “lisonjeada”.
“É um atleta muito competitivo, com provas dadas e um enorme potencial. Acredito que vai chegar muito longe”, analisa Telma, em contacto por mensagem escrita. “Como pessoa, foi sempre muito simpático e respeitoso comigo. Tenho ideia de que é reservado e não dá muita confiança a toda a gente. Apesar disso, demo-nos bem quando nos conhecemos no Benfica, foi fácil comunicarmos.” E, apesar de não se verem muitas vezes, vão mantendo o contacto: “Trocamos mensagens de apoio e quando nos encontramos há sempre uma energia positiva. A nossa relação é de muito respeito e admiração.”
Pedro Pichardo é “amigo do seu amigo”, como descreve Ana Oliveira. Mas a sua ligação mais forte, por aliar a vertente pessoal à carreira desportiva, é mesmo com o pai (e treinador), Jorge. “A rutura com Cuba deu-se por causa da proibição de trabalhar com o pai, que o treinava desde os 6 anos. A relação deles é visceral”, continua a diretora do Benfica Olímpico. “Extraordinária”, acrescenta José Pereira. “O pai é de uma simpatia enorme, mas é também muito exigente. Eu se tivesse um filho a trabalhar comigo não sei se conseguiria falar com ele como o Jorge fala ao Pedro…”
Mas a química funciona sempre. Mesmo quando a fasquia fica muito alta. José Pereira: “Antes de partir para Tóquio, o Pedro disse-me que, se for campeão olímpico [como acabou por ser] , quer que eu vá de férias com ele para Miami. E eu perguntei quando, se era logo a seguir aos Jogos… ‘Não, só em setembro. E se o treinador deixar…’, explicou o Pedro. Mal ele falou, ouvi o Jorge lá ao fundo: ‘Se ele não fizer 18 metros, não vai!’”.
Esteve lá quase, na madrugada desta quinta-feira, em Tóquio: com uma marca de 17,98, bateu o novo recorde nacional, carimbou o melhor registo mundial do ano, e ganhou a medalha de ouro. Miami à vista?
![European Athletics Team Championships: Super League Silesia 2021 - Day Two](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:4096:2730/c:4096:2730:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2021/08/03200429/GettyImages-1320886195-scaled.jpg)
▲ Pedro e o seu pai, Jorge, que o treina desde os seis anos: foi por Cuba não permitir esta ligação que deixaram o país
Getty Images for European Athlet
(texto atualizado na madrugada de 5 de agosto, com a conquista da medalha de outro)