Índice
Índice
Ostracizado desde agosto de 2019 por alegado assédio sexual e abuso de poder sobre várias mulheres artistas ao longo de décadas — enquanto responsável pela Ópera de Los Angeles e pela Ópera Nacional de Washington —, o tenor e maestro começou por dizer que tais “acusações anónimas” dadas à estampa pela agência de notícias Associated Press eram “profundamente preocupantes”. Aliás, “imprecisas”, tal como se apresentavam. “Acredito que todas as minhas interações e relações foram sempre bem recebidas e consentidas”, afirmou. Ainda em 2019, à medida que se acumulavam denúncias de mais abusos, mandou dizer por um porta-voz que estava a ser alvo de uma campanha contra a sua imagem. Só que a história do ocaso de um dos maiores tenores de todos os tempos não se ficou por aqui.
As revelações deitaram abaixo um nome artístico à prova de bala, com mais de 60 anos em cima do palco, numa carreira fulgurante que lhe valeu 14 prémios Grammy e talvez mais atuações ao vivo do que a qualquer outro intérprete lírico — diz-se que mais de quatro mil (diz-se também que foi ele o protagonista da maior ovação de pé da história: 80 minutos, depois de uma apresentação de Otello, de Verdi). Foi um claro efeito do ambiente de denúncia de abusos sexuais contra mulheres nos EUA, iniciado com a queda do produtor de cinema Harvey Weinstein em 2017, dando origem ao movimento Me Too e tendo como efeito colateral uma cancel culture que vem irradiando do espaço público quem é acusado de comportamentos censuráveis.
Desde então, Plácido Domingo, que esta quinta-feira completa 80 anos e não dá sinais de querer sair de cena, parece bafejado pela maldição, à maneira de um enredo de ópera.
[reportagem da Associated Press com as primeiras denúncias contra Plácido Domingo em agosto de 2019:]
O dia em pediu “sinceras desculpas”
Sob olhares reprovadores de milhões em todo o mundo, Plácido Domingo tem-se virado para a Europa, depois de décadas a ser estrela na América. Em Espanha, o Teatro Real de Madrid e o Teatro da Zarzuela (aqui por decisão do Ministério da Cultura) fecharam-lhe as portas, mas na Áustria foi aclamado. A 26 de agosto de 2019 deu em Salzburgo a primeira récita desde que o escândalo rebentara: Luisa Miller, de Verdi. O público ovacionou-o mal entrou em cena e, relatou então o El País, naquele ambiente elitista e imune ao escândalo até o famoso restaurante Triangel conservava o nome do tenor na carta de sobremesas.
Em outubro de 2019, demitiu-se de diretor da ópera de Los Angeles, ao cabo de 16 anos. Semanas depois, sem ceder, disse ao El País que se sentia “mais forte que nunca” e que lhe parecia natural dirigir piropos a pessoas do sexo oposto. “Nunca ataquei uma mulher, nunca me excedi porque isso não vai com a minha maneira de ser nem com a minha educação, e muito menos abusei do meu poder”.
[Euronews noticiou em fevereiro do ano passado a reação em Espanha às acusações de assédio sexual contra Plácido Domingo:]
Porém, chegados a 2020, o discurso começou a mudar. Em março desvinculou-se do sindicato americano de cantores de ópera — o poderoso American Guild of Musical Artists, o que significa que na prática deixou de poder atuar em solo norte-americano — e disse que iria contribuir com meio milhão de dólares para iniciativas contra o assédio sexual e a favor de cantores líricos sem meios de subsistência. Naquele momento tinham sido concluídas as “investigações internas” levadas a cabo pelo sindicato e pela ópera de Los Angeles, as quais consideraram “credíveis” as acusações de assédio sexual contra o artista.
Beijos na boca, apalpões, telefonemas a meio da noite a pedir companhia e convites insistentes e obsessivos para saídas a dois terão sido algumas das alegações presumivelmente credíveis, ainda que oficialmente nunca tenha sido tornado público o teor daquelas mesmas investigações, encomendadas ao conhecido escritório de advogados Cozen O’Conner.
Aparentemente, o visado acabou por recuar e pediu “sinceras desculpas pela dor” causada às vítimas. “Aceito toda a responsabilidade pelo que fiz”, declarou por escrito. De todas as pessoas que o acusaram, só duas aceitaram ser identificadas: as cantoras Patricia Wulf e Angela Turner Wilson.
Houve mais, entretanto. O “rei da ópera”, como na década de 80 lhe chamou a revista Newsweek, não escapou à pandemia do coronavírus e adoeceu em março do ano passado, quando estava em Acapulco, no México (a terra da mulher, a soprano Mara Ornelas, com quem se casou em 1962). Foi hospitalizado por apenas alguns dias. Diz-se agora “completamente recuperado”. “Utilizei oxigénio durante algum tempo, mas não precisei de tratamentos invasivos”, explicou esta semana a El Confidencial. “Sobretudo, tenho feito muito exercício para me recuperar, melhorar a respiração e tonificar os músculos, depois do período de inatividade. É essencial para o canto, não bastam as cordas vocais.”
A agenda para os próximos meses, mesmo perante as restrições da pandemia, continua cheia. A 22 de janeiro assina os 80 anos na Ópera de Viena, num espetáculo sem público devido à pandemia e que mais tarde será transmitido pela estação pública ORF3. A 12 e 14 de fevereiro, anuncia o site oficial, vai estar no Bolshoi de Moscovo. Paris em Março, Moscovo novamente, depois Lucerna, Piacenza a 16 de maio. Não consta que os escândalos e os problemas de saúde o tenham detido.
[Ave Maria, de Schubert, por Plácido Domingo]
Estreia no México aos 18
José Plácido Domingo Embil estava talhado para a música desde o berço. Filho do barítono Plácido Domingo Ferrer e da cantora de zarzuela Josefa Embil Etxaniz, aos 8 foi viver com os pais para o México, que ali pretendiam apresentar produções de zarzuela. Aos 14 já tinha aulas no conservatório de música e aos 16 casou-se às escondidas com uma estudante de piano, dois anos mais nova, com quem teve o primeiro filho, José.
A estreia na ópera deu-se aos 18, com um pequeno papel em Rigoletto, no México, e logo depois foi protagonista de La Traviata, em Monterrei. Por vários anos fez carreira em atuações dispersas perante o público mexicano, ora como intérprete de operetas ora como pianista. O futebol e as touradas eram outras das suas paixões. O mítico Caruso, os filmes de Mario Lanza, as óperas de Verdi e as vozes de Miguel Fleta, Galliano Masini e Giuseppe di Stefano foram as referências iniciais que se mantiveram ao longo dos anos.
Ainda antes dos 25 já era um nome de projeção internacional e começou a chegar a Nova Iorque. Na Ópera de Hamburgo, em 1967, a interpretação na Tosca deu-lhe a estreia europeia e a partir da década seguinte sedimentou uma carreira em grandes palcos, em papéis wagnerianos ou como Otello, Cavaradossi, Don José. Provavelmente só se tornaria um voz popular a partir dos anos 90, quando se juntou a José Carreras e a Luciano Pavarotti para formar Os Três Tenores, com performances que incluíam temas da música ligeira.
[Os Três Tenores interpretaram em 1994 em Los Angeles o momento festivo de La Traviata, de Verdi:]
Hoje é barítono, por quase toda a vida foi tenor. Passou por Lisboa várias vezes: por exemplo, em 1998 para uma gala no Estádio do Restelo, depois para Otello em 1999 em São CarloS, em 2007 no Pavilhão Atlântico (o concerto não chegou a acontecer devido a “problemas na voz”) e depois em 2017 na Altice Arena.
Como maestro, dirigiu mais de 500 récitas de teatro lírico e concertos sinfónicos. Em 2018, novamente em Lisboa, dirigiu a Orquestra Sinfónica Portuguesa durante a Operalia, um concurso que o próprio criou em 1993 e que pretende descobrir as melhores jovens vozes de ópera em todo o mundo. Aliás, “divulgar a ópera junto das massas” tem sido um dos seus grandes objetivos profissionais. Em Salzburgo, onde sempre o recebem de abraços abertos, foi distinguido no último verão com o prémio Prémio Austríaco do Teatro Musical 2020 pela sua “influente” trajetória profissional.
“A idade não nos impede de continuar a sonhar”
Depois do terramoto que foram as acusações de abuso e assédio, muitos foram os que saíram em defesa de Plácido Domingo. Em Portugal, a cantora lírica Elisabete Matos, atual diretora artística do Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, declarou ao Diário de Notícias que o cantor “foi sempre um cavalheiro”. “Uma pessoa muito generosa, que me tratou e ajudou com o máximo de respeito.” A cantora, que em 1997 se estreou no Teatro Real de Madrid ao lado de Plácido Domingo, sublinhou: “Vivemos num mundo supostamente democrático, onde existe a presunção de inocência, e os juízos públicos que não sejam feitos num local idóneo trazem sempre situações mais negativas do que positivas.”
Até a feminista dissidente Camille Paglia, que sempre contestou certas posições do feminismo mainstream, quis ser solidária com Plácido Domingo e numa entrevista ao ABC afirmou que a “loucura das redes sociais” explicaria o “tratamento atroz” de que ele teria sido alvo. “As pessoas não são capazes de diferenciar entre um homem horrível como Harvey Weinstein e um grande artista como Plácido Domingo. Se houver provas concretas, aceito-as, mas alegar sem apresentar provas… Não é assim que funcionam as democracias modernas.”
Plácido Domingo nasceu a 21 de janeiro de 1941 no número 34 da Calle Ibiza, no centro de Madrid. Como assinalava há dias o ABC, a placa comemorativa ainda hoje está junto à porta, apesar de o escândalo sexual ter levado partidos políticos à esquerda a proporem no ano passado a retirada daquele símbolo, o que foi rejeitado a nível municipal pelo Vox, com as abstenções do PP e do Ciudadanos. Ainda ao ABC, esta semana, Plácido Domingo declarou sobre o aniversário de vida: “Os franceses têm razão, é melhor dizer ‘quatro vezes 20” do que 80.” Garantiu olhar para o futuro com serenidade, porque sempre foi um otimista. “A idade não justifica a perda de entusiasmo nem nos impede de continuar a sonhar”, afirmou. E a reforma? “Quando chegar o momento, aceitarei, sempre grato aos céus por tudo o que pude fazer.”