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O rapaz “certinho”, com boa conversa, da Casa das Malhas
Era pouco mais do que um miúdo quando deixou o sossego de Vinhais, vila no nordeste transmontano a cerca de 20 quilómetros da raia galega, para tentar a sua sorte na cidade grande. Portugal estava, sem saber, a uma meia dúzia de anos da democracia, era Marcello Caetano presidente do Conselho, liderava um país atrasado e, naquela região, marcadamente rural. Em Bragança estavam, claro, as oportunidades para o rapaz que crescera a saltar de aldeia em aldeia pelo distrito, em brincadeiras de miúdos — e que tinha agora pressa em dar saltos bem mais altos.
Era o mais velho dos três descendentes dos Martins Vara, família humilde que vivia em Vinhais. A mãe era doméstica, o pai carpinteiro e Armando António tinha um bom par de braços e cabeça ajuizada — “era certinho”, como o descreve um amigo — para começar a contribuir para os gastos e fazer o seu caminho. Saía todos os dias da vila para trabalhar em Bragança, conta a amiga de infância Mariana Araújo. Aos 14, 15 anos lá ia ele a atravessar o empedrado da Praça da Sé para se pôr atrás do balcão da Casa das Malhas. Foi ali, entre malhas e têxteis, que começou a ganhar uns tostões e, por arrasto, a travar conhecimento com as pessoas da terra.
Começava ali a caminhada de Armando Vara, o rapaz de “origens humildes que se fez a pulso”, como o descreve o seu amigo de há mais de 30 anos Luís Patrão. É visto, por quem com ele foi privando ao longo da vida mais ou menos pública, como fácil na conversa e hábil nas relações humanas, “em estabelecer uma boa rede”, como resume ao Observador um socialista que preferiu não ser identificado. É, como se sabe, qualidade preciosa no meio político onde Vara entrou logo a seguir ao 25 de abril. Começou pela JS e como funcionário do PS. “Abria e fechava as portas da sede”, conta um amigo de Bragança.
Esta é, assim, a história do rapaz que começou na política a abrir e fechar portas até se tornar no influente socialista que continuava a abri-las, mas a um outro nível. Para ele, agora, vai fechar-se uma outra porta, bem pesada.
Ascensão meteórica (no partido e na vida)
A ascensão “a pulso” nem levou muitos anos a consumar-se. Da Casa das Malhas à Caixa Geral de Depósitos, passando pelo célebre balcão do Mogadouro, à liderança do PS Bragança e ao Governo, distam só umas três décadas. Pelo meio, nem 20 anos até entrar no Parlamento como deputado efetivo. Entre 1994, ano antes de chegar ao Governo, e 2010, quando saiu do BCP, o seu rendimento aumentou mais de 1200%: “Passou de uma remuneração do trabalho dependente, em conjunto com a sua então mulher, de 59.486 euros, em 1994, para um rendimento individual de 822.193 euros, em 2010”, lê-se no livro Como os Políticos Enriquecem em Portugal, depois da analisadas as declarações de rendimentos de Vara.
Luís Patrão garante que nunca foi isso que o moveu. “É uma das pessoa mais desapegadas que eu conheci na vida. Nunca lhe encontrei estima pelo dinheiro. A preocupação dele foi sempre a de realizar coisas e resolver problemas”. Outro socialista, que não quis ser identificado, garante que “teve uma ascensão pela perseverança” e acrescenta: “É um mobilizador”.
Certo é que foram estas as características que rapidamente o fizeram destacar-se na JS, onde entrou deslumbrado pela palavra de Mário Soares, que nessa altura estava longe de saber que, algures em Bragança, estaria um “grande líder distrital”, como haveria de chamar a Vara. Na década de 70, ainda prosseguiu os estudos no Liceu Nacional de Bragança, mas o trabalho e a intensa atividade partidária acabaram por deixar a escola em stand by. Entre 1977 e o início da década de 80, foi diretor da casa da Cultura de Juventude de Bragança (do antecessor do IPJ, o Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis, FAOJ) e também coordenador regional da Fundação José Fontana (do Partido Socialista), sendo o responsável pelos programas de formação de adultos.
Dizem que era bom de contas — dava até apoio na contabilidade de uma oficina de automóveis —, mas a amiga Mariana lembra-se antes de um episódio mais das letras (e da verve). Um dia, encontraram-se junto ao café Flórida, no centro da cidade, para irem fazer o exame de Filosofia ao Liceu Nacional de Bragança. A amiga, hoje professora, ia preocupada, não tinha estudado nada. Fizeram a prova: ele passou, ela não. “Ele mesmo não estudando muito, só a forma como escrevia…”
Era convincente e incansável. Só depois dos 20 concluiu o 12.º, no curso noturno no liceu. Ainda entrou em Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, mas, nessa altura, já o Parlamento em Lisboa chamava por ele e a universidade ficou para trás. O caminho até São Bento fê-lo à conta do dinamismo que ia imprimindo ao PS, num distrito onde o partido contava pouco mais de nada. Prova da sua força é que em 1981, quando o amigo Luís Patrão o chamou para número dois da sua lista à liderança da JS (António Costa era número 4), o jovem nascido em Lagarelhos, Vinhais, já era membro da Comissão Nacional da JS desde 1978. Acabaram por perder contra a lista liderada por Margarida Marques, a ex-secretária de Estado dos Assuntos Europeus. Mas esta já não era a primeira derrota que Vara experimentava. Dois congressos antes desse, também esteve na lista que perdeu contra Arons de Carvalho.
O balcão do Mogadouro
Os anos que se seguiram foram decisivos para a sua carreira política — e não só. Ia até Lisboa sempre que havia reuniões partidárias. Em Bragança tinha a família e os amigos de sempre e também já a mulher, Isabel.
Não consta que, quando casaram, tivessem cumprido a tradição de Lagarelhos, de visitar o castanheiro milenar — já classificado de “interesse público” — para abençoar a união, mas a benção-maior chegou na mesma, pouco depois, em 1978: a primeira filha, Bárbara. Os três paravam muitas vezes, no início da década de 80, no emblemático edifício redondo, da Praça da Sé, onde se instalara, desde os tempos da implantação da República, um centro cultural e de convívio, o Clube de Bragança. Quem o conta é Teófilo Vaz, jornalista que chegou a ser presidente da concelhia local e é também amigo de Vara. Ali se passava o serão, entre a biblioteca, a secção de xadrez e o vídeoclube. Convivia-se, trocavam-se ideias, estreitavam-se laços e tomava-se o pulso local.
Nessa fase, Vara já estava lançado na atividade partidária. “Era o dinamizador do funcionamento do partido”, diz Teófilo Vaz, que assume que, no distrito, o PS “dependia muito da atividade que ele conseguisse fazer, passava o tempo a circular pelas sedes do concelho”. Em 1980, tinha apoiado a candidatura do general Ramalho Eanes à Presidência da República, tal como fizeram muitos socialistas, dinamizando as ações no terreno. Coordenou todas as atividades de campanha a nível distrital, segundo contou ele mesmo numa entrevista ao jornal regional A Voz do Nordeste, em 1985.
Mas apesar de ser Vara a comandar as tropas em Bragança, o jornalista do jornal Nordeste também garante que o socialista “não mostrava pretensão de chegar ao topo”, isto é, de liderar a distrital. Nas eleições de 1983 — que o PS de Soares venceu, embora tendo de se juntar ao PSD, no Bloco Central, para governar — era o número dois da lista por Bragança encabeçada por Amadeu Pires. Não foi eleito. Depois, na escolha do sucessor de Soares como líder do partido, em 1986, ficou ao lado de uma minoria, os apoiantes de Jaime Gama (o candidato do PS mais tradicional) que eram descritos como “apenas quatro, cabiam num táxi”, como recorda Luís Patrão. Do outro lado estava a candidatura de Vítor Constâncio (mais à esquerda), que acabou por vencer.
Na campanha interna, Vara “foi um dos homens do terreno, responsável pela zona da Beira Alta e Trás-os-Montes”, conta outro socialista. Voltava a estar ao lado de um candidato derrotado, mas o controlo do aparelho naquelas zonas já ninguém lho tirava. E passou a ser total quando o deputado eleito pela região, Amadeu Pires, saiu para o IAPMEI e Vara o substituiu no Parlamento, na segunda sessão legislativa dessa legislatura.
No primeiro registo biográfico que entregou na Assembleia da República, o socialista colocou a frequência do 1.º ano de licenciatura em Filosofia, na faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Foi mais extenso nas linhas em que expôs as funções públicas, políticas ou particulares que desempenhava: secretário-coordenador da Federação Distrital de Bragança do PS e membro da Comissão Nacional do partido, membro da Assembleia Municipal de Bragança e presidente da direção da cooperativa de habitação “O lar transmontano”. Na altura, declarou como profissão ser “monitor”, pelas atividades que desempenhara na FAOJ e na Fundação José Fontana.
Entretanto, Armando Vara chegou à liderança do PS-Bragança e, em 1985, já concorreu como cabeça de lista do distrito, sendo eleito deputado. Tudo isto aconteceu meia dúzia de meses depois de ter entrado, por concurso, nos quadros da Caixa Geral de Depósitos, como funcionário de nível 7. Foi para o balcão da dependência do banco público em Mogadouro e a passagem por ali acabou por lhe servir para, muitos anos mais tarde, quando ganhou poder na CGD, argumentar a favor da sua ligação antiga ao setor bancário e ao banco público. Mas esse é outro capítulo desta história. No registo biográfico que entregou no Parlamento escreveu, no espaço dedicado à profissão: “func. Caixa Geral de Depósitos”.
O amigo Sócrates
Foi no início da década de 80 que conheceu, nos meandros socialistas, o homem que, em 1984, chegou a líder do PS-Castelo Branco: José Sócrates. Tornaram-se próximos e essa ligação havia de durar muito tempo. Foi também algures no início dos anos 80, Teófilo Vaz não sabe precisar bem quando, que lhe apareceu Vara com um amigo que era especialista na área do ambiente. “Eu era responsável pela biblioteca do liceu e ele pediu-me para fazer uma sessão com jovens sobre o ambiente”, conta. O amigo de Vara era Sócrates, que dava os primeiros passos na arena política com esta área à sua responsabilidade.
Os dois líderes distritais de raízes transmontanas não se largaram mais e foram dois dos principais responsáveis pela vitória de António Guterres quando este desafiou a liderança de Jorge Sampaio, em 1991. “É um dos poucos com quem Sócrates nunca grita”, adianta um socialista.
Estreitaram laços no Parlamento, onde Sócrates chegou dois anos depois de Vara lá estar — graças à moção de censura do PRD que antecipou legislativas — e compunham um grupo a que também pertenciam outros deputados como Edite Estrela, Laurentino Dias ou José Lello. Mas Vara também tinha laços com outra ala socialista, a de Gama, conservando a proximidade com Miranda Calha, por exemplo. Era um bon vivant, conta um amigo, bom garfo e frequentador das diversões noturnas. Era festeiro desde jovem, embora em Vinhais as festas fossem outras: de aldeia em aldeia a correr as festas de verão do concelho e a fazer virar cabeças quando chegava montado na sua mota.
No Parlamento, assinou com José Sócrates o primeiro projeto que este apresentou, também subscrito pelo deputado Jorge Lacão. Queriam que passasse a ser proibida a publicação de sondagens durante as campanhas eleitorais, com excepção dos últimos sete dias. Defendiam também a constituição de uma autoridade fiscalizadora para “verificar o rigor e a objetividade da realização e publicação das sondagens de opinião”, explicou Sócrates do púlpito do plenário da Assembleia da República. Conseguiram a aprovação do projeto, que foi depois ainda trabalhado na especialidade. Passaram a estar lado a lado nos combates políticos. Um exemplo: escreveram ao então primeiro-ministro, Cavaco Silva, para o pressionar com a regionalização.
Quando, em 1988, António Guterres chegou à liderança parlamentar do PS, Vara saltou para a sua direção. Tal como Sócrates, era vice da bancada socialista e responsável pelos temas da habitação. Foi um dos ases de Guterres — Sócrates era outro deles — para a conquista da liderança do partido, anos mais tarde.
Entre estas correrias políticas, Sócrates e Vara associam-se também no meio empresarial, juntamente com o socialista Rui Vieira. Em 1990, fundam a Sovenco – Sociedade de Venda de Combustíveis, Lda, com sede na Reboleira, Amadora. Foram ter com o camarada socialista António Manuel Simões Costa, fundador do PS/Lisboa, contou o próprio ao Expresso em 2009, à procura de apoio para se iniciarem no mundo empresarial — e, de volta, receberam o desafio: que se juntassem a ele no negócio de representação de pneus, jantes e compra de terrenos para construção de estações de serviço. Entraram cada um com 150 contos, participações que aumentariam para 400 contos. A empresa instalou-se na sede de uma das empresas de José Guilherme, o empreiteiro que já deu milhões de euros como prenda (a tal “liberalidade”) ao banqueiro Ricardo Salgado.
A aventura empresarial foi, no entanto, curta. “Ao fim de um ano, vieram ter comigo e disseram-me que Guterres lhes tinha apresentado um projeto para ganhar o partido. Respondi-lhes que, se aceitassem, deviam deixar a empresa. Mas, tal como entraram saíram, não fizeram um negócio que fosse e o património que havia foi o que ficou”, disse também ao Expresso o empresário. “Sócrates é decidido, mas incapaz de violar princípios; Vara é voluntarioso e criativo”, lembra ainda sobre os seus sócios nessa fase.
Anos mais tarde, Sócrates haveria de contar uma versão diferente sobre a saída da empresa: Vara teria deixado de ter confiança nos restantes sócios da Sovenco – também esses dois sócios se veriam mais tarde a braços com casos na justiça, mas sem qualquer relação com esta empresa. Um dos sócios era Virgílio Sobral Sousa que, anos depois, foi condenado a prisão num processo relacionado com o centro de exames de condução de Tábua. Foi mesmo considerado “o arquiteto do sistema de corrupção” pelo coletivo de juízes. Virgílio foi também vereador na Câmara da Amadora, entre 1987 e 1993, município a que Vara se candidatou como cabeça de lista, em 1991. Perdeu e ficou como vereador.
A catadupa de eleições em 1985 e o jornal que fundou
Mas voltemos atrás no tempo. Nas legislativas de 1983, o PS em Bragança deu um salto para os 30%, ficando a cinco pontos percentuais do PSD e dez pontos acima do que a Frente Republicana e Socialista tinha conseguido em 1980. O reconhecimento pelo trabalho local chega ao líder do partido, Soares. A fasquia estava alta quando Vara vê chegar o ano de 1985 — e, com ele, um ciclo eleitoral de peso: começava nas autárquicas, passava por legislativas e acabaria, no início de 1986, nas presidenciais. Era preciso reforçar a estratégia.
Em Bragança, Armando e um grupo de amigos começam a ficar desconfortáveis com a informação regional. O jornal controlado pela diocese estava “conotado com a ala mais retrógrada do clero”, conta Teófilo Vaz, recordando que o bispo D. António José Rafael (que esteve à frente da diocese entre 1979 e 2001) já tinha criticado Mário Soares. Era preciso arranjar uma alternativa à informação ali veiculada, ainda para mais numa altura em que os atos eleitorais se sucederiam.
César Urbino Rodrigues era jornalista na RDP/Nordeste e, nessa mesma altura, começava a sentir falta que os seus programas de rádio pudessem ter outra vida, como, por exemplo, no papel de um jornal. Amigos comuns juntaram a sua vontade e a de Vara, que só conheceu nessa altura, apesar de também ser socialista: iam fundar A Voz do Nordeste, um jornal regional com periodicidade quinzenal. “Ele disse que o PS pagaria os primeiros seis meses do jornal e eu pensei: ‘Nessa altura já terei receitas para o sustentar’”, recorda-se, em conversa com o Observador. Avançaram, mas o que aconteceu ficou muito aquém dos planos iniciais.
Urbino diz que percebeu desde início que existiam entendimentos diferentes sobre o projeto editorial. “Ele queria uma espécie de Ação Socialista do Vara”, diz sobre as intenções do socialista. Mesmo assim, acertaram sociedade os quatro fundadores: César Urbino Rodrigues, Armando Vara, Fernando Peixinho Rodrigues (também militante socialista) e Fernando Calado. Vara tinha uma quota de 25% e ainda garantiu, via PS, o pagamento de metade da primeira edição e metade da segunda edição. “A partir daí, nunca mais pagou”, diz César Urbino sobre o compromisso assumido por Vara.
Deixou garantida, nos primeiros tempos (a partir da quarta edição do jornal), a impressão a um preço melhor do que o que levava a Tipografia de Bragança. A Voz do Nordeste era impresso a muitos quilómetros de distância, no Dafundo, na CEIG, a Cooperativa de Edições e Impressão Gráfica ligada ao Partido Socialista. Mas Urbino não vergara na sua intenção inicial de ter um jornal sem cores partidárias e Vara foi-se afastando e até foi criticado pelo jornal, anos mais tarde, quando já estava no Governo. “Fui sempre muito crítico da partidarização dos lugares da administração pública”, diz Urbino. Admite ter visto o PS seguir o mesmo caminho do PSD de Cavaco Silva, por isso manteve a crítica acesa.
Certo é que o primeiro número do jornal tinha uma grande entrevista ao candidato local do PS às legislativas, Armando Vara, com uma “convicção”: “O PS vai eleger dois deputados por Bragança”. Lá dentro, o título da entrevista era que se “o PS ganhar eleições, Trás-os-Montes vai ter uma região administrativa”, uma promessa que dizia trazer de Almeida Santos.
[Veja nesta fotogaleria várias páginas do jornal de Armando Vara]
Era Vara já secretário de Estado da Administração Interna, quanto Teófilo Vaz, então colaborador do jornal, o entrevistou. É o mesmo que o recorda, garantindo que fez as perguntas que tinha de fazer, embora Vara se mantivesse como acionista — minoritário, depois de César Urbino ter feito um aumento de capital que deixou o socialista reduzido a uma quota de 2,5%. Ficou assim até 2007, ano em que Urbino vendeu o jornal.
Quando as legislativas chegaram, o resultado não foi brilhante para o PS no país e em Bragança também não: 39% do PSD contra 23% do PS. Mas Vara seguiu para São Bento e passaria mais tempo por Lisboa. A mulher e a filha ficaram em Bragança. Pelo menos até nascer Mário, o segundo filho do casal.
Guterres visita de casa e ‘pai’ do governante Vara
A amiga Mariana Araújo lembra-se bem do nascimento de Mário, em 1990. Uma vez foi à casa dos Vara, em Bragança, para visitar a amiga Isabel e o recém-nascido e, passado um bocado, entrou pela porta o líder parlamentar socialista, António Guterres. Era figura já de peso no PS e que Armando havia de ajudar a ascender à liderança dali a dois anos. Estava de passagem pela terra, nas andanças partidárias, e quis conhecer Mário Jorge — Mário como o pai fundador socialista e Jorge como Sampaio, o líder do partido de então. Respirava-se PS naquela casa. “Vivia muito o PS. Era um socialista de coração”, descreve Mariana.
Vara já trabalhava com Guterres no parlamento. Empenhou-se na batalha contra Jorge Sampaio de tal forma que, quando começaram a aparecer as críticas à sua liderança, Sampaio anotou o nome de Vara nos seus cadernos — como se lê no livro “Jorge Sampaio, Uma biografia Volume II – O Presidente” —, juntamente com o de José Sócrates, como “vozes críticas” que começavam a fazer-se ouvir. Nessa altura, 1991, os secretários-coordenadores das federações estavam maioritariamente já com Guterres. Apenas cinco federações alinhavam com Sampaio: a de Lisboa, liderada por António Costa, e as de Setúbal, Coimbra, Vila Real e Madeira. Em 1992, Guterres conquistou o partido e preparou-se para tomar o país, nas eleições de 1995.
Foi na sequência da vitória de Guterres que Armando Vara se tornou governante. Foi nomeado secretário de Estado da Administração Interna, era Alberto Costa o ministro da tutela. Ali estava o prémio pelo trabalho no terreno, a olear a máquina socialista que tirou o PSD do poder, ao fim de dez anos. Mas, naquele tempo, havia já quem criticasse Vara pela “rebaldaria sem limites para nomeações políticas” na Administração Interna.
“A ascensão política dele começa com Guterres, é aí que passa de uma perspetiva regional para uma perspetiva mais nacional”, explica um socialista que prefere não ser identificado. “É, totalmente, um operacional. Muito capaz a lidar com as pessoas. Não é sofisticado, mas tem uma tendência natural para o bom trato com as pessoas” e isso torna-se um precioso instrumento no lugar que ocupa no Governo.
Era um secretário de Estado com poder. “Ele era uma espécie de sub-ministro, tanto do Alberto Costa como, depois, do Jorge Coelho, responsável pelos bombeiros”, acrescenta um deputado socialista. As origens rurais eram, naquela posição, uma mais-valia, junto dos burocratas de Lisboa. “Era muito fácil para ele perceber as confederações locais, percebia a linguagem e isso fazia dele um tipo precioso para estar na Administração Interna”, conclui outro socialista. Dois anos depois de entrar no Governo, a remodelação provocada pelo imposto sisa que António Vitorino não pagou levou Jorge Coelho ao MAI e Vara subiu a secretário de Estado Adjunto.
Em 1998, passou por Garvão, em Ourique, para uma ação relativa ao realojamento das pessoas afetadas pelas cheias do inverno anterior, juntamente com o autarca do PSD José Raul do Santos. O secretário de Estado Armando Vara não tinha convocado jornalistas para a reunião, mas eles lá estavam. Ficou irritado e virou-se de forma intempestiva contra Raul dos Santos, que, segundo o então autarca, ofendeu com recurso ao vernáculo. Resultado: Vara foi arguido num processo cível colocado pela Câmara de Ourique que, na altura, pediu seis mil contos de indemnização, segundo noticiou a Lusa. Em 2001, já Vara estava fora do Governo, o Tribunal de Ourique condenou-o por ofensas à “honra e dignidade” de José Raul Santos e a pagar uma indemnização de 450 contos.
Nessa altura, a sua imagem estava muito ligada também às campanhas de prevenção rodoviária, como o programa “Tolerância zero”, criado para que os limites de velocidade fossem cumpridos à risca nas estradas do país. “Hoje temos 1/4 das mortes nas estrada do que tínhamos em 2000, graças às campanhas de segurança rodoviária que ele lançou, o nome dele é um dos principais se não mesmo o principal nessa matéria”, diz Luís Patrão, que havia de lhe suceder no cargo. Foi também nesta altura que Vara criou uma fundação que, dois anos depois, lhe trouxe um amargo político definitivo.
Sobe a ministro e desce ao inferno
É no segundo Governo de Guterres que Sócrates e Jorge Coelho convencem o primeiro-ministro a promover Vara a ministro. O líder socialista aceita e coloca Armando Vara na sua dependência, como ministro Adjunto do primeiro-ministro. Tinha a tutela da juventude, toxicodependência e comunicação social. Um anos depois, acumulou com as funções de ministro da Juventude e do Desporto.
Estava no auge da carreira política, sendo também responsável pelo dossiê do Euro 2004, a candidatura à organização do europeu de futebol que o país ganhara em 1999. “Era relativamente tranquilo, mas muito dinâmico, por vezes era difícil acompanhar o passo”, lembra Luís Patrão sobre a atividade governativa do seu amigo, ao mesmo tempo que lamenta que “talvez tivesse um excesso de impulsividade e vontade de fazer coisas”.
O tom de desalento em Patrão surge quando o assunto é a Fundação para a Prevenção e Segurança Rodoviária, que deixou os dois fora do Governo no final do ano. No primeiro dia de dezembro de 2000, o Expresso noticiava na primeira página: “Vara e Patrão criaram fundação polémica”. Era um organismo privado, mas financiado de forma irregular por dinheiros públicos e gerido por membros do gabinete de Vara na Administração Interna. O Tribunal de Contas apontou irregularidades ao financiamento da Fundação que tinha por missão desenvolver campanhas de prevenção rodoviária e, daí à oposição falar da criação de um saco azul do PS, foi um tiro.
O primeiro-ministro Guterres foi confrontado com o caso no Parlamento, num debate que o próprio classificou, na já citada biografia de Sampaio, como “o mais difícil” da sua “vida política”. A polémica ia alta e Jorge Sampaio, a um mês de ir a votos para a reeleição, começou a temer os efeitos de um caso político daquela dimensão. Para mais, do outro lado da barricada, o candidato era Joaquim Ferreira do Amaral que, nos comícios pelo país, ia fazendo a colagem direta entre o Governo socialista e o homem que estava em Belém.
Numa reunião semanal com o primeiro-ministro, ia já preparado para pedir a cabeça de Vara, referindo-se mesmo a “comportamentos políticos inaceitáveis”. No dia seguinte a essa reunião, logo pela manhã, Guterres avisou Sampaio que ia demitir os dois governantes — o ministro Armando Vara e o secretário de Estado do MAI, Luís Patrão.
Pelo meio desta polémica, entre o sai e não sai, a Rádio Renascença chegou a noticiar que o ministro Vara é que ia demitir-se, descontente com a falta de apoio público do primeiro-ministro. O ainda ministro veio a público desmentir a notícia, levando a rádio a revelar a fonte da informação que tinha dado inicialmente: tinha sido o próprio Vara.
A pressão de Sampaio nunca foi desculpada por Vara, que havia de vingar-se logo na campanha das presidenciais. Um antigo colaborador do ex-Presidente conta que o comício de Bragança foi o mais fraco da campanha da recandidatura. Armando Vara tratara de desmobilizar as tropas da sua terra no apoio ao seu mais recente inimigo. E depois, em 2005, quando Jorge Sampaio o colocou na lista de personalidades a condecorar, a par de Sócrates e de José Luís Arnaut, com a Ordem de D. Henrique, Armando Vara faltou à cerimónia, recusando receber a insígnia — que agora perderá, já que a lei das Ordens Honoríficas Portuguesas determina que “[cabe ao conselho] efetivar a irradiação automática dos membros das Ordens que (…) por sentença judicial transitada em julgado, tenham sido condenados pela prática de crime doloso punido com pena de prisão superior a 3 anos”.
A última derrota política e o “salto à Vara”
O caso da Fundação marcou profundamente Vara. Luís Patrão sublinha que, quatro inspeções diferentes depois, não foi possível apurar qualquer irregularidade e o caso foi arquivado. E é aqui que cola a Vara a condição de “excesso de impulsividade”: “Às vezes lamento que se confunda a energia das pessoas com motivações de natureza mesquinha que penso que não existiram”.
Vara não conseguia estar bem e desagradava-se com a burocracia da máquina do Estado, queria financiar campanhas de prevenção e arranjou maneira de as dinamizar, argumenta um socialista que atribui o caso a um “excesso de improvisação governativa que era a massa de um homem despachado e expedito e que acabou vítima do voluntarismo”.
Mesmo com essa mácula na carreira política, em 2001 António Guterres chamou-o para coordenar a campanha autárquica. Ao contrário de Patrão, que abandonara o Parlamento chamuscado pelo caso que, na altura, estava ainda em investigação, Armando Vara continuou. E seguiu para o terreno para olear a máquina. “O momento não era brilhante [para o PS] e a posição dele não era a melhor”, diz Luís Patrão sobre esse tempo e essa insistência de Vara e de Guterres. “A escolha não foi boa para ninguém, mas a energia que tinha impedia-o de se retirar”. As eleições foram traumáticas para o PS, António Guterres demitiu-se do cargo de primeiro-ministro, fazendo cair o Governo, na própria noite eleitoral. Vara saiu em definitivo da política. Mas não da vida pública. Seguiu para diretor da Caixa Geral de Depósitos, fazendo a oposição adaptar a expressão do “salto à Vara”.
A vida de banqueiro é a que segue nos capítulos seguintes, que levam à sentença que “chocou” Vara, quando foi conhecida em 2014. Depois de todos os recursos falhados, no início de dezembro passado, quando decidiu que ia entregar-se, foi até Vinhais. Quis ser ele a dizer à mãe, já com mais de 80 anos, aquilo que iria acontecer. O débil estado de saúde da senhora agravou-se a partir daí e acabou internada, pouco depois da visita. Morreu a três dias do Natal. “Foi do desgosto”, convence-se Mariana Araújo, que não consegue pronunciar a palavra “prisão” quando fala do amigo. “Não consigo. É uma injustiça terrível. Uma vingança. Para nós, é inocente”. E remata com uma pergunta: “Diga-me: acha que ainda pode não acontecer?”.
De bancário a banqueiro
Antes de se tornar repentinamente banqueiro, Armando Vara tinha sido apenas bancário na agência da Caixa Geral de Depósitos do Mogadouro. Foi daqui, como já se contou, que partiu para uma carreira política no PS. Depois de coordenar as tais eleições autárquicas mais traumáticas para os socialistas, Vara regressou à Caixa, em 2001, da qual era quadro. Mas logo para assumir um cargo mais qualificado e bem pago do que tinha antes.
Tornou-se diretor e diretor coordenador, funções que desempenhou entre 2001 – quando a Caixa era liderada por António de Sousa – e 2005. Foi nesta fase que concluiu a sua formação académica: uma licenciatura em Relações Internacionais na Universidade Independente, a mesma da polémica licenciatura de Sócrates, e uma pós-gradução em gestão empresarial no ISCTE.
A ascensão à administração da Caixa surgiu com o regresso ao poder dos socialistas, em fevereiro de 2005, liderados pelo seu antigo colega de Governo. Esta promoção ajudou a derrubar o primeiro ministro das Finanças de José Sócrates, segundo o próprio. Campos e Cunha confirmou na comissão parlamentar de inquérito à Caixa ter recebido pressões para afastar a administração do banco público, que tinha sido nomeada por um Governo PSD/CDS. Em carta enviada à comissão de inquérito, revelou o argumento invocado pelo então primeiro-ministro: os gestores da Caixa eram “nossos inimigos” — dos socialistas, entenda-se.
Segundo Campos e Cunha, foi Sócrates a indicar Vara e Carlos Santos Ferreira, um gestor do setor financeiro militante de longa data do PS, para a liderança da CGD. Mas foi preciso o ministro cair para Vara chegar à gestão do banco público pela mão do novo responsável pelas Finanças, Teixeira dos Santos.
https://observador.pt/2017/01/12/teixeira-dos-santos-explica-era-socrates-na-gestao-da-caixa/
A história do convite para a Caixa tem, contudo, outra versão. Segundo contou Teixeira dos Santos no Parlamento, a iniciativa de colocar Armando Vara na administração do banco foi sua e não teve qualquer interferência do então primeiro-ministro. A circunstância de os dois nomes que escolheu terem sido propostos ao seu antecessor nas Finanças é para Teixeira dos Santos apenas uma “coincidência”.
Santos Ferreira e Armando Vara também confirmaram que foi Teixeira dos Santos a escolhê-los para a administração da CGD e negam ter falado com José Sócrates antes do convite. Vara acrescentou que Teixeira dos Santos tinha grande confiança nele e garantiu que nunca tratou o então primeiro-ministro por “chefe”.
Uma escolha que dava “conforto” a Teixeira dos Santos
E porque convidou o então ministro das Finanças um socialista sem currículo para um cargo daquela natureza? Teixeira dos Santos usou dois argumentos: “Era uma pessoa conhecida e cumpria o objetivo de ser alguém com carreira na Caixa. Foi meu colega no Governo de Guterres, que eu conhecia, o que me dava algum conforto”. O ex-ministro fez questão de sublinhar a carreira feita na Caixa por Armando Vara – que, curiosamente, omite a sua passagem pelo balcão do banco em Mogadouro no último currículo que apresentou quando administrador do BCP. Neste documento, Vara diz que a sua primeira experiência profissional foi a de membro da assembleia parlamentar do Conselho Europeu, em 1987.
Para Teixeira dos Santos, o socialista tinha conhecimento dos cargos de direção da Caixa e capacidade de liderança, fazia a ligação entre a administração e dava um sinal aos quadros do banco de que poderiam chegar ao topo (mesmo tendo começado na base).
Vara tomou posse como administrador em agosto de 2005 e ficou responsável pelas direções de crédito a empresas e participações financeiras. Não era um especialista em banca, nem tinha grande experiência – dificilmente passaria as exigências atuais do Banco Central Europeu (BCE) em matéria de qualificações e know-how. Os adversários políticos criticavam a escolha e apontavam à politização do banco público. Em declarações ao Diário Económico, nessa altura, Vara respondeu às reservas: “Tenho 22 anos de CGD. Há quatro anos, regressei. Não vejo onde é que isso possa ser uma politização”. Aqui, contabilizava o tempo desde 1985, quando esteve no balcão de Mogadouro.
Por outro lado, segundo os seus defensores, Vara tinha faro comercial e uma grande dinâmica e capacidade para fechar negócios. Possuía ainda muitos contactos dos tempos da política, tinha boas relações com os autarcas e também entrava bem no mundo do futebol e no setor da construção. Mas a sua passagem pela Caixa ficou ligada a uma operação em particular — o projeto imobiliário de luxo que já fez o banco do Estado perder muitos milhões, mas que Vara continua a defender como um bom negócio.
O financiamento e a entrada da CGD no capital de Vale do Lobo tem merecido muita atenção na imprensa e na arena política, mas também na justiça, que estabeleceu uma ligação entre os dois ex-governantes socialistas que vai para além da política. Os caminhos de Armando Vara e José Sócrates voltaram a cruzar-se nesse processo de Vale do Lobo, segundo a acusação do Ministério Público. Foi por causa da sua intervenção enquanto gestor da Caixa no financiamento a este empreendimento que Vara foi constituído arguido e acusado na Operação Marquês.
Como e por quem chegou Vale do Lobo à Caixa
Tal como a ida do ex-ministro socialista para a administração da Caixa, também o envolvimento de Armando Vara no dossiê Vale do Lobo tem mais do que uma versão. Na comissão de inquérito à Caixa, Vara referiu que o negócio foi proposto ao diretor para o Algarve e só depois chegou aos serviços centrais. A mesma versão foi dada pelo próprio no interrogatório da Operação Marquês, e cujo conteúdo foi divulgado pelo Observador.
Já a versão contada no livro Quem Meteu a Mão na Caixa, de Helena Garrido, diz que foi o então administrador, Armando Vara, a reenviar um e-mail de Diogo Gaspar Ferreira, um dos promotores e compradores de Vale do Lobo, ao diretor de crédito a empresas da Caixa. O e-mail remetido para Alexandre Santos, a 28 de junho de 2006, sem comentários do próprio Vara, dizia: “Tal como combinado com Rui Horta e Costa (o outro promotor) enviamos relatório sobre resort de Vale do Lobo”.
https://observador.pt/2017/03/22/armando-vara-responde-sobre-creditos-polemicos-na-caixa/
Aos deputados, o antigo gestor da Caixa defendeu os méritos desta operação.O resort de luxo que estava à venda “assentava como uma luva no projeto prime que queríamos para a Caixa”. E invocou o currículo dos promotores de Vale do Lobo. Um era profissional do setor – Gaspar Ferreira; outro era um homem da banca – Rui Horta Osório; outro liderava uma importante empresa em Angola – Hélder Bataglia, o rosto da Escom, da qual o Grupo Espírito Santo era acionista. “Não havia razão para duvidar de que tinham capacidade para avançar com o projeto”. E havia, garante, outros bancos interessados em financiar o projeto.
E porque pediram os promotores todo o dinheiro à Caixa para comprar Vale do Lobo? “Quando o projeto começou, sabíamos que os acionistas estavam renitentes em meter mais dinheiro porque as garantias eram mais do que suficientes”, respondeu, citando pareceres de consultores que avaliavam o património em mais de 400 milhões de euros.
Armando Varia afirmou também que “a avaliação que as direções da Caixa fizeram do projeto fez com que fosse aprovado sem nenhuma reserva mental”. Ao longo da audição, o ex-gestor reconheceu a disparidade dos dinheiros envolvidos: logo na fase inicial desta operação a Caixa meteu mais de 200 milhões de euros – no resort propriamente dito e num empréstimo aos acionistas que o compraram – enquanto os promotores apenas investiram 10 milhões de euros.
Uma diferença de tal ordem levantou suspeitas e Vale do Lobo suscitou o interesse dos procuradores do caso Marquês. No interrogatório a Armando Vara, revelado pelo Observador, o ex-gestor admitiu ao juiz Carlos Alexandre que teve conhecimento pessoal e direto do dossiê através de Gaspar Ferreira.
Um grande negócio ou um buraco?
Se é certo que “abraçou de imediato” o projeto, Vara envolveu também a “generalidade das direções que se pronunciaram sobre o negócio e que também apoiaram”. O investimento de mais de 200 milhões de euros “foi apresentado como tendo uma margem hipotética de sucesso imensa” e diz que a “avaliação pela direção de riscos da Caixa é tudo menos ousada, é conservadora”. Apesar deste entusiasmo, Armando Vara não se recorda se esteve no conselho de crédito que aprovou a operação. Mas realçou que nunca teria sido autorizada apenas com uma assinatura.
No livro sobre a CGD, Helena Garrido revelou, a partir da acusação da Operação Marquês, a existência de documentos internos a alertar para o risco da operação e cita pareceres da equipa de avaliação de risco onde é referido que o financiamento era excessivo. Em causa estava, por exemplo, o facto de estar concentrado apenas num banco, a Caixa, e não distribuído por um sindicato bancário como chegaram a exigir outros bancos contactados pelos promotores.
A comissão de avaliação de risco terá proposto a constituição de um fundo de investimento que comprasse Vale do Lobo, assegurando a penhora do património imobiliário e em que os promotores teriam de entrar também com capital próprio. Segundo a tese de acusação do Ministério Público, partiu de Armando Vara a proposta de a Caixa entrar como acionista para viabilizar o negócio — o que veio a acontecer com 25% do capital da sociedade que iria gerir o empreendimento.
Vale do Lobo começou a falhar pagamentos à Caixa em 2009. Até os buggies estão penhorados
A operação foi aprovada no final de julho de 2006 pelo conselho de crédito da Caixa com um envelope total de 250 milhões de euros, dos quais 30 milhões eram a participação acionista do banco do Estado. Segundo o livro Quem Meteu a Mão na Caixa, antes de o empréstimo ir ao conselho de crédito alargado, onde receberia o aval definitivo, Armando Vara terá reunido várias vezes com os promotores, que queriam mais garantias. A operação que teve luz verde em outubro de 2006 é diferente da que foi analisada em julho, envolve menos dinheiro, mas mais risco para a Caixa, incluindo uma cláusula que permite ao administrador Armando Vara aumentar o financiamento concedido sem outras autorizações. O gestor usou essa faculdade para conseguir também uma taxa de juro mais favorável para os promotores do que a proposta feita pela direção da zona sul da Caixa.
Nesta fase, Vale do Lobo voltou a suscitar alertas da equipa de avaliação de risco, sobretudo pela reduzida exposição dos promotores. A Caixa emprestou praticamente todo o dinheiro para comprar o resort, mas só ficou com 25% da sociedade, cuja gestão seria entregue durante anos aos promotores que entraram com menos de 10% do valor do negócio.
Já depois de a Caixa ter sido obrigada a reconhecer perdas de mais de 100 milhões de euros – Vale do Lobo começou a falhar pagamentos em 2009 – Vara testemunhou no Parlamento que o projeto não era um buraco e que a Caixa iria recuperar no mínimo o dinheiro que lá tinha colocado. Entre investimento direto e financiamentos, a Caixa terá mobilizado mais de 372 milhões de euros em dez anos. O balanço final ainda não está feito. O património e a gestão do empreendimento foram transferidos no final de 2017 para o fundo gerido pela ESC, de António de Sousa. A transação foi feita por 220 milhões de euros, mas a Caixa ficou com uma exposição de 36% ao empreendimento.
A passagem de Armando Vara pelo banco do Estado ficou ainda marcada pela recusa da Caixa em dar luz verde à OPA da Sonae sobre a PT, empresa onde Vara era administrador em representação do banco do Estado. Sobre esta posição, Vara respondeu aos deputados que o chumbo à OPA revelou-se o melhor negócio para os acionistas da PT, que receberam dividendos extra e ainda a PT Multimedia na bolsa.
O “assalto ao BCP” e os negócios que mais perdas deram à Caixa
Armando Vara e Santos Ferreira estiveram na Caixa apenas dois anos, mas a sua gestão é identificada com os negócios mais ruinosos decididos pelo banco do Estado. Para além de Vale do Lobo, onde é reconhecido o protagonismo do antigo ministro socialista, este período ficou ainda marcado pelos empréstimos ao grupo químico catalão La Seda, o projeto que é recordista de perdas para a Caixa, pelo financiamento a autoestradas que correram mal e pelos empréstimos volumosos a acionistas do BCP, tendo como única garantia as próprias ações. Estas operações deixaram a Caixa vulnerável ao sobe e desce — muito mais desce do que sobe — da bolsa, ainda que Vara tenha explicado aos deputados da comissão de inquérito que os empréstimos para compra de ações eram, na altura, um grande negócio. Mas estava apenas em causa um negócio bancário?
Há desconfianças de que, por trás destas operações, estava uma ambição de poder que aproveitou a guerra dentro do BCP para promover uma espécie de golpe de Estado no maior banco privado nacional. E, nesta tese, a dupla Santos Ferreira/Armando Vara estaria do lado dos “golpistas” porque foi na sua administração que foram concedidos centenas de milhões de euros de empréstimos a acionistas do BCP que desafiavam o domínio do fundador do banco, Jorge Jardim Gonçalves. É deste tempo a dívida que Joe Berardo já renegociou com perdões, mas que ainda não pagou – dados da auditoria forense à gestão da Caixa, revelados pelo Correio da Manhã, apontam para 280 milhões de euros.
Outra história que não correu bem foi o financiamento a Manuel Fino, que levou a Caixa a executar uma participação acionista na Cimpor e a assumir o papel de protagonista involuntário na queda da cimenteira portuguesa anos mais tarde.
https://observador.pt/2017/01/19/santos-ferreira-responde-sobre-os-negocios-polemicos-da-caixa/
O papel dos gestores da Caixa no conflito do banco rival só ganhou visibilidade quando Santos Ferreira e mais dois administradores trocaram a administração do banco do Estado pela do BCP. A troca teve a bênção do então primeiro-ministro José Sócrates — não teria acontecido de outra forma, o que sustentou a leitura de uma interferência política e do Governo no banco privado.
A CGD era acionista de referência do BCP e Santos Ferreira foi um dos chamados pelo então governador do Banco de Portugal. Vítor Constâncio avisou os acionistas do BCP de que teriam de mudar a administração de Filipe Pinhal, que estava a ser investigada por irregularidades graves – um processo construído a partir de um dossiê que o advogado de Joe Berardo, então um dos principais acionistas do banco, reuniu contra a equipa de fiéis ao fundador do BCP. Após o alerta, os maiores acionistas do banco reuniram-se na EDP e foi aí que surgiu a hipótese de Santos Ferreira ir para o BCP, confirmou o próprio, embora tenha acrescentado que saiu da reunião quando o seu nome foi falado.
Confrontado com o apoio recebido dos acionistas do BCP que tinham conseguido empréstimos generosos da Caixa para comprar ações do banco, Santos Ferreira deu esta explicação: “Passei vários anos a ouvir falar do assalto ao BCP. Achei mal, mas achei que não me cabia explicar. E, se tivesse explicado logo, não estaríamos se calhar a falar dele hoje aqui”.
A Caixa tinha 7,8% do capital do BCP. Na assembleia em que foi eleito presidente do BCP, votou 71% do capital. “Não foram de certeza as ações detidas pela Caixa, nem as ações financiadas pela Caixa”, que fizeram a diferença para a sua eleição, garantiu o antigo gestor.
Armando Vara fazia parte da equipa de Santos Ferreira e foi um dos homens de confiança que quis levar consigo para o novo cargo. O presidente da Caixa levou também Vítor Fernandes, mas fez de Vara o seu vice-presidente, o mesmo cargo que tinha na altura Paulo Macedo, que regressou ao banco depois de ter sido diretor-geral dos Impostos.
No BCP, Vara manteve a relação comercial com as empresas, sendo ainda responsável pelos pelouros do marketing e comunicação, património e segurança, bem como pela promoção imobiliária. Mas acabou por deixar pouca marca na gestão do banco. Dois anos depois, foi constituído arguido na Operação Face Oculta e acabou por abandonar o cargo, depois de ter sido suspenso vários meses, por imposição do Banco de Portugal. Armando Vara não voltou à banca (nem aliás podia, dada a sua situação jurídica), mas ainda trabalhou com a construtora brasileira Camargo Correia — a dona da Cimpor — em Angola.
Sobre o legado que deixou a sua gestão, Armando Vara destaca que a Caixa nunca teve lucros tão elevados como no período em que esteve na administração. Na verdade, os problemas já estavam no balanço, mas só começaram a vir à superfície a partir de 2008, já depois de a dupla ter saído para o BCP. Primeiro foi a crise financeira, depois a crise económica e a seguir a crise do euro e o resgate internacional. É certo que esta série negativa ajuda a explicar os prejuízos avultados da Caixa e que contribuiu para as necessidades da recapitalização, a maior feita num banco português.
Mas também sabemos hoje que as operações que mais perdas trouxeram foram decididas no tempo de Santos Ferreira e Vara. O levantamento feito no livro Quem Meteu a Mão na Caixa indica que a maior fatia das imparidades (perdas) registadas desde 2000, no valor de 5.633 milhões de euros – 39,5% do total —resultaram de créditos concedidos durante aquela a gestão. Podem ter sido apenas más decisões de negócio tomadas quando o crédito era abundante e fácil?
Aos deputados, Armando Vara afastou qualquer interferência política na gestão do banco: “O tempo que tivemos na Caixa foi talvez o tempo em que houve menos intervenções nas decisões da Caixa”. O Governo reduziu a administração e só substituiu três gestores. “Era uma administração muito colorida”, disse numa referência à diversidade política da equipa da qual fez parte. Na verdade, um levantamento feito pelo Observador mostra que aquela administração foi a que teve maior domínio de um partido – o PS – na militância ou proximidade dos seus administradores. Se não houve inferência política, porque foram feitos negócios tão maus para o banco? Azar? Má gestão? Ou houve outras motivações?
O “choque” pela condenação
“Estou em choque, confesso.” Foi assim que Armando Vara reagiu, minutos depois de ter ouvido Raúl Cordeiro, juiz presidente do coletivo que julgou o processo Face Oculta, a condená-lo a uma pena de prisão efetiva de cinco anos pela prática de três crimes de tráfico de influência.
Estávamos a 5 de setembro de 2014, o Tribunal Judicial de Aveiro estava cheio como um ovo com os 34 arguidos e os seus advogados — alguns deles dos principais da nossa praça. Ao fim das 188 sessões do julgamento que decorreu entre 8 de novembro de 2011 e 5 de setembro de 2014, o ex-ministro-adjunto de António Guterres percebeu que o tribunal tinha decidido aplicar mão pesada à “rede tentacular” constituída pelo sucateiro Manuel Godinho.
A partir da pena de prisão de 17 anos e 6 meses para Godinho pelos crimes de associação criminosa, corrupção ativa, fraude fiscal, branqueamento de capitais e burla, o tribunal distribuiu penas pesadas pelos principais réus, nomeadamente pelos elementos ligados ao PS, como José Penedos (ex-presidente da REN), o seu filho Paulo (advogado), Domingos Paiva Nunes (ex-administrador da EDP Imobiliária) e o próprio Vara. Foi uma decisão histórica para um processo mediático que marcou a entrada da Justiça nos esquemas de corrupção das empresas públicas e das suas ligações aos partidos políticos.
Armando Vara tinha, por isso, razões para estar estupefacto. Tal como José Sócrates, de quem era fiel seguidor (e continua a ser), Vara entendia (e continua a entender) que não tinha sido sujeito a um julgamento justo.
Esperava o mesmo que aconteceu a José Sócrates — que viu Noronha de Nascimento, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ordenar, em 2009 e em 2010, a destruição das escutas telefónicas entre o próprio Sócrates e Armando Vara sobre a tentativa de controlo da comunicação social que esteve sob investigação no processo Face Oculta. A promoção da destruição de escutas foi assinada por Fernando Pinto Monteiro, então procurador-geral da República, que discordava do procurador João Marques Vidal quanto ao fundamento para investigar o caso. Era essa também a sua “circunstância” — a circunstância de um homem que já não se sentia poderoso. Daí o “choque”.
O “pesadelo” da caixa de robalos
Na verdade, a descida ao inferno de Armando Vara tinha começado ao mesmo tempo que José Sócrates vivia a ilusão de que a Justiça nunca o investigaria. A 28 de outubro de 2009, o Departamento de Investigação e Ação Penal do Baixo Vouga e a Polícia Judiciária de Aveiro desencadearam uma mega-operação de buscas a empresas como a REN, a Refer, a CP, a Lisnave e às estrelas da bolsa nacional: a Portugal Telecom e a Galp.
Rapidamente se percebeu que o centro da investigação do caso Face Oculta era um personagem desconhecido: Manuel Godinho, sucateiro de Ovar, que construiu um pequeno conglomerado de empresas de resíduos com contratos assinados com empresas públicas.
Armando Vara estava, então, no auge do seu poder. Desde janeiro de 2008 que era vice-presidente do BCP. Rapidamente os jornais descobriram que o seu nome fazia parte dos ‘alvos’ da investigação do Face Oculta, tendo a sua casa e o gabinete no BCP sido visitados pelas autoridades.
Outros nomes ligados ao PS, como José Penedos (então presidente da REN), o seu filho Paulo, o empresário Lopes Barreira e António Chocolate Contradanças (militante do PS e ex-administrador do Porto de Sines e da empresa pública IDD — Indústria de Desmilitarização e Defesa) são igualmente alvo de buscas. A pista socialista, contudo, só concentrou a atenção do país mais tarde, com as escutas entre Sócrates e Vara.
Mal se soube do envolvimento de Armando Vara no processo Face Oculta por suspeitas de ter recebido contrapartidas avaliadas em 10 mil euros de Manuel Godinho (que também era cliente do BCP), o Banco de Portugal começou a ser questionado sobre a revisão da idoneidade do então vice-presidente do BCP. Com Vítor Constâncio chamuscado com a queda do BPN e a intervenção do BPP, devido a uma deficiente supervisão do mercado bancário, o banco central teve de agir. Vara foi obrigado a suspender funções a 3 de novembro. Constâncio viu isso como “uma boa notícia para a credibilidade do sistema financeiro nacional”. Declarações que Vara jamais perdoaria — como não perdoou a Jorge Sampaio a pressão sobre António Guterres para demiti-lo de ministro da Juventude e do Desporto devido ao escândalo da Fundação para a Prevenção e Segurança. O BCP comunicou ao mercado a 3 de julho de 2010 que Vara tinha renunciado ao seu mandato. Ganhava 37 mil euros por mês e terá recebido 562 mil euros de indemnização.
Ouvido formalmente no Tribunal de Instrução Criminal de Aveiro a 28 de novembro de 2009, sobre as suspeitas de três crimes de tráfico de influência, o ex-ministro tentou desvalorizar as suspeitas que existiam contra si ao afirmar: “Nunca recebi presentes do senhor Manuel Godinho, a não ser uma caixa de robalos e um equipamento desportivo para o meu filho”. Vara estava confiante de que o “pesadelo” ia terminar em breve.
O juiz António Costa Gomes, então com 39 anos, não lhe fez a vontade e fixou-lhe uma caução de 25 mil euros, por entender que os indícios recolhidos pela equipa liderada pelo procurador João Marques Vidal tinham fundamento. Vara não desistiu. “Vou fazer disso um combate. É o meu bom nome que está em causa”, jurava.
Quase seis anos depois, o “pesadelo” deu lugar ao “choque” com a sentença de cinco anos de prisão efetiva pelos mesmos três crimes de tráfico de influência que lhe tinham sido imputados em novembro de 2009. Os recursos para o Tribunal da Relação do Porto e para o Tribunal Constitucional não anularam qualquer crime nem reduziram a pena.
A prisão preventiva e a acusação na Operação Marquês
Condenado em primeira instância no processo Face Oculta, a Justiça apontou novamente a mira a Armando Vara. E logo na Operação Marquês — o processo mais importante da história judicial portuguesa, que tem o seu amigo José Sócrates como principal arguido. Quem conhece bem os meandros do PS e a proximidade entre Sócrates e Vara sabia que, depois da prisão preventiva do ex-primeiro-ministro, era uma questão de tempo até Vara ser investigado.
Desta vez, é suspeito de corrupção passiva, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Em causa estava uma decisão na CGD por alegada influência de José Sócrates. Por muito que Carlos Santos Ferreira (o líder da administração da Caixa) e Fernando Teixeira dos Santos (ministro das Finanças) tenham desmentido, sempre existiu a perceção de que Vara foi para a administração da Caixa por influência do seu amigo e primeiro-ministro.
Na Operação Marquês, está em causa o alegado favorecimento de Vara na concessão de crédito a um grupo de investidores liderados por Hélder Bataglia, Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta e Costa para adquirirem e expandirem o empreendimento de luxo Vale do Lobo, no Algarve.
Armando Vara foi detido a 9 de julho de 2015, tendo o juiz Carlos Alexandre decretado a prisão preventiva domiciliária. Essa medida de coação foi substituída por uma caução de 300 mil euros a 8 de outubro — um mês depois de Sócrates ter passado da prisão de Évora para a casa da sua ex-mulher, Sofia Fava.
Armando Vara foi formalmente acusado pelo Ministério Público a 11 de outubro de 2017 por um crime de corrupção passiva de titular político, em regime de co-autoria com Sócrates, de dois crimes de branqueamento de capitais — um deles em regime de co-autoria com José Sócrates e o outro em co-autoria com a sua filha Bárbara —, e de dois crimes de fraude fiscal.
De acordo com a tese do Ministério Público, Vara seguiu instruções de José Sócrates no alegado favorecimento na cedência do crédito ao grupo de investidores, tendo existido uma comissão de 2 milhões de euros, dividida entre os dois.
O ex-ministro adjunto de António Guterres contestou a acusação do Ministério Público e requereu a abertura de instrução para evitar a pronúncia para julgamento. Vara considera que a acusação não tem fundamento e que os autos devem ser arquivados. Agora, só conhecerá o final dessa história numa cela do Estabelecimento Prisional de Évora.