No próximo dia 9 de maio será lançado o livro “Portugal, Paraíso das Criptomoedas”, editado pela Lua de Papel. Os jornalistas Fábio Monteiro e Inês Rocha são os autores da obra que fala sobre os perigos, mas também analisa o que poderão ser as oportunidades, do dinheiro digital.
O livro tem histórias, na primeira pessoa, de quem ganhou dinheiro com estas criptomoedas, que viviam em Portugal em férias fiscais. Mas coloca este mundo em perspetivas, falando, também, dos riscos e do seu submundo. A génese deste livro foi um trabalho realizado para a Renascença denominado “No Paraíso das Criptomoedas”. Como os autores explicam na introdução do livro que decidiram prolongar a investigação. Em 2021 vivia-se uma fase ascendente, em 2022 a experiência de muitos era de queda-livre. Foi do êxtase à ressaca. O livro sugere seis paragens. O Observador faz a pré-publicação de um capítulo na quarta paragens: A História de um julgamento.
São quase oito da noite quando um grupo de inspetores da Polícia Judiciária (PJ) chega ao centro da cidade de Vila Real para executar um mandado de busca. Batem, sem aviso prévio, à porta de um jovem casal suspeito de traficar drogas online. No calendário: 28 de junho de 2017.
A operação foi preparada de antemão e a hora da busca escolhida com um propósito: apanhar os suspeitos em casa e, de preferência, com os computadores ligados. Mas escapou aos inspetores um pormenor importante: é véspera de São Pedro, noite de festa na cidade. As ruas estão apinhadas de gente, que se divide entre as barracas da Feira dos Pucarinhos e as roulotes de cachorros e hambúrgueres. Falta pouco para que a fadista Mariza suba ao palco, na Praça do Município.
Ricardo David, responsável pela operação, conclui logo que será difícil perceber se os suspeitos estão em casa. Mesmo assim, decide avançar. Os inspetores tocam à campainha de Pedro e Rita, mas ninguém atende e acabam por forçar a entrada no apartamento. Depois de confirmarem que não está ninguém em casa, chamam um vizinho, para servir de testemunha, e avançam.
Exceto na casa de banho e na cozinha, encontram estupefacientes espalhados por todo o lado; haxixe, ecstasy, marijuana e outros tipos de drogas; há até gomas em forma de ursinho impregnadas com LSD, uma inovação tal no campo dos narcóticos que o laboratório criminal especificará que nunca viu este tipo de edibles (drogas comestíveis) em Portugal. Descobrem ainda outras substâncias psicoativas que não estão sequer abrangidas pela legislação portuguesa. E, por fim, uma caixa com cerca de 30 mil euros em notas.
De acordo com as evidências, é na mesa da sala que o haxixe é batido, prensado e selado a vácuo, para depois ser enviado via Correios de Portugal (CTT) para todo o mundo. Como? Dentro de capas de telemóvel e outros engodos.
O cenário não surpreende a PJ, apenas atesta as suspeitas. Nos meses que precederam a busca, tinham intercetado dezenas de envelopes com vários tipos de drogas, com destinatários em países como França, Reino Unido, Austrália ou Estados Unidos. Nos remetentes, apareciam moradas de lojas vazias, com nomes de empresas fictícias. Mas saía tudo, na verdade, daquele apartamento em Vila Real.
Enquanto uns inspetores recolhem os estupefacientes, Ricardo David e um colega iniciam outra busca: a informática. Na casa de Pedro e Rita encontram quatro computadores ligados. Assim que percebem qual é o principal, fazem um memory dump (despejo de memória, em português), ou seja, clonam a memória RAM do computador para um ficheiro, ficando com acesso aos dados. Com este método, é possível conseguir algumas passwords, mas não é garantido; programas com altos níveis de encriptação não permitem que as palavras-passe fiquem armazenadas na memória RAM do computador.
Pedro foi descuidado. Saiu para a festa e deixou o computador principal desbloqueado. No browser, há páginas abertas e com o login efetuado. Um dos websites é o LocalBitcoins, que permite a venda direta de criptomoedas a outros utilizadores. Sem esforço ou grandes delicadezas informáticas, os inspetores apreendem duas bitcoins que Pedro tem “à venda” naquela página.
Ricardo David e o outro inspetor encontram também a cold wallet de Pedro, armazenada no computador principal. Lá dentro, estão guardadas perto de 55 bitcoins. Os inspetores, contudo, não conseguem mexer na carteira. Podem ver todas as transações, mas não movimentar o saldo. Falta-lhes a chave digital de acesso.
Aquele banco privado está fora de qualquer jurisdição.
***
O caso de Pedro e Rita* é pioneiro a vários níveis em Portugal. É o primeiro em que se discute o tráfico de drogas e o branqueamento de bitcoins em tribunal. O primeiro em que há uma grande apreensão de criptomoedas. O primeiro em que se debate, perante um juiz, o enquadramento fiscal da mineração, assim como o propósito de um blender, um sistema que permite “lavar” criptomoedas, que a lei portuguesa permite.
O julgamento arranca em abril de 2019, quase dois anos depois da operação de busca e da detenção dos suspeitos em Vila Real. E fica claro, desde o início, que as criptomoedas não são um tema sobre o qual o Ministério Público esteja muito versado.
As incoerências e imprecisões são muitas. Ainda na exposição introdutória da defesa, David Silva Ramalho, o advogado de Pedro, começa por detetar um “lapso” no primeiro ponto da acusação, que identifica o browser Tor como uma “rede normalmente dedicada a atividades ilícitas”.
“Não é dedicado a atividades ilícitas, é dedicado a promover o anonimato”, disse o advogado.
De facto, apesar de o Tor ser frequentemente associado a atividades ilícitas, um estudo publicado em 2020, na revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, concluiu que apenas um em cada 20 utilizadores visitam páginas potencialmente ilícitas.
Durante o processo, é o advogado de defesa que corrige e traduz elementos da acusação para o coletivo de juízes. O julgamento ocorre como que em duas línguas em simultâneo – e os tradutores de serviço são o próprio arguido, o seu advogado e as testemunhas inquiridas por ambas as partes.
A metamorfose do miner
Após serem detidos, Pedro e Rita são transportados para Lisboa e interrogados ainda na mesma noite. Ficam ambos em prisão preventiva.
Vai ser preciso esperar quase um ano até a web designer ser libertada, em abril de 2018, após a fase de instrução. O informático autodidata continuará preso.
O casal é acusado de dois crimes: tráfico de estupefacientes e branqueamento de capitais. Com uma particularidade: os capitais, na sua maioria, eram criptomoedas. A tese do Ministério Público (MP), vertida na acusação, estipula que o casal vende estupefacientes em, pelo menos, dois mercados de droga da dark web – o Alphabay Market e o Dream Market –, remetendo as encomendas para todo o mundo via CTT.
De início, são acusados de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, mas no despacho de pronúncia, o crime de tráfico passa de agravado a simples: o juiz de instrução considera que não ficou provado que o produto estupefaciente tivesse sido “efetivamente distribuído por um elevado número de pessoas”.
Quando o julgamento arranca, Pedro e Rita são, então, acusados de um crime de branqueamento de capitais e de um crime de tráfico de estupefacientes simples. O primeiro delito é punível, de acordo com o artigo 368.º-A do Código Penal, com uma pena de prisão de dois a 12 anos. O segundo, em linha com a Lei n.º 25/2021, pode ir de quatro a 12 anos.
No centro do julgamento estão três esquemas de branqueamento, identificados pelo Ministério Público, que partilham uma estrutura semelhante: os lucros obtidos com o tráfico em bitcoins sairiam dos mercados de droga “lavados” (sem rasto), passariam por um blender e, depois, seriam transferidos para a cold wallet de Pedro. As principais diferenças estariam na forma como os lucros em criptomoedas se transformavam em euros.
No cenário um, as criptomoedas eram transferidas da cold wallet de Pedro para a sua conta no Local Bitcoins, onde depois seriam vendidas. Posteriormente, os arguidos receberiam o dinheiro, em euros, por carta, em mãos ou por transferência bancária.
No cenário dois, eram transferidas da cold wallet para uma conta na corretora de criptomoedas Kraken; de seguida, o dinheiro resultante da transação seria transferido para uma conta do banco digital LeuPay, associada a um cartão de débito.
E no cenário três, eram transferidas da cold wallet para uma conta na corretora Xapo, onde ficariam também associadas a um cartão de débito.
O Ministério Público sublinha que os arguidos nunca transferiram o dinheiro diretamente para as suas contas bancárias em Portugal e que usaram sempre corretoras com sede no estrangeiro (Estados Unidos, Malta e Gibraltar) para movimentar o dinheiro.
Em tribunal, o informático confessa logo o crime de tráfico de estupefacientes. Quanto a Rita, coloca-a fora da história; jura que começou a traficar às escondidas e que, quando a companheira descobriu, sempre se mostrou contra a atividade.
“Eu consegui fazer com que a Rita ignorasse até recentemente. Quando ela ia a casa do pai, visitar o irmão, eu fazia isto tudo. Ela descobriu substâncias em casa, uma vez, e disse para me ver livre daquilo”, afirma.
Já sobre a acusação de branqueamento de capitais, declara-se inocente. Garante que nunca usou dinheiro do tráfico e que todas as bitcoins apreendidas, tanto na carteira física como nas várias contas online, provêm de atividades lícitas, de mineração e trading. Algo que faz há anos.
***
Alegadamente, tudo começa com um trabalho académico. Em 2010, Pedro frequenta o curso de Engenharia Eletrotécnica – que não chegou a terminar –, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila Real.
Enquanto pesquisa para um trabalho que está a fazer com um colega, relacionado com eletricidade, descobre a bitcoin. Depois de investigarem o conceito e o funcionamento, ambos decidem experimentar minerar com os seus computadores pessoais.
Em 15 dias, cada um amealha cerca de 500 bitcoins. Mas, na época, a criptomoeda criada por Nakamoto ainda só vale cêntimos. Além de não ser rentável minerar – os gastos de eletricidade são superiores ao lucro gerado –, o processo deixa também os computadores praticamente inutilizáveis. Pedro e o colega optam por não levar o projeto adiante.
Tempos mais tarde, o informático substitui o disco rígido do computador onde armazenou as bitcoins, e guarda-o. E assim os lingotes de ouro digital caem no esquecimento durante dois anos.
Em 2012, quando um sobrinho lhe pede ajuda com uma avaria no computador, Pedro volta a pegar no disco que havia guardado e encontra as mais de 500 bitcoins que tinha guardado. “Fui à internet ver e já estavam a mais de dez euros. Eu tinha mais de 500, 600”, diz.
O amigo de Pedro teve menos sorte: “Formatou o computador, perdeu as [criptomoedas] dele.”
Quando descobre as bitcoins, Pedro vende-as a dez euros cada e ganha mais de cinco mil euros. Rapidamente, torna-se um convertido das criptomoedas e recomeça a atividade de mineração. Mas o processo mudara radicalmente no entretanto: ter um computador com uma boa capacidade de processamento já não é suficiente. Ou se junta à corrida com mining rigs de GPU ou aposta nos equipamentos com chips ASIC, recém-chegados ao mercado.
Em 2013, o informático compra 14 equipamentos de mineração com chips ASIC, gastando perto de 700 bitcoins.
Em 2015, Pedro desiste de minerar sozinho. Devido à concorrência das grandes farms de mineração espalhadas pelo mundo, tornara-se impossível produzir bitcoins de forma individual. O jovem adere a uma pool de mineração: tem 52 máquinas a minerar criptomoedas – guardadas num armazém do pai. Mesmo assim, a competição é forte, a mineração não é lucrativa. Os rendimentos mensais não chegam para pagar as contas de eletricidade, que rondam os seis mil euros.
O informático decide parar com a atividade de mineração. “Acho que foi em inícios de 2016 que deixei de o fazer, porque deixou de me compensar. Nessa altura, a dificuldade de produzir novas bitcoins subiu exponencialmente e deixei de ter lucro”, explicou ao coletivo de juízes.
Em todo o caso, não abandona de todo o universo das criptomoedas. Antes, metamorfoseia-se: de miner passa a ser trader. “Em 2015, 2016, eu e o Pedro éramos dos maiores vendedores da plataforma LocalBitcoins em Portugal”, diz Ricardo Filipe, investidor profissional de criptomoedas e fundador da corretora Luso Digital Assets, uma das testemunhas do arguido, durante o julgamento.
Um fator, porém, muda o rumo da história de sucesso e fortuna digital de Pedro. Pela mesma altura, começa a consumir vários tipos de drogas. E o consumo gera despesas cada vez maiores, o que acaba por conduzi-lo ao tráfico.
“Era um consumidor extremo de vários tipos de droga. Não sei o que me foi dar para começar esta atividade. Tinha a atividade da mineração, tinha capacidades para fazer mil e uma coisas… Hoje sei que foi pior erro da minha vida”, admite.
Segundo a acusação, o tráfico terá começado em meados do primeiro trimestre de 2017, até ser interrompido pelas autoridades, em junho do mesmo ano.
Quando é detido, Pedro tem 55,3 bitcoins na sua cold wallet, mais cerca de nove espalhadas por várias contas em plataformas online, em seu nome e da namorada. As criptomoedas estão divididas entre plataformas, corretoras e mercados de droga.
O arguido tem 0,76 bitcoins na sua conta no mercado de droga Dream Market, e mais algumas no Alphabay Market – mercado encerrado pelas autoridades norte-americanas cerca de uma semana depois da detenção de Pedro, razão pela qual o dinheiro que está nesta conta nunca chega a ser apreendido pela PJ.
Diante do coletivo de juízes, Pedro garante que o único dinheiro proveniente do tráfico são as criptomoedas que estão nas suas contas dos mercados de droga. O restante dinheiro seria “limpo”, oriundo das atividades de mineração e trading. Só que fica no ar a questão: como se distinguem umas criptomoedas das outras?
Impressões digitais
À Autoridade Tributária (AT), Pedro nunca chega a declarar ganhos com criptomoedas. Mas, em 2014, aparentemente, tenta. Contacta um contabilista para o ajudar a regularizar a sua situação. “Tentei declarar a minha mineração e, na altura, não havia enquadramento legal que me fosse explicado, nem pelas Finanças, nem pelo contabilista.”
Só em 2016 é que a AT irá emitir uma informação vinculativa relativamente ao tema. Dado o vazio legal, o contabilista sugere-lhe que abra atividade como retalhista de produtos informáticos especializados, já que, além de usar as máquinas para minerar, também as vende no Ebay.
Pedro segue apenas metade do conselho: “Nunca faturei nada com essa atividade.”
Chamado a depor, o técnico de contas confessa não se lembrar com grande pormenor da conversa que teve com o informático, quatro anos antes. Recorda-se, em todo o caso, de que o jovem “queria criar uma atividade ligada à informática, a umas transações via internet”.
“Falou-me também nas bitcoins, mas não me lembro de termos alargado muito a conversa. Se calhar foi a primeira vez que ouvi falar dessa questão”, diz.
Apesar de Pedro jurar que nunca precisou de branquear rendimentos com criptomoedas, os seus argumentos não convencem os juízes, que várias vezes o questionam sobre a lógica de traficar droga para depois não tocar no dinheiro recebido.
O informático alega: nunca usou o dinheiro da droga porque não teve necessidade disso. Tinha receio de o usar, por saber que ele tinha a “mancha” do tráfico. “As bitcoins nunca saíram dos mercados, nunca as tirei de lá”, garante.
“Estavam guardadas para, um dia, desaparecer com elas, era o meu objetivo. Nunca as converti e tinha receio sobre qual seria o melhor mecanismo para as converter quando precisasse. Não precisava delas porque tinha as minhas bitcoins legais”, explica ainda.
A Polícia Judiciária – ao contrário do que é procedimento habitual neste tipo de casos – não investiga a origem lícita das criptomoedas de Pedro, foca-se apenas nos indícios criminais. E isso deixa Pedro encurralado.
A lei portuguesa assume que, quando não é possível provar a origem lícita do dinheiro apreendido, ele vem da prática criminosa.
De acordo com a lei n.º 5/20025, que regula as medidas de combate à criminalidade organizada, em caso de condenação pela prática de um crime de tráfico de drogas, todo o património do arguido obtido até cinco anos antes da prática do crime que não esteja em conformidade com os rendimentos declarados é considerado vantagem da atividade criminosa.
Essa presunção pode ser afastada se o arguido provar a origem lícita dos seus bens. Quer dizer: se Pedro conseguisse provar que o dinheiro do tráfico estava apenas nos mercados de droga, as restantes 64,28 bitcoins apreendidas fora dos mercados seriam suas por direito.
O montante não é desprezível: em 2019, as criptomoedas apreendidas valem perto de 147 mil euros; em 2021, chegam a valer mais de 3,6 milhões de euros.
Para o advogado David Silva Ramalho, em casos como este, a Polícia Judiciária deve investigar a origem das criptomoedas. Existem softwares de análise da blockchain, “como por exemplo da Chainalysis, ou a Crystal Blockchain”, que permitem “seguir as transações para trás, para ver de onde vieram, onde é que certa transação foi buscar aquelas bitcoins, para simplificar”.
Se é verdade que as licenças deste tipo de programas “são muito caras” e pouco “comportáveis para a maioria das polícias”, isso não serve de justificação para que não se investigue, diz David Silva Ramalho.
Apesar de a PJ não ter acesso direto aos programas, existe um mecanismo de cooperação internacional para este tipo de casos. Quando necessário, pode socorrer-se da Europol ou outras congéneres. E havia ainda outra hipótese: verificar os equipamentos de mineração com chips ASIC.
Um especialista em mineração, chamado a testemunhar no julgamento, lembra: “Cada máquina tem uma potência associada para a mineração de bitcoin e, sabendo essa potência, é possível calcular se conseguiria minerar com essas máquinas e quantas bitcoins conseguiria.”
Em tribunal, o advogado de Pedro tenta encurralar o inspetor da PJ Ricardo David quanto à possibilidade da origem lícita das criptomoedas.
“Tendo em conta que tinham noção de que o arguido minerava, tentaram fazer essa despistagem?”, pergunta.
“Não, doutor. Não a fizemos. O objeto do inquérito não era esse”, responde o inspetor.
Mais tarde, o mandatário de Pedro volta a perguntar. “Fez alguma procura por registo de mineração do email deste arguido?”
“Não. Mineração não é crime”, responde o inspetor.
A vicissitude do ilícito
Então, como é que Pedro branqueava criptomoedas? Nos três esquemas identificados pelo Ministério Público, a primeira etapa passava por misturar as bitcoins ganhas no tráfico em blenders (também conhecidos por mixers).
Estas ferramentas, que cobram uma taxa por utilização, funcionam como uma espécie de tômbola de criptomoedas: quando um utilizador quer transferir uma bitcoin, coloca esse valor na tômbola; o recetor vai receber o mesmo valor, mas a bitcoin já não é a mesma. Dito de outra forma: um blender baralha a origem e limpa o rasto das criptomoedas.
Para o inspetor Ricardo David, a única utilidade deste mecanismo é o branqueamento de capitais. “Não há vantagem nenhuma em passar as bitcoins por um blender, a não ser que queiramos ocultar os proveitos de onde vieram aquelas bitcoins”, começou por dizer. Depois, acrescenta: “Até porque, ao fazê-lo, estamos a fazê-lo num site na dark web. Não tem segurança nenhuma. Uma vez depositando as minhas bitcoins, quem gere a plataforma pode desaparecer, levar as bitcoins, e eu não consigo queixar-me a ninguém, não consigo recuperar absolutamente nada”.
Durante o julgamento, a defesa argumenta que os mixers não servem apenas para lavar dinheiro, mas também como medida de segurança. Por sua vez, Pedro afirma que os usou para aumentar a privacidade da sua carteira.
“Às vezes, isto é usado para manter a privacidade. Porque eu já fui hackeado, por ter feito pagamentos e compras. A pessoa deve-se ter apercebido da quantidade de bitcoins que eu tinha e roubaram-me. Foram só dez bitcoins que conseguiram movimentar, mas podiam ter roubado tudo”, contou.
Segundo a Chainalysis, os mixers são usados, sobretudo, por utilizadores de bitcoin ditos normais, mas também por alguns criminosos. “Muita gente usa mixers para aumentar a privacidade pessoal”, palavras de Hannah Curtis, gerente sénior de dados da Chainalysis, durante um webinar6, em 2019: “Mas sabemos que muitos fundos ilícitos acabam por aparecer nos mixers.”
A legalidade destes serviços depende das jurisdições. Em Portugal, não há nenhuma lei que impeça o seu uso. Já nos Estados Unidos não é objetivamente ilegal usar mixers – mas pelo menos dois fundadores de serviços do género foram, nos últimos tempos, detidos e acusados de lavagem de dinheiro.
Em fevereiro de 2020, o criador do serviço de mixing Helix, Larry Deen Harmon, foi acusado de lavar 300 milhões de dólares. De acordo com o FBI, entre 2014 e 2017, o serviço “misturou” mais de 350 mil bitcoins de utilizadores, a maioria vinda de mercados da dark web.
Cerca de um ano depois, o criador do mixer Bitcoin Fog, Roman Sterlingov, foi acusado de branquear 1,2 milhões de bitcoins. Sterlingov, cidadão russo e sueco, teria recebido comissões de até 2,5% sobre cada uma das transações.
Já em 2022, os serviços de mixing Blender.io e Tornado Cash foram banidos pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Os serviços foram acusados de ajudar a branquear criptomoedas, em particular em ciberataques alegadamente ligados à Coreia do Norte.
***
Depois de deter Pedro, a Polícia Judiciária encontra uma conta do informático no Bitcoin Blender, um site que faz mixing, por onde teriam passado 22,6 bitcoins. A partir dessa informação, salta para a conclusão de que o arguido terá usado a ferramenta para lavar criptomoedas dos mercados de droga. Mas a PJ não olha, contudo, para um pormenor importante: a data.
As transações registadas na blockchain estão disponíveis na internet para consulta em websites como o Bitcoin Explorer – um motor de pesquisa dentro do protocolo que faz funcionar a bitcoin – e permitem buscas de movimentos por wallets.
Ora, uma pesquisa pela wallet de Pedro no Bitcoin Explorer é capaz de provocar um torcicolo. Todas as transações registadas no blender são de 2014. Mas, de acordo com a acusação, o tráfico começou no início de 2017, ou seja, Pedro teria de ter branqueado, em 2014, o dinheiro que recebeu em 2017.
O uso do Bitcoin Blender é apenas uma das etapas dos esquemas de branqueamento identificados pelo Ministério Público. Pedro é ainda acusado de continuar o branqueamento das bitcoins ao usar serviços internacionais para as converter e gastar, como os cartões de débito fornecidos pelas plataformas Kraken, Leupay ou Xapo. Desde janeiro de 2016 até à detenção em 2017, os arguidos terão carregado as suas contas com mais de 50 mil euros.
Para a acusação, o objetivo seria ocultar os proveitos do tráfico “e assim evitar lançar suspeitas sobre si mesmos”. Mas a defesa contra-argumenta: essas bitcoins nada têm que ver com tráfico de droga; tanto a Kraken, corretora norte-americana, como o Leupay, banco digital com sede em Malta, estariam sujeitos a políticas “Know Your Costumer” e a controlos contra o branqueamento de capitais nos respetivos países – facto confirmado durante o julgamento pelo inspetor da PJ, Ricardo David. Já a Xapo era, à data, o único serviço a oferecer um cartão de crédito que permitisse ir às compras diretamente com bitcoin.
A terceira forma de branqueamento que faz parte do conjunto de acusações a Pedro está relacionada com a venda de bitcoins a outros utilizadores no site LocalBitcoins. O Ministério Público (MP) diz ter chegado a esta conclusão através da análise da caixa de email do arguido. Durante o julgamento, porém, nem a defesa nem o perito nomeado pelo tribunal têm acesso aos emails.
Apesar de o procurador do MP ter chegado a descrever a participação de Pedro no processo judicial como “colaboração ativa” e de ter cedido a senha do seu Keypass (programa gestor de passwords), as coisas não lhe correm bem.
Ao ceder a senha do seu gestor de passwords, Pedro dá à PJ a possibilidade de apreender as suas bitcoins. De outra forma, tendo em conta o nível de segurança das ferramentas usadas pelo informático, será muito difícil às autoridades movimentá-las. E Pedro não pode ser responsabilizado por isso.
Em Portugal, um arguido não pode ser prejudicado por não colaborar com a investigação, de acordo com a advogada Catarina Almeida de Andrade, que, em 2014, escreveu uma tese de mestrado sobre “o princípio da não autoinculpação”. O mesmo, todavia, não acontece noutros países, em que existe o dever de colaboração geral do arguido com a investigação criminal.
No Reino Unido e na Bélgica, por exemplo, o arguido que não colaborar com a investigação pode incorrer numa pena de prisão ou numa multa. Ainda assim, pode ser mais vantajoso para o arguido cumprir a pena do que ceder uma password: “São penas reduzidas, que podem ir de dois a cinco anos de prisão na maioria dos ordenamentos jurídicos, não em todos. E também são convertíveis em penas de multa, muitas vezes.”
No caso de haver uma grande fortuna em criptomoedas, pode bem compensar pagar a multa em vez de dar a chave para movimentá-las.
A defesa de Pedro sublinha a boa-fé do arguido ao colaborar com a investigação, dizendo que só o fez por estar confiante de que poderia provar a legalidade das suas criptomoedas. Mas isso nunca chega a acontecer.
A penúltima sentença
Após vários meses de julgamento, em novembro de 2019, o coletivo de juízes do tribunal de primeira instância decide absolver Rita de todos os crimes. Já Pedro, que está em prisão preventiva há dois anos e quatro meses, é condenado a seis anos e quatro meses de prisão.
Nas declarações finais, David Silva Ramalho afirma que a defesa entrou num combate “de mãos atadas”. Durante todo o processo, tem acesso apenas aos emails que o Ministério Público selecionou e colocou no processo.
“As atividades de mineração e trading estão no correio eletrónico do arguido, a identificação das bitcoins mineradas está lá. As faturas dos produtos apreendidos nos autos estão no email, diz lá como foram pagos. A acusação não investigou o que não era crime, mas não deixou investigar aquilo que demonstrava licitude”, diz aos juízes.
David Silva Ramalho acusa também o inspetor Ricardo David de ter um depoimento “absolutamente parcial” e de ter apresentado uma investigação “com buracos”. “Este processo não lhe é indiferente. É a primeira grande apreensão de bitcoins em Portugal. Perder este processo é uma derrota pessoal”, atira.
Passado pouco tempo, o caso volta à estaca zero. Após a leitura da sentença, David Silva Ramalho recorre para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a anulação do julgamento por “violação das garantias de defesa do arguido”.
A justificação: não ter havido igualdade no acesso à prova. Em setembro de 2020, o Tribunal da Relação de Lisboa anula o julgamento e ordena a entrega de cópias integrais das caixas de email do arguido à defesa e ao perito.
No mês seguinte, após três anos e quatro meses em prisão preventiva, Pedro é libertado.
Desde então, aguarda a repetição do julgamento, que irá contar com nova perícia pedida pela defesa, já com acesso a toda a prova, e também com outra da Polícia Judiciária, requerida pelo Ministério Público. Devido à escassez de meios, é normal que uma perícia fique pendente por dois ou três anos.
Se, no novo julgamento, Pedro for condenado à mesma pena, poderá nem ter de regressar à cadeia, porque cumpriu metade dessa pena em prisão preventiva e terá, por isso, facilmente direito à liberdade condicional.
Caso consiga provar que as bitcoins da sua carteira física têm origem lícita, poderá reavê-las. Nesse cenário, ficará com uma fortuna bem superior à contabilizada quando as moedas digitais foram apreendidas. Mas, se não conseguir, as bitcoins serão declaradas a favor do Estado, o qual, de alguma forma, as terá de vender.