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“A invasão começou!” O primeiro dia da Europa foi há 80 anos

Qual o significado do desembarque na Normandia? A Europa livre e democrática nasceu da decisão anglo-americana de não deixar o continente entregue ao duelo entre fascismo e comunismo. Por Rui Ramos

[Este texto foi inicialmente publicado no dia 6 de junho de 2014. Nesta quinta-feira, quando se assinalam os 80 anos do Dia D, voltamos a lançá-lo, devidamente atualizado]

Há 80 anos, nas praias do norte de França, decidiu-se o destino da Europa. Às primeiras horas da manhã de seis de Junho de 1944, depois de intensos bombardeamentos aéreos e navais e da ocupação de posições no interior por pára-quedistas, uma enorme armada vinda de Inglaterra começou a desembarcar milhares de soldados americanos, britânicos e canadianos na costa da Normandia. Era o início da campanha de libertação da França, após quatro anos de ocupação pela Alemanha nazi.

A Europa livre e democrática em que vivemos nasceu da decisão anglo-americana de não deixar o continente entregue ao acaso do confronto entre fascismo e comunismo. Décadas depois, há muito para comemorar, mas há também a necessidade de ver para além da comemoração. Foi uma operação arriscada, que podia ter dado um novo fôlego a Hitler. E não trouxe logo a paz ao continente.

O general Eisenhower redigiu até a sua carta de demissão, para um eventual fiasco

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Uma batalha arriscada

Sobre as primeiras horas da invasão, temos as fotografias de Robert Capa, mas também a primeira meia hora de Saving Private Ryan, inspirado nos combates da praia de “Omaha”, onde no dia 6 de Junho morreram 2000 americanos. Podemos assim imaginar a manhã cinzenta, o enjoo causado pelas várias horas no mar, o medo contido, a praia cheia de incertezas e ameaças, o morticínio inicial, a resiliência, a vitória. A idade média da infantaria americana era 20 anos. Muitos eram ainda adolescentes, quase que miúdos de escola secundária. E é do ponto de vista deles, combatentes no terreno, que hoje os livros e documentários de história mais na moda nos fazem ver a guerra, como uma experiência extrema da vulnerabilidade humana. Mas há muita coisa que mesmo os melhores depoimentos e imagens não capturam necessariamente: tudo o que estava em jogo. E o que estava em jogo era tudo.

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A Europa livre e democrática em que vivemos nasceu da decisão anglo-americana de não deixar o continente entregue ao acaso do confronto entre fascismo e comunismo.

Sabemos o que aconteceu depois. Por isso, o desembarque de 6 de Junho pode parecer apenas mais um passo para uma vitória anunciada. Mas o sucesso do Dia D estava longe de estar predeterminado. Foi uma operação complexa, contra um inimigo potente. A sua preparação, desde 1943, encheu de maus pressentimentos todos os líderes aliados. A meteorologia, só por si, podia ter mudado a história. O general Eisenhower, comandante em chefe das forças aliadas na Europa, redigiu até a sua carta de demissão, para um eventual fiasco.

Na Primavera de 1944, a Alemanha e os seus aliados enfrentavam uma coligação cujo PIB combinado era três vezes superior ao seu. Já não dispunham de iniciativa estratégica e tinham perdido o controle do ar na frente ocidental. Mas os bombardeamentos aéreos aliados ainda não eram tão maciços como seriam nos últimos nove meses da guerra. A produção alemã de armamentos aumentara, triplicando em relação a 1941. A Alemanha ocupava ainda quase toda a Europa ocidental e central, da Noruega à Grécia, e uma parte da Bielorússia e da Ucrânia, cujos recursos materiais e humanos explorava implacavelmente (havia 7 milhões de trabalhadores estrangeiros no Reich). Na frente italiana, o avanço aliado parara ao sul de Roma. Na frente russa, o exército vermelho não saíra ainda das antigas fronteiras da União Soviética. A propaganda alemã fazia da guerra uma cruzada europeia de emancipação contra o comunismo e o americanismo, justificando a colaboração de muita gente.

Na manhã do dia 6 de Junho, ninguém acordou Hitler, que se deitara às 3 horas da manhã ainda sem notícias da invasão, porque o comando alemão admitiu que o desembarque da Normandia não fosse mais do que uma mera manobra de diversão, sem importância para interromper o sono do líder supremo. 

Ao fim do Dia D, 160 mil homens tinham vencido as fortificações alemãs. Depois dos desembarques no norte de África (8 de Novembro de 1942) e na Sicília (10 de Julho de 1943), foi outra façanha logística, só possível graças à superioridade área e naval dos aliados e ao uso de enormes quantidades de homens e de material. Mas foi também uma vitória de “inteligência”. Se os alemães se distinguiam pelo virtuosismo tático e os soviéticos pela resiliência, os aliados destacaram-se pela informação. Na Primavera de 1944, não só aproveitaram bem a penetração do sistema alemão de comunicações cifradas, como conseguiram confundir o inimigo acerca do local do desembarque, levando-o a dispersar as suas forças.

Na manhã do dia 6 de Junho, ninguém acordou Hitler, que se deitara às 3 horas da manhã ainda sem notícias da invasão, porque o comando alemão admitiu que o desembarque da Normandia não fosse mais do que uma mera manobra de diversão, sem importância para interromper o sono do líder supremo. De facto, os generais alemães ainda levarem uma semana até concluírem que estavam de facto perante o acto principal da invasão do continente pelos aliados anglo-americanos.

Mais: para Hitler, como notou o embaixador Ulrich von Hassel no seu diário, uma “invasão falhada” era a última “oportunidade”.

Durante anos, a comemoração americana do desembarque serviu para contrariar a propaganda soviética, para a qual tudo se jogara na frente leste. Não vale a pena ressuscitar esses debates da Guerra Fria. Sem a guerra na Rússia, que ocupava 60% das suas forças, a Alemanha teria estado mais à vontade para enfrentar a invasão da França. Mas não era por acaso que Estaline exigia aos aliados uma segunda frente desde 1942. Quanto a Hitler, como explicou na directiva de 3 de Novembro de 1943, deu sempre prioridade à frente ocidental: é que no leste podia perder território, mas no ocidente, não. Mais: para Hitler, como notou o embaixador Ulrich von Hassel no seu diário, uma “invasão falhada” era a última “oportunidade”. Se a Alemanha tivesse derrotado os aliados no dia 6, é possível que os soviéticos não se tivessem atrevido à operação Bagration, de 22 de Junho.

Hitler e Mussolini inspeccionam os estragos causados pela bomba que visava matá-lo

Uma vitória alemã na Normandia teria tido o efeito de galvanizar o fascismo na Europa. Não por acaso, a “resistência” só tomara vulto em França em 1943, depois dos fracassos alemães na Rússia e na Itália. Com os alemães vitoriosos, mesmo que brevemente, tudo teria mudado outra vez. Por tudo isso, a batalha da Normandia foi decisiva.

AFP/Getty Images

Para muitos, foi também um sinal de esperança após anos de horror. No seu esconderijo de Amesterdão, a jovem Anne Frank sentiu uma “grande comoção”: “A invasão começou!”, escreveu no seu diário. Era finalmente a “libertação”. Depois de uma curta vida em que só conhecera a fuga e a clandestinidade, parecia um “conto de fadas”. Para Anne, porém, vinha demasiado tarde: capturada pela polícia alemã em Agosto, morreria no campo de concentração de Bergen-Belsen em Março de 1945.

A libertação como problema

O desembarque expôs a falta de decisão dos altos comandos alemães, muito divididos sobre o que fazer: tentar impedir o desembarque nas praias, como sugeria o general Rommel, o comandante das forças alemãs no norte de França, ou deixar desembarcar os aliados, para depois os atacar, como preferia o marechal Rundstedt, comandante em chefe na Europa ocidental. O parcial sucesso alemão no sector de Omaha prova que Rommel tinha razão – e que tudo poderia ter sido diferente. Mas depois do desembarque, as tropas aliadas, comandadas pelo general Montgomery, ainda precisaram de dois meses de duros combates para romper o cerco em que se encontraram. A guerra no Ocidente adquiriu a dimensão brutal que sempre tivera a guerra na Rússia.

Os alemães resistiram tenazmente, porque Hitler tratava o espaço como se fosse tempo: para ele, a Alemanha só podia durar se não cedesse território. Os aliados, pelo seu lado, fizeram a guerra com toda a violência. Para destruir as forças alemães, não hesitaram em sacrificar milhares de civis franceses. Só no dia 6 de Junho, morreram 3000 sob os bombardeamentos aliados. Ao fim de dois meses, as mortes civis na Normandia chegaram a 60 mil. As tropas alemães fizeram a população pagar as sabotagens da resistência francesa. A 9 de Junho, na cidade de Tulle, enforcaram cerca de 100 homens, pendurados em candeeiros e varandas. No dia seguinte, massacraram toda a população de cerca de 600 pessoas da vila de Oradour-sur-Glane, incluindo 200 crianças.

A woman, with her baby whose father is German, and her mother are jeered and humiliated by crowds in Chartres after having their heads shaved as punishment for collaborating with the German troops. (Photo by Robert Capa/Getty Images)

Depois da libertação, as mulheres que tinham colaborado com os nazis foram publicamente humilhadas

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A “libertação” não foi apenas uma festa. Para muitos, foi o momento mais duro da guerra. A vitória militar não resolvia tudo. Havia complicadas dificuldades políticas e terríveis problemas de administração e de abastecimento. Uma grande parte da Europa estava reduzida a ruínas, através das quais vagueavam massas de refugiados, sem lei nem ordem. Em muitos países, fracturas étnicas e divisões ideológicas transformaram a guerra entre a Alemanha e os aliados em guerra civil, como na Jugoslávia, na Itália, na Grécia ou em França.

Em 1944, a “milícia” do regime de Vichy e a “resistência” gaullista e comunista envolveram a França num novelo sangrento de atentados e de terror. De um lado e outro, havia listas de “traidores” a abater. Na rádio de Londres, Maurice Schumman (um dos pais da integração europeia) fazia questão de se referir aos colaboradores de Vichy, sem qualquer comiseração, como os “fuzilados de amanhã”. Nos meses seguintes ao desembarque, as forças irregulares da “resistência”, que pulularam após a retirada alemã em Setembro de 1944 (os célebres “resistentes de Setembro”), terão assassinado entre 10 000 a 15 000 pessoas. Mais de 20 mil mulheres, acusadas de relações com os alemães, foram sujeitas a rituais de humilhação pública. Em Novembro de 1944, cerca de 250 000 franceses estavam presos, acusados de colaborar com a Alemanha.

No seu primeiro discurso em Paris — cuja libertação, por não ser um objectivo prioritário, Eisenhower confiou às tropas francesas do general Leclerc —, De Gaulle nem sequer mencionou os aliados.

Os “libertados” de 1944 nem sempre foram agradecidos. O general De Gaulle é um caso. Havia quatro anos que lutava para ser reconhecido como chefe dos “franceses livres”. Em Junho de 1944, desconfiou que o presidente americano Roosevelt desprezava a resistência francesa e planeava impor um regime de ocupação militar, tratando a França como um qualquer país inimigo. No seu primeiro discurso em Paris – cuja libertação, por não ser um objectivo prioritário, Eisenhower confiou às tropas francesas do general Leclerc -, De Gaulle nem sequer mencionou os aliados. Durante anos, aliás, as autoridades francesas deixaram a celebração do Dia D aos americanos. Foi o presidente Mitterrand quem, em 1984, decidiu finalmente fazer a França perfilhar com a devida pompa o aniversário do desembarque.

A guerra sem fim

Em 1944, os nazis sabiam que os aliados estavam destinados a confrontar os soviéticos. Só não perceberam que isso não aconteceria enquanto eles, os nazis, continuassem a dominar na Alemanha e a ocupar a Europa ocidental. Na Alemanha, o desembarque da Normandia e a ofensiva soviética de 22 de Junho na Bielorússia acabaram por ter o efeito que o desembarque na Sicília, um ano antes, tivera na Itália fascista. As elites alemãs perderam toda a confiança numa saída airosa. Mas se Mussolini caiu em 1943, Hitler aguentou em 1944, ajudado pela sorte no momento do atentado de 20 de Julho. Os alemães continuaram a combater.

Para destruir as forças alemães, oa aliados não hesitaram em sacrificar milhares de civis franceses. Só no dia 6 de Junho, morreram 3000 sob os bombardeamentos aliados. Ao fim de dois meses, as mortes civis na Normandia chegaram a 60 mil. 

É que na Alemanha, não havia apenas um Estado, com a sua administração, tribunais, polícias e forças armadas. Isso podia-se ter desmoronado perante a pressão militar, como tinha acontecido à Alemanha de Guilherme II em Novembro de 1918. Mas em 1944 havia um partido de massas, com milhares de filiados, e as suas milícias e exércitos paralelos. Acima de tudo, havia o desespero de um país que se sabia comprometido em terríveis atrocidades e não esperava qualquer clemência dos seus inimigos. Parecia assim preferível confiar numa iminente cisão entre os EUA e a União Soviética, ou no efeito milagroso de “novas armas”, como os aviões a jacto ou os foguetões VI e V2 que, no Verão de 1944, começaram a flagelar o sul de Inglaterra. Finalmente, os problemas logísticos acabaram por limitar a progressão aliada e soviética, e permitiram aos exércitos alemães segurar as frentes no Outono de 1944.

A guerra continuou para além de 6 de Junho de 1944. Durou quase mais um ano. Para muita gente na Europa, foi fatal. Em Maio de 1944, quando os aliados preparavam a operação Overlord, os nazis começaram a deportação da população judaica da Hungria. Até Julho, enquanto os aliados tentavam avançar no norte de França, mais de 400 000 judeus húngaros foram transportados para Auschwitz. Cerca de 90% seriam assassinados à chegada, nas câmaras de gás. Na Europa nazi, cada dia de guerra depois do Dia D foi mais um dia de abominação.

Os cemitérios da Normandia ainda hoje testemunham a violência dos combates

Matt Cardy

A 10 de Junho de 1944, no seu diário, o escritor Pierre Drieu la Rochelle notou, sem ilusões: “o destino está traçado”. Recebera as provas do seu último livro já com uma indiferença póstuma: ainda iria ser publicado, ainda estaria ele vivo quando fosse publicado? Não tinha dúvidas sobre o seu próprio destino, o de um colaboracionista sempre frustrado pela relutância dos alemães em lançar uma verdadeira revolução fascista na Europa. Mas no Verão de 1944, descobriu um novo interesse ideológico: o comunismo. Entusiasmou-se: “Estaline é melhor do que Hitler”.

No Verão de 1944, o escritor fascista Drieu la Rochelle descobriu um novo interesse ideológico: o comunismo. Entusiasmou-se: “Estaline é melhor do que Hitler”

Drieu sabia-se demasiado comprometido para mudar de campo. Mas o seu caso revela como o radicalismo anti-democrático e anti-capitalista ia sofrer mais uma metamorfose. Tal como os triunfos de Hitler tinham feito muitos fascistas em 1940, as conquistas de Estaline iam fazer muitos comunistas em 1945. Por toda a França, os “comissários da república” de De Gaulle começaram a enfrentar os “comités de libertação” com que o partido comunista procurava tomar conta da administração local.

Os comunistas franceses tinham-se inicialmente disposto a colaborar com os alemães, ao abrigo do pacto entre a Rússia comunista e a Alemanha nazi. Só se juntaram à resistência em 1941, quando Hitler atacou a União Soviética. Agora, beneficiavam do prestígio militar de Estaline. Nas eleições de Junho de 1946, o Partido Comunista iria juntar 26% dos votos. Com um milhão de militantes, era o maior partido em França. Tentaria tomar o poder pela força? A decisão coube a Estaline. Mas foi certamente condicionada pelo empenho americano e inglês em que fazer com que o fim da guerra, pelo menos na Europa ocidental, não fosse a simples substituição de uma tirania por outra.

Louis-Ferdinand Céline, com a sua habitual perversão, resumiu um dia a II Guerra Mundial à destruição absurda do exército alemão, o último elemento de poder da Europa. Devemos ver de outra maneira. Os exércitos anglo-americanos desembarcados em 1944 criaram a base da futura Europa ocidental. Não só porque desembarcaram, mas também porque não reembarcaram, apesar dos tremendos custos da campanha. Para quase 5000 soldados aliados, o dia D foi o seu último dia — o equivalente, num único dia, dos mortos americanos durante dez anos de guerra no Iraque. Depois de 1945, os EUA e a Inglaterra mantiveram-se no continente, prevenindo qualquer veleidade de Estaline.

Roosevelt e Churchill em agosto de 1941. As nossas democracias, a nossa liberdade, a nossa prosperidade devem muito à visão de líderes políticos de então

Quando se fala da Europa de hoje, fala-se de Jean Monnet ou de Robert Schuman. Mas Monnet e Schumann não teriam sido possíveis sem o desembarque aliado a 6 de Junho de 1944. As nossas democracias, a nossa liberdade, a nossa prosperidade devem muito à visão de líderes políticos como Roosevelt e Churchill, à competência de oficiais e administradores como o general Eisenhower, e ao sacrifício das dezenas de milhares de jovens norte-americanos e ingleses que ficaram para sempre nos cemitérios da Europa continental.

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