27 de março de 2012. José Sócrates, radicado em Paris, para onde se mudara para estudar filosofia na prestigiada Sciences Po, não sabia mas, nesse preciso dia, em Lisboa, o inspetor Luís Flora, da Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária (PJ), assinava um relatório com base numa comunicação da Caixa Geral de Depósitos (CGD) que iria mudar em breve a vida do ex-primeiro-ministro.
A história começa com três protagonistas e uma empresa: Rui Pedro Soares, ex-administrador da Portugal Telecom no tempo do governo de José Sócrates e atual presidente da SAD do Belenenses, e a mulher, Diana Barroso Soares; Carlos Santos Silva; e a sociedade Codecity, de Rui Pedro e Diana Soares.
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Esta sociedade tinha duas áreas de especialização:
- A Codecity – Informação e Comunicação, concentrada na edição de livros, de jornais e outras publicações, assim como em atividades cinematográficas, de vídeo, de produção de programas de televisão, rádio e publicidade;
- E a Codecity Players Investment, que tinha como objeto social a compra e venda de direitos desportivos e económicos de jogadores de futebol. Fixe este nome: Codecity Players Investment.
As primeiras campainhas soaram a 31 de janeiro de 2012, a partir de uma transferência de 600 mil euros para uma conta em nome da Codecity na Caixa Geral de Depósitos. Autor da transferência? Carlos Santos Silva. A transferência foi reportada pelo banco público, como impõe a lei contra o branqueamento de capitais ao sistema financeiro, à Unidade de Informação Financeira (UIF) da PJ, que seguiu o rasto do dinheiro.
Analisando os dados da CGD, o inspetor Luís Flora deparou-se com outro facto que considerou suspeito: no mesmo dia, o casal Soares tinha transferido grande parte desse montante (cerca de 196 mil euros) para a SAD do Belenenses e outra parte (cerca de 370 mil euros) para a SAD do Beira-Mar.
O inspetor Luís Flora olhou para as movimentações bancárias do casal Soares e descobriu cerca de 50 transferências realizadas em 2009 que ascendiam a mais de 200 mil euros. Com diferentes oscilações, os valores repetir-se-iam nos anos 2010 e 2011. Em 2012, o valor dos fundos que entraram na conta ficou claramente acima daquela média. Tudo por causa do referido cheque de 600 mil euros de Santos Silva. É este o primeiro momento daquilo que viria a ser a Operação Marquês.
O nome de Rui Pedro Soares, por sua vez, já era um nome bem conhecido da Justiça. O ex-administrador da PT, a quem o Jornal de Negócios e a revista Visão dedicaram dois perfis onde destacavam a sua ascensão meteórica, vira-se envolvido na investigação “Face Oculta”, depois de ter sido registado em escutas telefónicas com Paulo Penedos a combinar alegadamente os detalhes da compra da TVI pela PT. E foi mesmo acusado pelo Ministério Público (MP) de corrupção passiva no caso Taguspark por alegadamente ter corrompido Luís Figo para apoiar José Sócrates na campanha eleitoral das legislativas de 2009 — uma acusação que não foi dada como provada em julgamento no Tribunal de Oeiras, o que levou à absolvição de Soares.
Como se confirmou esta quarta-feira, Rui Pedro Soares e Diana Barroso Soares não foram constituídos arguidos na Operação Marquês. De todo o modo, o MP considerou sempre esta operação pouco transparente. A conta da empresa do casal Soares teria, afinal, funcionado apenas como conta de passagem e o facto de ter sido Carlos Santos Silva, um empresário com participações em diferentes empresas, o autor da transferência levantava dúvidas em relação à origem do dinheiro. Por explicar ficava também o facto de o dinheiro ter passado por uma conta de uma empresa especializada em publicação de livros e comunicação até ser canalizado para as SAD de dois clubes de futebol diferentes. Suspeitas suficientes para que os investigadores continuassem a seguir o rasto das movimentações bancárias de Carlos Santos Silva.
Os negócios da bola e o adensar das suspeitas
Ainda antes de ser instaurado um processo-crime formal que tem José Sócrates e Carlos Santos Silva como principais visados, a PJ recebeu igualmente uma denúncia anónima sobre o negócio em torno dos direitos televisivos da Liga Espanhola de futebol. Uma operação que tinha como intervenientes Rui Pedro Soares, Miguel Paes do Amaral (antigo dono do extinto jornal Independente e da TVI), Rui Mão de Ferro, amigo e igualmente alegado testa-de-ferro de José Sócrates, e Carlos Santos Silva.
A teia é complexa e os fios de seda vão-se cruzando de forma quase labiríntica, mas tudo começa com a Worldcom, uma sociedade criada em dezembro de 2010 e que tinha como acionistas Fernando Soares e Maria Oliveira, pais de Rui Pedro Soares, cada um com 50% do capital. Carlos Soares, irmão do ex-administrador da PT, era o homem à frente da sociedade. Um negócio de família e em família.
Depois, surge a Walton Grupo Inversor, uma empresa espanhola dedicada ao negócio de transportes, com sede em Barcelona, e que já detinha 35% da Code City Players Investment – a mesma sociedade liderada por Rui Pedro Soares.
O administrador único da Walton era Rui Mão de Ferro, também gestor e sócio de outras empresas de Carlos Santos Silva e do advogado Gonçalo Ferreira. O próprio Santos Silva, de resto, teria uma participação societária na Walton. Mão de Ferro e Ferreira são arguidos na Operação Marquês devido precisamente às suas ligações a Santos Silva.
Entretanto, a Walton Grupo Inversor entra no capital da Worldcom e Rui Mão de Ferro passa também a ser gerente desta sociedade. No início de 2011, a Worldcom fechou acordo com a Mediapro para a compra dos direitos de transmissão da Liga Espanhola em Portugal, oferecendo três milhões de euros por cada época da Liga espanhola — aproximadamente o triplo do que a Sport TV pagava na altura.
Em junho de 2011, o negócio concretizou-se finalmente: a Partrouge Media, uma empresa do universo de Miguel Pais do Amaral, comprou a sociedade Worldcom, proprietária dos direitos de emissão da Liga Espanhola de futebol. O objetivo do empresário era lançar um novo canal temático de desporto em Portugal, concorrendo com a Sport TV. Além da Liga Espanhola de futebol, Pais do Amaral pretendia ainda garantir os direitos de transmissão da Liga dos Campeões, Liga Europa, Fórmula 1 e Moto GP — que acabaram por escapar para a empresa do grupo de Joaquim Oliveira.
Mas já não havia como voltar atrás no negócio com a Worldcom. Muito antes de saber que o novo canal de desporto nunca iria sair do papel, Pais do Amaral passou um cheque de quase de 2,7 milhões de euros em nome da Worldcom para fechar o acordo. E aqui há um facto que despertou a curiosidade dos investigadores: o cheque terá sido depositado na conta de Carlos Santos Silva, no Banco Espírito Santo.
O facto de parte do dinheiro envolvido no negócio ter ido parar às contas de Carlos Santos Silva, bem como as movimentações financeiras da operação, levaram os investigadores a acreditar que Carlos Santos Silva e José Sócrates eram, na verdade, acionistas ocultos da Worldcom e teriam interesses neste negócio.
A investigação seguiu o seu rumo e, à medida que iam surgindo outras suspeitas relevantes, a equipa do procurador Rosário Teixeira, terá acabado por dar prioridade a outras linhas de acusação. De resto, e segundo a revista Visão, no interrogatório a que foi sujeito em março de 2017, o ex-primeiro-ministro fez questão de recordar esta linha de investigação para provar a tese que tem mantido de que o MP está, na verdade, a atirar em todas as direções à procura de factos que o possam incriminar. No entanto, e de acordo com a mesma Visão, é muito provável que venha a ser extraída uma certidão para continuar a investigar este negócio dos direitos televisivos num outro processo.
Ainda assim, e segundo o MP, o que estes factos permitiram concluir numa primeira fase foi que Carlos Santos Silva tinha uma influência relevante no universo de pessoas que orbitavam em torno de José Sócrates. Os negócios entre o empresário e a mãe de José Sócrates foram o passo seguinte na investigação.
Carlos Santos Silva e os apartamentos da mãe de Sócrates
16 de maio de 2013. Neste dia, o inspetor Luís Flora assinava um segundo relatório da UIF em que Carlos Santos Silva voltava a ser um dos protagonistas, juntamente com Maria Adelaide Monteiro e José Sócrates. Se os primeiros negócios de Carlos Santos Silva tinham levantado suspeitas aos investigadores portugueses, a compra de um imóvel no edifício Heron Castilho, na Rua Braancamp, que pertencia à mãe de José Sócrates, foi a arma fumegante que a PJ precisava de encontrar para começar a ter indícios de uma ligação entre Santos Silva e o ex-primeiro-ministro.
O imóvel em questão de Maria Adelaide Monteiro tinha o valor patrimonial de 260 mil euros. Carlos Santos Silva comprou-o por 600 mil euros. Uma parte desse dinheiro, concluíram os investigadores, acabou na conta de José Sócrates. Carlos Santos Silva pagou a casa em três prestações, entre junho e setembro de 2012. No mesmo ano, Maria Adelaide Monteiro fez quatro transferências para José Sócrates num valor de 450 mil euros (em junho, agosto, setembro e dezembro). Nesse ano de 2012, José Sócrates receberia da mãe mais 70 mil euros (janeiro e março), num total de transferências que ascendeu aos 520 mil euros num único ano.
O cruzamento de dados permitiu aos investigadores olhar para as movimentações bancárias de José Sócrates e perceber a relação que o ex-primeiro-ministro mantinha com a mãe e com outros nomes que viriam a surgir sistematicamente durante a Operação Marquês, como Sofia Fava, ex-mulher do primeiro-ministro e João Perna, motorista do antigo chefe do Governo. Assim como permite perceber que Sócrates tem um estilo de vida com despesas muito elevadas, que vão desde despesas de 4 mil euros em roupa numa só ida à Fashion Clinic, na Av. da Liberdade, a propinas de mais de 70 mil euros em instituições de ensino francesas ou a extratos mensais de cartão de crédito que ultrapassam valores entre os 10 e os 15 mil euros.
A Operação Marquês
19 de julho de 2013. É o início formal dos autos da Operação Marquês, por ser esta a data em que é autuado o inquérito 122/13.8 TELSB — o número pelo qual o processo será conhecido nas secretarias judiciais. A partir dos dois relatórios do inspetor Luís Flora e de um aprofundamento dos dados bancários de Carlos Santos Silva que já faziam parte da Operação Monte Branco, o procurador Rosário Teixeira dá início à investigação tendo ainda Santos Silva e a empresa Codecity — Informação e Comunicação, Lda. como únicos suspeitos dos crimes de fraude fiscal e de branqueamento de capitais. Mas o nome de José Sócrates já estava na mira dos investigadores.
Com o avanço das investigações, Rosário Teixeira e o seu braço-direito Paulo Silva (inspetor tributário de Braga) vão perceber que, em junho de 2011, ainda antes de ir para Paris, José Sócrates contraiu um empréstimo da Caixa Geral de Depósitos de cerca de 120 mil euros para alegadamente se poder sustentar na capital francesa. No entanto, os investigadores desconfiam que este empréstimo foi, na verdade, uma cortina de fumo orquestrada pelo ex-primeiro-ministro, em conluio com Carlos Santos Silva, para evitar levantar suspeitas sobre a verdadeira origem dos fundos que financiavam o seu elevado custo de vida.
A convicção dos investigadores saiu reforçada depois de perceberem que, em agosto de 2012, Carlos Santos Silva adquiriu um apartamento situado na Avenue President Wilson, nº 15, por cerca de 2,8 milhões de euros, pagos em duas tranches: 257.624 euros (em julho) e 2,6 milhões (em agosto). O mesmo apartamento onde José Sócrates viveria durante a estadia em Paris, entre setembro de 2012 e julho de 2013. A aquisição deste apartamento já tinha sido detetada nas escutas da Operação Monte Branco (a cargo dos mesmos investigadores da Operação Marquês).
De resto, a mãe de José Sócrates começou a vender apartamentos a Carlos Santos Silva logo depois das eleições legislativas de 2011, quando o ex-primeiro-ministro foi derrotado por Pedro Passos Coelho. Além do apartamento no edifício Heron Castilho, na Rua Braancamp, Santos Silva comprou ainda dois apartamentos a Maria Adelaide Monteiro: um por 75 mil euros e outro por 100 mil euros. Investimento total de Carlos Santos Silva em imóveis da mãe de Sócrates? 775 mil euros.
Com José Sócrates já em Lisboa, o apartamento de Paris viria a ser remodelado. Foi Carlos Santos Silva quem formalmente pagou as obras, num investimento de mais de 480 mil euros.
Para os investigadores, os indícios somavam-se uns atrás dos outros: o ex-primeiro-ministro assistiu à assinatura do contrato entre Santos Silva e o gabinete de arquitetura responsável pela obra; escolheu alguns dos materiais; pediu a Sofia Fava, sua ex-mulher, residente em Paris, para acompanhar o projeto; e acabou a dar indicações a Carlos Santos Silva para pressionar o arquiteto responsável pela obra, perante o atraso na obra. A conclusão do MP foi uma: o verdadeiro dono do imóvel foi sempre José Sócrates.
Estes indícios, somados às movimentações bancárias alegadamente suspeitas de José Sócrates, ajudaram a reforçar a tese de que o antigo chefe de Governo estava a usar dinheiro ilegítimo para suportar um estilo de vida considerado faustoso. Os investigadores descobririam depois que as férias do ex-primeiro-ministro, por exemplo, eram pagas por Santos Silva, que financiava as estadias e as viagens, independentemente de usufruir ou não delas.
Sendo Carlos Santos Silva um elemento recorrente na investigação, as autoridades começaram por esmiuçar o seu património comercial, predial e financeiro. Rapidamente chegaram às contas do empresário da Covilhã no Banco Espírito Santo e descobriram que o Santos Silva tinha aderido ao Regime Excecional de Regularização Tributária (RERT) em dezembro de 2010, tendo repatriado cerca de 23 milhões de uma conta que detinha no banco suíço Union des Banques Suisses (UBS).
Perante estes sinais, a equipa de investigação concluiu que existiam fortes indícios de uma especial ligação entre o ex-primeiro-ministro e Carlos Santos Silva. Na verdade, a equipa liderada por Rosário Teixeira acredita convictamente que uma parte importante do património financeiro do empresário da Covilhã estava em seu nome para ocultar o verdadeiro titular: José Sócrates.
À medida que seguiam o rasto do dinheiro, os investigadores chegaram ao universo da PT e do Banco Espírito Santos, a Zeinal Bava e a Ricardo Salgado, passando pelo negócio de Vale do Lobo e por Armando Vara. O cerco foi-se apertando e abraçou aquelas que foram durante muito tempo as principais figuras do regime.