Quando a aristocrata espanhola Fabíola de Mora y Aragón ficou noiva do Rei Balduíno da Bélgica sabia que o seu vestido ganhava ainda mais estatuto histórico porque seria também aquele com que se tornaria rainha. A escolha do criador de tal peça reuniu o melhor de dois mundos: Cristóbal Balenciaga era um costureiro espanhol e também mestre da Alta Costura consagrado em Paris. A tarefa foi um dos marcos da sua carreira e não podia faltar na série “Cristóbal Balenciaga”, um conjunto de seis episódios que contam uma história inspirada nos 30 anos que passou em Paris. A produção espanhola, criada por Lourdes Iglesias, chega à plataforma digital Disney+ a 19 de janeiro e a moda, claro, é uma das protagonistas, por isso falámos com Bina Daigeler, da dupla de figuristas da série.
Quando o casamento real aconteceu em Bruxelas em dezembro de 1960, já a imprensa, as clientes e até os outros criadores de moda da época se haviam rendido ao talento de Balenciaga. O processo de confeção do vestido de noiva demorou um mês e meio, foi complexo e envolvido em grande secretismo. As provas eram feitas no apartamento do próprio criador e chegaram à imprensa desenhos com sugestões que quase destruíram o efeito surpresa. A criação contou com 24 metros de seda e aplicações em vison branco num conjunto composto por um vestido e uma capa com seis metros de cauda, porque Balenciaga queria que tivesse um look régio.
O vestido de noiva de Fabíola dá o mote a um dos episódios da série e, por isso, Bina Daigeler e Pepo Ruiz Dorado tiveram de reproduzir as icónicas peças. “O processo foi realmente fantástico”, disse a figurinista ao Observador, numa mesa redonda online em que respondeu a perguntas de cinco jornalistas de destinos como Israel, Polónia, Brasil e Países Baixos. “A dificuldade do vestido é que a capa é tão longa e tão pesada que tivemos de fazer uma construção no corpo para que a rainha Fabíola não caísse para trás quando entra na igreja.” Dos moldes em pano cru à prova do vestido, até à peça acabada, a realização da série leva-nos pelo olhar do próprio criador, analisando, neste caso, o trabalho de Bina. “A parte importante é a que não se vê, é o interior do vestido”, explica a figurinista em relação ao look de noiva, mas este é também um dos segredos da magia da Alta Costura: o trabalho manual das costureiras e mestria da construção. “O vestido [de noiva] tinha um corpete no interior para segurar o peso da capa. A parte engraçada é que tínhamos a mesma quantidade de tecido para fazer uma capa com o mesmo comprimento, mas o nosso atelier era muito pequeno, por isso tivemos de fazê-la mais curta para caber no espaço.”
Recriar este vestido de noiva foi uma tarefa audaciosa, afinal é uma peça bem conhecida. Vale a pena lembrar que este foi o primeiro casamento real transmitido na televisão e que a peça já esteve exposta ao público em diferentes ocasiões. Balenciaga foi um criador estrela da Alta Costura e muitas das suas criações são como obras de arte que ganharam estatuto de celebridade, reproduzidas em livros, expostas em museus e estudadas pelas gerações seguintes. Coube a Bina Daigeler criar réplicas de algumas destas peças, e para tal conta que teve acesso ao arquivo da maison Balenciaga, bem como a algumas peças do criador, como por exemplo os babydoll, no Palais Galliera, o museu da moda de Paris. Contudo, a principal base de apoio visual foram fotografias e desenhos. Chegar às réplicas que vemos na série foi “um grande desafio” e foram necessários vários protótipos para chegar a um resultado que satisfizesse os figurinistas. Daigeler conta que teve uma espécie de arma secreta neste projeto. “Tive muita sorte porque tinha uma pessoa modelista [que faz os moldes das peças de roupa] que aprendeu com pessoas que trabalharam com Balenciaga e, de certa forma, são especialistas em Balenciaga”.
A Alta Costura era, na altura em que o criador espanhol “reinou” o palco maior da moda e, na verdade, também o único. Peças feitas por medida, algumas até com nomes próprios, quase sem olhar a custos. Hoje esta continua a ser a plataforma da moda onde se privilegia a tradição e a exclusividade. Um verdadeiro luxo que, segundo Daigeler, faz peças muito caras porque há um grande investimento na extrema qualidade dos materiais e da mão de obra e também no tempo de dedicação. E, tendo em conta o que se passa no mundo, esses valores podem ser considerados excessivos. “Ter algumas pessoas a gastarem esta quantidade de dinheiro numa peça para se vestirem.” A figurinista destaca a importância de uma arte que dá trabalho a muitas pessoas, um trabalho que dá satisfação a quem o faz e que espera que não se perca. Por outro lado, considera a fast fashion “irracional”, que “todos temos de reduzir o preço da moda” e lamenta que as promessas de mudança feitas na altura da pandemia se tenham desvanecido e tudo tenha voltado ao que era antes.
A personagem central desta história, Cristóbal Balenciaga, nasceu em 1895 em Getaria, no País Basco. O pai era pescador, a mãe era costureira e o filho cedo demonstrou o interesse pela moda. Fez o primeiro vestido aos 12 anos. A sua primeira casa de moda foi em San Sebastian, chamava-se Eisa (diminutivo do apelido da mãe) e abriu em 1917. Depois passou por Madrid e Barcelona e acabou por se instalar em Paris em 1937, com o selo de aprovação da Chambre Syndicale de la Haute Couture, a instituição que regulava a moda francesa da época. Foi no número 10 da Avenue George V que a magia aconteceu ao longo de vários anos. Ficou conhecido como “o arquiteto da moda” porque trabalhava a estrutura da roupa e a costura como arte de construção como nenhum dos seus colegas. A discrição e algum secretismo por parte de Balenciaga contribuíram para o misticismo que se gerou à sua volta. Decidiu fechar a casa com o seu nome em 1968 e viria a morrer quatro anos mais tarde.
Em 1986 a família de Cristóbal Balenciaga vendeu a marca e o património e o nome Balenciaga voltou às etiquetas de moda. Atualmente a marca pertence a um dos grupos gigantes do luxo, o grupo Kering. Nomes sonantes da moda contemporânea como Nicolas Ghesquière, Alexander Wang e Demma Gvasalia interpretaram os valores da maison nos últimos anos, mantendo o nome como um dos mais valorizados do universo da moda. Contudo, é impossível não questionar o que pensaria o próprio Sr. Balenciaga do look que Kim Kardashian usou na Met Gala de 2021, totalmente coberta com tecido preto (incluindo o rosto).
A série não chega tão longe no tempo. É composta por seis episódios, começa quando uma jornalista consegue convencer Balenciaga a dar uma entrevista, já depois de estar aposentado, e o criador vai depois contando a história dos seus anos em Paris. O ator Alberto San Juan dá vida ao mestre costureiro que vemos criar, sofrer e envelhecer, sem nunca perder a sua distinção. O contexto histórico está sempre presente, por exemplo, nas referências à ditadura em Espanha ou à ocupação de Paris pelas tropas nazis, no papel da imprensa na moda ou na iminência do pronto-a-vestir. Para os conhecedores de moda há pequenas surpresas, como por exemplo o “Théâtre de la Mode”, e personagens bem conhecidas como Coco Chanel, Christian Dior, Hubert de Givenchy, Carmel Snow ou a figurinista norte-americana Edith Head.
Esta série tem uma componente de moda tão grande e intensa que quase nos esquecemos que o trabalho da figurinista consiste em vestir todas as personagens que vemos no ecrã. A série inspira-se nas três décadas que o criador espanhol viveu (e criou) em Paris. Começa a contar a história em 1937 e acaba já na década de 1960, por isso o trabalho da figurinista passou também por vestir com os respetivos estilos das épocas as personagens fixas do enredo, como Sr. Balenciaga, e também todos os figurantes que assistiam aos desfiles, que passavam nas ruas, nos restaurantes e em outros cenários. A própria Bina Daigeler conta ao Observador que teve um pequeno papel num dos episódios a interpretar uma cliente norte-americana. Diz que não poderá ficar com nada do guarda-roupa da série, “porque vai tudo para o arquivo da Disney”, mas garante que vai guardar o vestido que usou em frente às câmaras.
Bina Daigeler é alemã e foi no cinema alemão que começou a sua carreira, no entanto vive em Espanha desde a década de 1980 e o facto de ter trabalhado em dois filmes de Pedro Almodóvar (“Tudo sobre a minha mãe”, 1999, e “Voltar”, 2006) dá-lhe certamente o equivalente a uma costela espanhola. Nos anos mais recentes participou em filmes internacionais, como por exemplo “Snowden” (2016); a versão live-action de “Mulan” (2020) deu-lhe a única nomeação para os Óscares e em “Tár” (2022) vestiu a diva Cate Blanchet. Confessa que no início deste projeto “Cristóbal Balenciaga” ficou ansiosa, por causa da responsabilidade. “Queria mesmo replicar e mostrar ao público quanto trabalho há por trás da Alta Costura e queria mostrar o amor que estes designers têm pelas suas criações e o quanto é importante que não se percam agora, no mundo moderno.” Mas diz que assim que mergulha no processo criativo passa a ansiedade em relação ao produto final e começa em relação às questões práticas para pôr o trabalho em marcha, como por exemplo os tecidos. “As minhas emoções criativas são muito maiores do que a ansiedade.”
A figurinista vê-se “como uma ferramenta para a criatividade num trabalho de equipa”, trabalho que considera ser “um lindo processo” e do qual gosta. “Creio que sou, de certa forma, a ferramenta do realizador para expressar o que ele quer ver e o que ele escreveu no guião e sou também como uma ferramenta para o ator entrar na pele da personalidade que tem de ter para criar uma personagem.” Daigeler vai mais longe e diz que às vezes é até “mais uma psicóloga do que uma designer”.
Embora não se veja como uma artista, Daigeler não hesita em comparar o trabalho de Balenciaga ao de um pintor, por exemplo Picasso, “porque fazia algo realmente único e realmente especial”. E, tal como um verdadeiro artista, Balenciaga tem o seu próprio museu, com morada na sua terra natal, Getaria. Abriu ao público em 2011 com um arquivo de mais de 1200 peças e a presença da rainha Sofia de Espanha. Entre o espólio está o vestido de noiva da rainha Fabíola, doado em 2003 pela própria. A réplica do vestido de noiva está numa exposição com os vestidos icónicos criados para a série, patente no Jardim Botânico de Madrid até ao próximo dia 21 de janeiro.